Sofia Pieruccetti Gutierrez[1]
A primeira parte do texto pode ser lida aqui.
Este ensaio explora a complexa interação entre a racionalidade neoliberal, o sistema judicial e a política no Brasil contemporâneo, analisando como a PGR desempenhou um papel crucial na virada autoritária desse paradigma. Além disso, destaca como a internacionalização das influências e discursos do neoliberalismo contribui para a compreensão das transformações políticas e judiciais no país. Na primeira parte do ensaio, procurei situar o crescente protagonismo do aparelho judiciário no contexto da ascensão do neoliberalismo a partir da década de 1980. A seguir, avaliarei algumas ações de Rodrigo Janot na crise política por meio da Operação Lava Jato e de Augusto Aras durante o governo de Jair Bolsonaro.
A Procuradoria-Geral da República na Virada Autoritária do Neoliberalismo
Análises de perspectiva institucionalista sobre as transformações do Ministério Público em geral apontam como resultado uma instituição autônoma com integrantes altamente independentes, sem mecanismos de direcionamento, coordenação e revisão de trabalhos. Ao constatar que nenhum dos ramos do Ministério Público é ligado ao Poder Executivo, Judiciário ou Legislativo, Fábio Kerche (2014) indica a diferença do caso brasileiro com relação a outras democracias representativas: geralmente, a agência responsável por promover a ação penal é subordinada ao governo, que elenca as prioridades e responde à população pelas ações realizadas pelos promotores. Nesse sentido, o arranjo do Ministério Público não se mostra compatível com a democracia, já que o maior espaço para a discricionariedade dos agentes deveria ser acompanhado de um aumento proporcional e substantivo nos mecanismos de sanção e prestação de contas. Para o autor, “quanto maior a discricionariedade, maior [deveria ser] a accountability” (KERCHE, 2014, p. 117, acréscimo meu).
Dessa maneira, quando há a mudança institucional da ação do MPF, de instituição defensora de direitos até meados dos anos 1990 para a prioridade absoluta do combate à corrupção nos anos 2000, o fator endógeno é determinante. De fato, o insulamento institucional e a falta de controle por parte da sociedade civil organizada resultaram na prevalência do voluntarismo político entre procuradores da República, que se consideravam melhores representantes da sociedade do que os representantes eleitos (ARANTES, 2002), e, por isso, desimcumbidos de tomar decisões com critérios que pareçam claros à sociedade hipossuficiente que representa. O quadro institucional mais amplo também favorecia o redirecionamento do MPF para privilegiar o combate à corrupção: o precedente do Mensalão, do Banestado e da Satiagraha; a Lei de Organizações Criminosas, que cimentou a preferência da ação penal em detrimento da ação civil pública como instrumento de combate à corrupção; a possibilidade de condução de inquéritos penais permitida pelo STF em 2015.
A atuação de Rodrigo Janot à frente da Procuradoria-Geral da República representa bem o processo de substituição de prioridades do MPF. Em sua autobiografia, o ex-PGR expressa a ambição de não ficar “apenas no gabinete, desenvolvendo diagnósticos”, e como exemplo relata a viagem que realizou no Presídio Central de Porto Alegre, instituição que à época já havia sido reiteradamente denunciada por violações a direitos humanos. As condições insalubres vivenciadas pela população carcerária inspiraram um esforço por parte da cúpula da PGR para criar um plano de reforma prisional, que, no entanto, foi abandonado após o redirecionamento para o padrão accountabillity de atuação institucional.
O plano de reformulação do sistema penitenciário ficou pronto, com cronograma e tudo mais, e ganhou nome: Segurança sem Violência. Nossa ideia era que ele fosse deslanchado depois das eleições de outubro de 2014, com o envolvimento dos novos governadores eleitos. Nossa visita ao Presídio Central de Porto Alegre ocorreu no dia 17 de março de 2014. No mesmo dia, a Polícia Federal desencadeou certa Operação Lava Jato. A partir dali, começou a se formar no Paraná um turbilhão que mudaria completamente a minha atuação como procurador-geral. O projeto Segurança sem Violência foi relegado a segundo plano, e até hoje dormita em algum escaninho do Conselho Nacional do Ministério Público (JANOT, 2019, p. 37, grifos meus)
Janot foi responsável pela criação da “força-tarefa de Curitiba” e pela carta branca concedida à Deltan Dallagnol para tocar livremente a investigação (JANOT, 2019, p. 39). Permitiu ao grupo de procuradores a ocupação de um conjunto de salas fora da sede do Ministério Público, para que os procuradores tivessem “tranquilidade e segurança para fazer o trabalho necessário” (JANOT, 2019, p. 39). Quando a operação passou a atingir, ainda em 2013, políticos com foro privilegiado, Janot autorizou o repasse dessas investigações, atribuição típica de PGR, aos procuradores de Curitiba. Conforme aponta Milena Santiago (2022), o redirecionamento da vocação institucional ao combate à corrupção gerou em consequência uma maior necessidade de cooperação entre procuradores da República e a disseminação do modelo de força-tarefa que buscou responder à nova dinâmica interna ao MPF. No plano da cooperação internacional, Janot instalou dentro do gabinete da PGR uma estrutura exclusiva para esses fins, a Secretaria de Cooperação Internacional, que atuou intensamente para exportar o modelo anticorrupção da Lava Jato para outros países da América Latina.
No entanto, quando os conteúdos dos acordos de delação de Alberto Youssef e Paulo Roberto Costa não atingiram o nível esperado por Janot[2], o PGR passou a “botar ordem na casa”, recentralizando algumas atribuições consideradas essenciais de volta para sua equipe em Brasília. Além disso, com a lógica de que “se mais tarde eu seria responsabilizado pelo sucesso ou fracasso dessas delações, nada mais justo que atuar nesses acordos desde o nascedouro” (JANOT, 2019, p. 43), Janot criou formas de unificar e fiscalizar procedimentos anticorrupção realizados no MPF como um todo. Dessa maneira, a criação de novos órgãos como os Núcleos de Combate à Corrupção (NCCs) e as reorganizações administrativas como a promovida pela Resolução do Conselho Superior do MPF no. 148 de 2014 são marcas da gestão Janot na PGR[3].
A ação de Rodrigo Janot no contexto da Operação Lava Jato, assim como suas manifestações públicas e produções bibliográficas, permite enquadrá-lo como um empreendedor jurídico da probidade administrativa e do combate à corrupção no Brasil. No caso de Janot, o título de Procurador-Geral da República em si indica a inclusão em redes de conexões pessoais e políticas que apenas o grupo dominante do campo jurídico consegue acessar. Mobilizando o capital jurídico e político acumulado, o ex-PGR implementou mudanças administrativas profundas no MPF que se traduziram em consequências políticas bastante concretas. Frederico de Almeida, ao analisar o impacto da operação na América Latina, afirma que
Os casos de Brasil, Peru e Argentina demonstram o impacto da Operação Lava Jato em termos de mudança política. Nos três casos, partidos e lideranças historicamente ligadas ao trabalhismo, à esquerda e à centro-esquerda foram afetados pela Operação, levando a períodos de crise política, mas também de tentativas mais ou menos bem sucedidas de neoliberalização. No Brasil, a Lava Jato teve relação direta com o impeachment de Dilma Rousseff e com a eleição de Bolsonaro, que teve em seu governo o ex-juiz Moro, baseado em uma coalizão parlamentar fisiológica e em uma coalizão social conservadora e autoritária, fortalecidas pelos apelos antissistêmicos que os próprios membros da Lava Jato construíram em suas ações públicas. (ALMEIDA, 2022, p. 791)
Para a racionalidade política neoliberal, a existência da corrupção está relacionada à existência do Estado executor de políticas públicas. Nesse aspecto, a atuação do Ministério Público Federal na Operação Lava Jato foi além da accountability em casos concretos de corrupção. O estímulo estatal à competitividade nos setores de oil & gas e construção civil, e as políticas intervencionistas como um todo, sofreram profunda deslegitimação como forma viável de governo. A disseminação da fobia do Estado atinge a confiança popular na forma representativa de governo e nas instâncias eleitorais. Não obstante o vocabulário neutro e técnico do combate jurídico à corrupção, o projeto político que a Lava Jato impulsionou é decididamente reacionário.
A consolidação da virada autoritária se deu a partir do governo Bolsonaro, em 2018. Com as tendências centralizadoras de um autocrata, Bolsonaro não demonstrou apreço a mecanismos de fiscalização que atentassem contra seu modo de governar. Desse modo, a nomeação de Aras por Bolsonaro foi motivada por alinhamento político e não mostrou deferência à lista tríplice elaborada pela Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR). De maneira pouco óbvia para uma carreira marcada pelo corporativismo, Aras se alinhou mais ao presidente que à classe. Manifestações públicas da liderança profissional do MPF demonstraram clara discordância à gestão dele na PGR[4].
Exemplo ocorrido no início da pandemia foi quando Aras paralisou a expedição de notificações, requisições e intimações por membros do MPF ao governo federal. Em 08 de abril de 2014, o PGR assinou e enviou cerca de 20 ofícios para todos os ministros do governo federal, orientando-os a recusar recomendações expedidas por membros do MPF, que deveriam ser encaminhadas ao Gabinete Integrado de Acompanhamento à Epidemia do Coronavírus-19, órgão da PGR. A postura centralizadora de Aras, que indicou nos ofícios que poderia reexaminar o conteúdo das recomendações, gerou reação nas instâncias regionais do MPF. Por meio de nota pública circulada por procuradores de todo o Brasil, a diretoria da ANPR classificou a atuação do PGR como uma violação da independência funcional e uma deturpação do princípio da unidade institucional (ANPR, 2020). Em tom contundente, afirmam que Aras agiu em defesa da União
ao informar a existência de suposta irregularidade, não individualizada, e consistente apenas na inobservância de prerrogativa formal, o PGR executa uma análise que competiria exclusivamente ao agente público destinatário que, inclusive, no caso dos ofícios acima referidos, poderia eventualmente se valer de consulta à assessoria jurídica dos respectivos ministros de Estado. Para tanto, houve a reserva constitucional dessa atribuição à Advocacia-Geral da União que, inclusive, possui advogados públicos atuando nas consultorias jurídicas de todos os ministérios (ANPR, 2020, p. 3)
O posicionamento acima demonstra a disputa interna gerada pela chefia de Aras que se agrava durante a crise sanitária. A omissão da PGR diante das condutas criminosas do Poder Executivo federal contrasta com instâncias regionais do MPF que se engajaram na responsabilização do governo federal e do próprio Presidente da República[5]. As eleições de 2022 foram outro momento de grande conflito intrainstitucional, tendo em vista as ações das forças aliadas ao bolsonarismo que visaram manipular ou deslegitimar os resultados eleitorais. Novamente, a omissão da PGR gerou revolta e 200 procuradores da República enviaram memorando conjunto responsabilizando Aras por assistir impassivelmente ao cenário de insurreição, sem comandar uma ação coordenada do MPF, sem sequer instaurar inquéritos para apurar os bloqueios.
Aqui, retomar a formulação de Fraser (2019) acerca da virada autoritária do neoliberalismo se faz necessário para compreender a relação da racionalidade política neoliberal com o projeto bolsonarista. De maneira semelhante à Trump, a retórica reacionária de Bolsonaro contra minorias sociais e a favor de um fundamentalismo neopentecostal foi aliada a uma política econômica neoliberal. O mercado financeiro apoiou o projeto bolsonarista na medida em que este incluía seus interesses na pessoa de Paulo Guedes, o principal ministro de Bolsonaro. A fusão da Fazenda com as pastas de Planejamento e Indústria, Comércio Exterior e Serviços que criou o “Superministério” da Economia parece sintomática da combinação entre elementos da racionalidade neoliberal com o populismo de direita. Neste concerto, o combate à corrupção já teria cumprido seu papel primordial de desmantelar o Estado interventor-executor, e a PGR passa a adotar um discurso em prol do equilíbrio, contra excessos e ativismos considerados “partidários”. A recalibração da cúpula do MPF em direção a uma atitude mais moderada e cautelosa funciona bem para a manutenção do projeto neoliberal de Bolsonaro-Guedes, que não suportaria o escrutínio realizado por mecanismos fortes de accountability.
Considerando o processo de desdemocratização e autocratização que assola a comunidade política brasileira desde 2014, duas lideranças institucionais destacaram-se: Rodrigo Janot e Augusto Aras à frente da Procuradoria-Geral da República. Por mais que o lavajatismo de Janot e o discurso contra o ativismo judicial de Aras sejam opostos em muitos aspectos, as duas posturas representam um contínuo enfraquecimento do Estado Democrático de Direito no Brasil. Por um lado, o combate à corrupção no âmbito da Operação Lava Jato foi acompanhado por violações ao devido processo legal, como o uso de prisões preventivas prolongadas e a divulgação seletiva de informações ao público, que contribuíram para o enfraquecimento das instituições democráticas e o avanço de práticas autoritárias. Por outro, a retórica de moderação pós-Lava Jato de Aras representa um alinhamento com o governo federal que impediu a fiscalização e responsabilização da gestão pública na administração Bolsonaro. Ambas estratégias foram fundamentais para a virada autoritária do neoliberalismo no Brasil. Os voluntarismos políticos existentes na atuação da PGR desde 2014 parecem interditar a possibilidade de uma accountability efetivamente democrática no Brasil.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Frederico de. Corrupção, democracia e neoliberalismo nas Américas. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar, v. 12, n. 3, 2022.
ANPR – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PROCURADORES DA REPÚBLICA. Nota pública sobre ato da PGR contra a independência funcional dos membros do MPF. Brasília, 2020. Disponível em: https://www.anpr.org.br/imprensa/noticias/23980-nota-publica-sobre-ato-da-pgr-contra-a-independencia-funcional-dos-membros-do-mpf . Acesso em: 17 ago. 2023.
ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público e política no Brasil. Editora Sumaré, 2002.
FRASER, Nancy. The old is dying and the new cannot be born: from progressive neoliberalism to Trump and beyond. Verso Books, 2019.
JANOT, Rodrigo; DE CARVALHO, Jailton. Nada menos que tudo: bastidores da operação que colocou o sistema político em xeque. Planeta Estratégia, 2019.
KERCHE, Fábio. O Ministério Público no Brasil: relevância, características e uma agenda para o futuro. Revista USP, n. 101, p. 113-120, 2014.
SANTIAGO, Milena Brentini. O Ministério Público Federal e sua” vocação” de combate à corrupção: conflitos sociais e ideologia institucional. Revista de Ciências Sociais: RCS, v. 53, n. 2, p. 107-152, 2022.
[1] Mestranda em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista CAPES, membro do Laboratório de Estudos sobre Política e Criminologia (Polcrim) e da equipe editorial do Boletim Lua Nova. E-mail: sofiapieruccettigutierrez@gmail.com.
[2] Em sua autobiografia, fica claro como o sucesso da Lava Jato era para Janot uma empreitada altamente pessoal. Sobre as primeiras delações colhidas pela força-tarefa curitibana, o ex-PGR afirma que “não teríamos como pedir alguns importantes inquéritos só com base nas parcas informações fornecidas por Youssef e Paulo Roberto Costa. O Supremo certamente não atenderia a esses pedidos. Seria um vexame. Por outro lado, se não pedíssemos inquéritos sobre os políticos referidos, depois de tudo que vinha sendo dito sobre os segredos do doleiro e do ex-diretor da Petrobras, seríamos acusados de não levar adiante uma das mais importantes etapas da Lava Jato, que era a caçada a deputados, senadores e ministros, os donos do poder, que ainda estavam no topo. Estávamos numa enrascada. Naquele dia fui para casa deprimido. Dizia para mim mesmo: Eu tô ferrado, todo mundo especulando com o negócio da lista do Janot, todo mundo fazendo um escarcéu danado, e a lista do Janot vai virar um traque” (JANOT, 2019, p. 42)
[3] A Resolução CSMPF n° 148, de 10 de abril de 2014, promoveu uma transformação na estrutura de organização temática das Câmaras de Coordenação e Revisão do MPF.
[4] Ubiratan Cazetta, presidente da ANPR, disse à imprensa que não houve, no primeiro mandato de Aras, “um momento de paz efetiva em que todas as medidas tenham sido consideradas suficientes”. Disponível em <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/primeiro-mandato-de-aras-foi-marcado-por-conflitos-avalia-presidente-da-anpr/>. Acesso em 09.07.2023.
[5] Alguns exemplos de manchetes retiradas do portal de notícias da ANPR são: “MPF processa governo federal por falas contraditórias sobre a Covid-19”; “Covid:19: atuação do MPF nas diretrizes do PNI e na aquisição de medicamentos”; “MPF no Rio atua para garantir recurso e leitos aos hospitais federais”; “MPF atua no combate à Covid-19 e cobra providências de autoridades”; “MPF em 24 estados e no DF pede medidas urgentes contra a Covid-19”.
Fonte Imagética: By Conselho Nacional do Ministério Público – https://www.flickr.com/photos/conselhodomp/52372078020/, CC BY-SA 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=126339441. Acesso em 14 ago 2023.