Lívia Mendes Moreira Miraglia[1]
Maurício Krepsky Fagundes[2]
O Balanço de 2020 da Atuação da Inspeção do Trabalho no Brasil, relatório inédito elaborado pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), constatou que, historicamente, homens jovens, negros e pardos, com baixa escolaridade ou analfabetos são as principais vítimas do trabalho escravo contemporâneo no Brasil.
O documento tem como fonte as informações extraídas das guias de Seguro-Desemprego do Trabalhador Resgatado (SDTR) emitidas pelos auditores-fiscais do trabalho no período de 2004 a 2022. De acordo com os dados, 94% dos trabalhadores resgatados eram homens, 28% possuíam idade entre 18 e 24 anos, 37% cursaram até o 5º ano de forma incompleta e 30% eram analfabetos. Quanto à origem, historicamente, o Maranhão figura como o estado com maior naturalidade e residência, sendo 22% nascidos no Maranhão e 17% residentes nesse estado quando resgatados.
Percebe-se que as mulheres representam apenas 6% das pessoas submetidas a condições análogas às de escravo no país, segundo os dados do Seguro-Desemprego para trabalhadores resgatados. Historicamente, as principais atividades econômicas que exploram trabalho escravo são, em sua maioria, rurais com ênfase em atividades de roço, desmatamento, construção de cercas, dentre outras. Trabalhos que exigem força física e que por essa razão são comumente associados à mão de obra masculina.
O primeiro resgate de trabalhadora doméstica de condições de escravidão contemporânea ocorreu pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), em 2017, em Minas Gerais. Usualmente, o grupo atua em empresas rurais ou urbanas, sendo toda sua estrutura e procedimento estabelecido dentre desse formato. A fiscalização no âmbito de uma residência urbana foi a primeira inserida em uma ação de combate ao trabalho escravo e gerou a necessidade de adaptação da lógica de atuação do grupo que vem, desde então, sendo aprimorada em face das peculiaridades desses casos.
Em 2017, pesquisa realizada pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas (CTETP) da Faculdade de Direito da UFMG analisou 373 autos de infração lavrados em Minas Gerais no período de 2004 a 2017. A pesquisa verificou que, dentre os 157 em que se constatou trabalho em condições análogas à escravidão, apenas um, esse de Rubim, tratava de trabalho escravo doméstico. E concluiu que:
Provavelmente, a causa para o ínfimo percentual não é a raridade de sua ocorrência, mas a sua invisibilidade. Sendo a atividade doméstica prestada no interior de residências familiares, a descoberta e a fiscalização de situações de exploração são bastante dificultadas e dependem, principalmente, de “denúncias” de pessoas próximas à vítima. Contudo, a barreira, praticamente física, parece não ser a única explicação para o fato de a servidão doméstica permanecer oculta em nossa sociedade. Somada a ela, pode-se supor elevado grau de aceitação cultural dessas práticas, que contribuem para, de certa forma, preservá-las[3].
A pesquisa suscitou a hipótese que vem se comprovando nos últimos anos, qual seja, de que, embora não fosse possível quantificar quantas pessoas se encontram nessas condições, não se pode negar a existência da prática abusiva, o que exige “a busca de meios protetivos capazes de assegurar que as empregadas domésticas não sejam submetidas a condições análogas à de escravo”.
Os dados do Radar SIT mostram que, em 2017, foram 2 resgates, em 2018 foram 3, em 2019 foram 5 e em 2020 foram 3 pessoas resgatadas do trabalho escravo doméstico. Em 2021 e 2022 o número de resgates aumentou para 31 em cada ano, e há uma hipótese muito provável para essa ampliação considerável: a visibilidade que o assunto ganhou em razão da notoriedade e publicidade de um caso que alterou os rumos do combate ao trabalho escravo doméstico: o de Madalena Gordiano, mulher negra de 38 anos, escravizada por uma família de professores de classe média alta em Patos de Minas, Minas Gerais.
A história, divulgada no programa Fantástico da Rede Globo em dezembro de 2020 foi amplamente replicada pela imprensa nas semanas seguintes, até mesmo pela imprensa internacional – vide o sítio do El País. Desde a implementação do sistema de seguro-desemprego especial para trabalhador resgatado, em 2003, Madalena foi a trabalhadora com o maior tempo de exploração do trabalho escravo. Ao ganhar os holofotes, o caso de Madalena provocou incômodo capaz de provocar abalos que alteraram as estruturas e permitiram guinada diferente nos rumos das coisas.
Reflexo disso foi o aumento de denúncias dessa natureza, o que motivou mais ações fiscais e 31 trabalhadoras resgatadas em 2021 e mais 31 resgatadas em 2022. Nas denúncias que não resultaram em reconhecimento de condição análoga à escravidão, havia, no mínimo, uma informalidade muito grande. Tal consequência foi denominada por Maurício Krepsky Fagundes de “efeito Madalena”. O seu ex-empregador foi incluído em 5 de abril de 2023 no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas às de escravo, mais conhecido como Lista Suja do Trabalho Escravo, ferramenta de transparência pública ativa criada pela Inspeção do Trabalho em 2003 e mantida na página do Ministério do Trabalho e Emprego.
Um ano após o resgate de Madalena o número de vítimas resgatadas no país foi dez vezes maior do que em 2020 e o número de ações fiscais voltadas para o combate ao trabalho escravo doméstico subiu de 4 para 56 em 2021, ou seja, catorze vezes mais. De acordo com o Radar do Trabalho Escravo da SIT, o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, com as ações fiscais concluídas até 14 de junho de 2023, foram resgatadas 7 pessoas de trabalho escravo doméstico no país até essa data.
Outra pesquisa realizada pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas (CTETP) que analisou 335 autos de infração no estado de Minas Gerais no período de 2017 a 2022, identificou 11 casos de trabalho escravo doméstico dentre os 174 casos de trabalho escravo encontrado. Ainda é um número tímido, mas já é 10 vezes maior do que o encontrado na primeira pesquisa que, entre 2004 e 2017, havia constatado apenas 1 entre os 157 autos de infração que concluíram pela existência de trabalho análogo à escravidão. Ou seja, não há dúvidas acerca do efeito Madalena.
Conforme dados da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE/MTE), em 18 unidades da Federação, 75 pessoas foram resgatadas de trabalho escravo doméstico de 2017 a 2022. A Bahia é o estado com mais trabalhadoras domésticas resgatadas (21), seguido de São Paulo (16) e Minas Gerais (11), sendo que aproximadamente 77% dos casos ocorreram em residências urbanas.
Com base nas guias de Seguro-Desemprego de Trabalhador Resgatado, emitidas pelos auditores-fiscais do trabalho, com a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) 5121-05 (Empregado doméstico nos serviços gerais), apurou-se que 86% das pessoas resgatadas de trabalho escravo doméstico são mulheres, apesar da proporção histórica de mulheres resgatadas ser de 6% na totalidade das atividades econômicas. A pesquisa realizada pela CTETP em Minas Gerais no período de 2017 a 2022, observou que, dentre as 11 pessoas resgatadas do trabalho escravo doméstico, 7 eram mulheres e 4 eram homens.
Gênero é o único parâmetro do perfil social que se diferencia totalmente no trabalho escravo doméstico, uma vez que os demais guardam certa relação com o perfil das demais vítimas. Cerca de 34% das trabalhadoras e dos trabalhadores resgatados de trabalho escravo doméstico tinha até o 5º ano de estudo incompleto e outros 34% eram analfabetas, 5% tinha o ensino fundamental completo, 5% até o 5º ano completos, 4% do 6º aos 9º anos incompletos, 5% não completaram o ensino médio e 11% com ensino médio completo. Percebe-se que grande parte das vítimas de trabalho escravo doméstico teve pouca ou nenhuma escolaridade.
A base do seguro-desemprego especial para vítimas de trabalho escravo indica que, em relação à autodeclaração de raça, 80% se declararam pretas ou pardas, 13% brancas, 5% amarelas e 2% indígenas. Esse recorte de raça do trabalho escravo doméstico é bastante similar ao perfil dos resgatados em 2022 em todas as atividades econômicas, onde 83% eram pretos ou pardos, 15% eram brancos e 2% eram indígenas.
Pesquisa do IPEA aponta que 6,2 milhões de pessoas estavam empregadas formalmente no serviço doméstico, sendo que 3,9 milhões eram mulheres negras, ou seja, 63% do total. Ainda segundo a pesquisa do IPEA, o trabalho doméstico é desvalorizado socialmente e possui baixa remuneração, sendo em média, 92% do salário-mínimo nacional. As disparidades regionais são acentuadas, de forma que no Nordeste o percentual ficou em 58% do salário-mínimo. Ademais, 73%, ou seja, mais de dois terços dos trabalhadores domésticos não têm carteira de trabalho assinada[4], assim como não tinha Madalena e nem as outras 73 pessoas resgatadas do trabalho escravo doméstico na história recente do Brasil.
É preciso, então, que se diga que o trabalho escravo doméstico possui gênero, cor e classe social. Ademais, a sua permanência é a evidência de um passado escravocrata, racista e machista que insiste em nos assombrar. É reflexo da cor e do gênero que marca as relações de trabalho doméstico em um país no qual, em 2018, 14,6% das mulheres brasileiras ocupadas concentravam-se em atividades remuneradas no trabalho doméstico, enquanto entre os homens esse percentual não chegava nem a 1% dos ocupados.
O trabalho escravo doméstico é fruto de uma herança de quase quatro séculos de escravidão legal ainda enraizada na cultura brasileira que faz com que as próprias trabalhadoras não se reconheçam como vítimas e constitui-se como obstáculo à repressão do trabalho escravo doméstico, perpetuando a sua invisibilidade e tornando tão difícil o rompimento dos grilhões que aprisionam essas trabalhadoras em pleno século XXI.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
[1] Pós doutora em Direito pela Unb. Doutora em Direito do Trabalho pela UFMG. Mestre em Direito do Trabalho pela Puc Minas. Professora associada da Faculdade de Direito da UFMG. Coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG. Presidente da Comissão de Enfrentamento ao Trabalho Escravo Contemporânea da OAB/MG. Advogada. E-mail: liviamiraglia@gmail.com
[2] Mestrando em Applied Human Rights na Universidade de York com Bolsa Chevening. Auditor-Fiscal do Trabalho da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Análogo ao de Escravo (DETRAE). Graduado em Física pela Universidade de Brasília. E-mail: mauricio.fagundes@mtp.gov.br
[3] HADDAD, Carlos HB; MIRAGLIA, Lívia MM. Trabalho escravo: entre os achados da fiscalização e as respostas judiciais. Tribo da Ilha, 2018.
[4] IPEA. Os Desafios do Passado no Trabalho Doméstico do Século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD Contínua. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília: Rio de Janeiro: Ipea, 2019. p. 7. Disponível em: <https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/9538>. Acesso em 16 de agosto de 2023.
Fonte Imagética: Primeiro resgate de trabalho doméstico no Brasil em 2017, na cidade de Rubim-MG, registra o momento em que o auditor está carimbando a digital da trabalhadora na guia de seguro desemprego. Foto gentilmente cedida pelo autor Maurício Krepsky Fagundes.