Carlos Eduardo Rezende Landim[1]
Leia a primeira parte aqui.
Na primeira seção deste escrito, buscou-se situar as ideias com as quais Woodrow Wilson esteve em constante diálogo e que, em grande medida, moldaram sua prática política. Em contraponto a visão dominante que projeta nesse período histórico um ethos emancipatório assentado no internacionalismo liberal wilsoniano, buscamos sustentar que a prática política de Wilson operou como um projeto de reorganização do sistema internacional movido pela prática do colonialismo. Nesta parte, serão evidenciados os traços da política externa wilsoniana, sustentando que um exame sistemático de suas ideias e de sua prática política não permite afirmar que houve uma falência de um projeto do seu projeto “idealista”, como apontado pelos realistas, mas na realidade, tal projeto nunca foi perseguido por Wilson.
A Diplomacia Colonial wilsoniana
A prática política wilsoniana nunca esteve distante do caldo intelectual que o formou, embora ao longo de sua trajetória tenha se apresentado ora mais próximo, ora mais distante das proposições teóricas que formavam seu imaginário.Há uma vasta literatura que orienta os estudos sobre o legado da orientação diplomática e da prática política wilsoniana (ANIEVAS, 2014; MORGENTHAU, 1950; THRONTVEIT, 2011; LINK, 1979).
As posições variam em relação a herança de Woodrow Wilson, como pode-se observar na divergência entre Anievas (2014) e Link (1979). O primeiro argumenta que os princípios de soberania e autodeterminação não foram contemplados satisfatoriamente nos Quatorze Pontos e nunca foram centrais ao seu programa de paz, enquanto o segundo defende que a forte crença de Wilson na autodeterminação nacional o tornou o primeiro descolonizador eficaz entre os estadistas do século XX. Tendo em vista que não é viável aplicar padrões sistemáticos de análise sem tomar como medida referências teóricas específicas devido à multiplicidade de concepções acerca do objeto, a reflexão será norteada tomando como principais referências os trabalhos de Manela (2007) e Anievas (2014).
Ao chegar à presidência, Wilson adotou uma posição mais equilibrada e com um viés “pragmático” no discurso colonial. Entoando o personagem heróico de um pacifista simpático à causa da autodeterminação, ele foi obrigado a flexibilizar a norma discursiva dos domínios estadunidenses adquiridos na Guerra Hispano-Americana sem alterar, no entanto, a agressividade política do processo. Um exemplo disso é a nomeação de Francis Burton Harrison, um democrata de espírito liberal, como governador das ilhas Filipinas, com instruções para dar mais voz às maiorias Filipinas nas casas de legislatura para testar seu “senso de autogoverno” (MANELA, 2007, p. 310).
Segundo ele, o sucesso dos Estados Unidos nesta tarefa seria mais do que apenas uma questão de interesse doméstico, mas um teste prático dos ideais e princípios americanos, realizado perante um público global. Refletindo a visão que mais tarde tentaria implementar no sistema de mandato da Liga das Nações, Wilson declarou que os Estados Unidos era um ‘‘administrador’’ de suas possessões no exterior. Nessa lógica, a ocupação desses territórios não ocorria para promover os interesses estadunidenses, mas para cumprir um dever civilizatório. Segundo ele, uma nova era estava surgindo nas relações entre as potências avançadas e as regiões em desenvolvimento: “Esses territórios, antes considerados como meras possessões, não devem mais ser explorados de forma egoísta; fazem parte do domínio da consciência pública e da utilidade de um estadista esclarecido” (Annual Message to Congress, 1913)[2].
Em 1919, após o Fim da Guerra e o sucesso de construção de uma imagem de agente da causa emancipatória e na tentativa de defender a entrada dos Estados Unidos na Liga, Wilson chegou a dizer que a Independência das Filipinas estava em um horizonte próximo e que a Liga era a instituição capaz de resolver o problema desconcertante sobre como se separar das Filipinas. A liga, sugeria ele, garantiria a integridade territorial do país, salvaguardando os interesses estadunidenses na região e poupando-se do estigma colonialista. Além disso, existia a possibilidade de interferência da Liga para colocar as Filipinas sob supervisão estadunidense no Sistema de Mandatos (ROSEMBERG, 2014).
A afronta ao princípio de autodeterminação evidente nessa posição apresenta contradições. Lynch (2002) aponta que, para Wilson, o direito à autodeterminação estava enraizado na tradição anglo-americana do nacionalismo cívico e a fonte de soberania dos preceitos políticos era de natureza liberal e ocidental. Por isso, quando mencionava a autodeterminação, o que pretendia expressar não era compatível com o que seus entusiastas dos países colonizados compreendiam. Essa tese, ainda que não seja equivocada no argumento de que Wilson era um proponente de uma visão liberal e paternalista dos povos do terceiro mundo, não explica o pano de fundo da estratégia wilsoniana.
Trata-se, na realidade, de uma ideologia proponente de uma “grande estratégia” de política externa resultante de uma solução pretendida para as consequências geopolíticas do desenvolvimento do capitalismo industrial e uma resposta às condições propícias à revolução gerada pelo desenvolvimento desigual do capitalismo (ANIEVAS, 2014). As origens socioeconômicas e políticas determinantes da estratégia wilsonianiana são, portanto, resultado direto do triunfo e da transformação do capitalismo em sua forma histórica imperialista.
Quando Wilson proclama que não deveria existir mais uma ordem mundial baseada no equilíbrio de poder com rivalidades organizadas, mas sim uma comunidade de nações com um objetivo de paz comum, estava anunciando que a tradição europeia de dominação tornara-se obsoleta, ao mesmo tempo em que a sociedade internacional se convertia em sociedade mundializada (NASSER, 2010, p. 119). A necessidade de reorganização deveria ser levada a cabo por uma estratégia de política externa que fosse capaz de adequar o Sistema Internacional para esse momento de transformação em que existia o risco iminente da eclosão de revoluções em diversos países. Nesse horizonte, o papel contrarrevolucionário de Wilson tornou-se chave para sua estratégia de política externa.
Portanto, não é possível dizer que existia uma suposta contradição entre o que Wilson pretendia dizer e o que era interpretado pelos movimentos anti-coloniais, mas havia uma tática deliberada de aparecer como um militante da causa da autodeterminação para conduzir uma nova ordem internacional fundada no liberal-internacionalismo que previa os Estados Unidos como condutor do mundo rumo a democracia.
Existe outro ponto de vista que encontra eco nas interpretações sobre o legado e o papel de Woodrow Wilson nas Relações Internacionais, a saber, a visão realista de Hans Morgenthau (1950) e Kennan (1951). O Realismo interpreta que a garantia tradicional da ordem geopolítica estava balizada pelo equilíbrio de poder. Esses autores sustentam que a posição moralista e utópica que guiou o presidente estadunidense o levou a substituir o interesse nacional na busca pela construção de uma comunidade de interesses internacionais pacífica e harmoniosa de inviável sucesso na paz de Versailles. A diplomacia wilsoniana seria, segundo essa visão, um fator central na construção da paz imperfeita e em suas consequências desestabilizadoras durante o período entre guerras. Há, no entanto, um problema nessa interpretação.
Os termos “idealismo” e “utopismo”, tomados da interpretação de Carr (1981) fornecem uma inconsistência teórica que coloca Wilson como um estadista, que evita a política de poder em nome de princípios morais abstratos e ignora a substância central da sua política, desconsiderando as determinações sócio-históricas responsáveis pela emergência do wilsonianismo como ideologia de Política Externa (ANIEVAS, 2014, p. 110-111). A diplomacia wilsoniana pode ser conceituada como uma resposta orgânica ao desenvolvimento dos Estados Unidos no contexto das condições internacionais e socioeconômicas significativamente alteradas do capitalismo mundial do início do século XX.
Nesse diapasão, se é verdade, como pontua Cox (2013), que toda e qualquer teoria é “sempre para alguém e serve a algum propósito”, compreende-se que os desdobramentos da ideologia wilsoniana que foi elevado a nível de status teórico, cumpre papel fundamental na conformação dessas ideias hegemônicas que legitimaram e conformaram o novo mundo que surgia após o fim da Primeira Guerra Mundial. Portanto, o constructo do ideário político wilsoniano aliado a sua prática de política externa deve ser pensado a partir do próprio desenvolvimento dessa agenda política balizada pelo sucesso na obtenção de consenso internacional que respaldou a prática colonial pós Primeira Guerra Mundial.
Considerações Finais
As forças políticas hegemônicas não são munidas apenas de potencial bélico e econômico, mas também de ideias. A ideia de incapacidade de organização social soberana dos países periféricos, herdadas do princípio ideológico do “fardo do homem branco” cultivado nos debates de Ciência Política estadunidense, foram centrais no sucesso da política externa wilsoniana. O colonialismo foi o substrato político sobre o qual repousou a tentativa de Wilson de organizar uma nova ordem internacional balizada na firme convicção da superioridade do sistema social dos Estados Unidos.
Apesar do véu emancipador do discurso wilsoniano anteriormente ao fim da Primeira Guerra, um exame sistemático de suas ideias e de sua prática política não permite afirmar que houve uma falência do projeto idealista baseado no consenso, mas que o liberal-internacionalismo atuou como projeto de reorganização do Sistema Internacional, em um momento de acirramento das contradições do capitalismo. Além disso, as condições políticas daquele momento histórico, a saber, a falência do modelo clássico dos impérios europeus e a possibilidade de construção de uma nova ordem de dominação sob a liderança dos Estados Unidos foram fundamentais no processo de reorganização colonial.
Há, nesse quesito, uma importante lacuna na literatura. A maioria dos estudos no campo das Relações Internacionais endossam a tese do suposto idealismo wilsoniano alicerçado nos princípios de autodeterminação dos povos e harmonia de interesses. Buscou-se, neste texto, problematizar a tese referida evidenciando que o colonialismo foi o principal mecanismo de manutenção da ordem capitalista após a guerra.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
ANIEVAS, Alexander. International relations between war and revolution: Wilsonian
diplomacy and the making of the Treaty of Versailles. International Politics, Vol. 51, 5.
Macmillan. 2014.
CARR, Edward Hallett. Vinte anos de crise: 1919-1939. ED. Universidade de Brasilia, 1981.
COX, R. W. Fuerzas sociales, estados y órdenes mundiales: Más allá de la Teoría de Relaciones Internacionales. Relaciones Internacionales, 2013.
KENNAN, George F. American Diplomacy, 1900–1950. Chicago: University of Chicago Press, 1951.
LINK, Arthur Stanley. Woodrow Wilson: Revolution, War, and Peace. AHM Publishing Corporation, 1979.
LYNCH, Allen. Woodrow Wilson and the principle of national self-determination’: a reconsideration. Review of International Studies, p. 419-436, 2002.
MANELA, E. The Wilsonian Moment: self-determination and the international origins of anticolonial nationalism. Oxford: Oxford University Press, 2007.
MORGENTHAU, Hans J. The Mainsprings of American Foreign Policy: The National Interest vs. Moral Abstractions. American Political Science Review 44 (4): 833–54, 1950.
NASSER, R. M. Woodrow Wilson e a ideia de ordem hemisférica. Cena Internacional–Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (IREL), 8(2), 2006.
_______. Os arquitetos da política externa norte-americana. Pontifícia Universidade Católica. EDUC, 2010.
ROSENBERG, Emily S. World War I, Wilsonianism, and Challenges to the US Empire. Diplomatic History, v. 38, n. 4, p. 852-863, 2014.
THRONTVEIT, T. The fable of the Fourteen Points: Woodrow Wilson and national self-determination. Diplomatic History, 35(3), 445-481, 2011.
WILSON, Woodrow. The study of administration. Political science quarterly, v. 2, n. 2, p. 197-222, 1887.
[1] Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unicamp/Unesp/Puc-SP), bolsista CAPES sob orientação do Prof. Andrei Koerner. Membro do Corpo Editorial do Boletim Lua Nova do CEDEC, do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) e do Laboratório de Criminologia e Política (POLCRIM).
[2] Disponível em: https://www.presidency.ucsb.edu/documents/first-annual-message-18. Acesso em 24 de jun de 2023.
Fonte Imagética: President Wilson, with his chauffeur George Howard (fotógrafo desconhecido). Disponível em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Woodrow_Wilson_(4435974698).jpg>. Acesso em 24 ago 2023