Maria Lucia Rodrigues da Cruz[1]
Iverson Custódio Kachenski[2]
O artigo Direitos humanos e narrativas visuais do racismo de estado no Brasil publicado pela Confluências – Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) se trata de uma análise interdisciplinar dos processos de violação aos Direitos Humanos no Brasil e a sua relação com o racismo de estado. Nesse sentido, recorremos a fontes imagéticas (da pintura de Debret a imagens capturadas por câmeras de vigilância) que concentram narrativas visuais dos enquadramentos de violência exercidas sobre corpos de pessoas negras. O percurso teórico pautou-se pela análise político-social das articulações históricas que circunscrevem práticas de exclusão e extermínio da população negra no contexto brasileiro.
Buscamos dimensionar, a partir de uma leitura da arqueogenealogia, como o racismo de estado se expande para outras esferas do social, reverberando nos quadros gerais da violência contra a população negra no Brasil. Para tanto, consideramos as contribuições teóricas de autores como Michel Foucault (1926-1984), Giorgio Agamben (1942-) e Judith Butler (1956-), no intuito de repensarmos o biopoder e suas estratégias de segregação e precarização dos corpos racializados. Traçando uma história arqueológica, pautada pelas narrativas visuais, podemos observar um tipo de assinatura da violência que recai sobre os corpos de pessoas negras, que são a priori marcados pelo aparato instrumental do biopoder.
Ao longo de toda a pesquisa pretendíamos mostrar que as imagens que circulam narram as constantes violações de direitos humanos das populações racializadas no Brasil. Argumentamos que a violência praticada sobre esses corpos tem sido uma estratégia do racismo de estado, ou seja, um modelo político fundado na “ideia da pureza da raça, com tudo o que comporta a um só tempo de monístico, de estatal e de biológico” (FOUCAULT, 1999, p. 95). Assim, seguimos a interpretação de Michel Foucault em torno do conceito de racismo de estado, justamente para pensarmos como os atos racistas operam a partir das violências praticadas sobre o corpo racializado no Brasil.
Durante a nossa argumentação, ao tocarmos no ponto jurídico dos Direitos Humanos, lembramos que o Brasil é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos[3] que, dentre diversos direitos a serem preservados, encontra-se disposto o direito à vida. Sustentamos, com base nas narrativas visuais do racismo de estado, que o direito à vida da população negra tem sido constantemente suspenso, inexistindo qualquer garantia de que a vida de pessoas racializadas será digna de preservação e defesa. Pelo contrário, a todo momento justifica-se o exercício da violência contra as populações racializadas, considerando-as um inimigo que precisa ser eliminado. Sob essa perspectiva, mostramos que no Estado Moderno “o racismo se inseriu como mecanismo fundamental do poder, tal como se exerce nos Estados modernos, e que faz com que quase não haja funcionamento moderno do Estado que, em certo momento, em certo limite e em certas condições, não passe pelo racismo” (FOUCAULT, 1999, p. 304).
A experiência cotidiana nos mostra que há uma urgência não somente em repensar o papel dos Direitos Humanos, mas sobretudo, na sua forma de aplicação, que paradoxalmente fica em segundo plano frente às ações do poder estatal – que seleciona e justifica o exercício da violência contra determinadas populações – e aqui inserem-se as pessoas racializadas. Isso leva à naturalização de graves violações aos Direitos Humanos em solo brasileiro. Sabe-se que os Estados signatários da Carta dos Direitos Humanos deveriam assumir a responsabilidade pela efetividade dos direitos assinalados, pensando em ações que orientem políticas de combate à violência.
No contexto brasileiro, ocorre que as dinâmicas de violação aos Direitos Humanos da população negra tornaram-se regra e, muitas vezes, tais casos acabam arquivados ou relegados ao esquecimento. Por isso, o papel fundamental daquilo que denominamos aqui de narrativas visuais, pois através delas podemos retomar, num tom de alerta, que os processos de desumanização, destruição e extermínio da população negra no Brasil devem ser denunciados, e as vítimas lembradas. Isso implica, fundamentalmente, em pensarmos as estratégias biopolíticas do racismo de estado, no intuito de questionarmos “como, nessas condições, é possível, para um poder político, matar, redamar a morte, pedir a morte, mandar matar, dar a ordem de matar, expor à morte não só seus inimigos, mas, até mesmo seus próprios cidadãos? (FOUCAULT, 1999, p. 304).
Em outras palavras, a pergunta é: como a escolhas estatais e sociais puderam, em dado momento, permitir atos que contrariam todas as prerrogativas ético-políticas de um estado que estabelece pactos e alianças em prol da proteção de seus cidadãos e, no entanto, no cotidiano é capaz de não somente levar à morte, mas permitir que outros matem? Pois como afirma Foucault (1999, p. 305), “o racismo faz justamente funcionar, faz atuar essa relação de tipo guerreiro – “se você quer viver, é preciso que o outro morra” – de uma maneira que é inteiramente nova e que, precisamente, é compatível com o exercício do biopoder”.
Assim, é incontestável a necessidade de se recuperar o papel dos Direitos Humanos como parâmetro de reflexão acerca da violência, principalmente para se (re)pensar como podemos formar novas políticas públicas de preservação das vidas de pessoas racializadas. Quando olhamos as práticas do racismo de estado através de imagens temos em si duas possibilidades interpretativas. A primeira, o diagnóstico de um acontecimento terrível (a tortura, o extermínio, a exposição demasiada da população racializada a níveis extremos de violência), que nos permite assumir o entendimento crítico dessa realidade. A segunda forma de interpretação seria apenas a de se admitir que aquela imagem se tornou um elemento banal do cotidiano brasileiro. Em ambas as interpretações podemos e devemos admitir a capacidade de denúncia que as imagens possuem, para além de um olhar hegemônico do mundo, no sentido de que “as fotos circulam na internet, mesmo quando esse não era o seu propósito” (BUTLER, 2019, p. 25).
Esse lugar comum da violência contra a população radicalizada pode ser avaliado a partir do recorte teórico do filósofo Giorgio Agamben, para quem essas vidas são, em verdade, vidas nuas, ou seja, vidas desprovidas de qualquer proteção jurídica. Desse modo, suas mortes não são passíveis de configurarem sacrifício. Pelo contrário, essa “vida nua tem, na política ocidental, este singular privilégio de ser aquilo sobre cuja exclusão se funda a cidade dos homens” (AGAMBEN, 2007, p. 15). São vidas que vivem num estado de exceção permanente, onde se torna impossível distinguir em que momento a vida se encontra sob a vigência da norma vigente ou em sua plena suspensão.
No mesmo sentido, encontramos no pensamento da filósofa estadunidense Judith Butler algumas contribuições que nos ajudaram a entender as dinâmicas de violações aos Direitos Humanos no Brasil, sobretudo quando analisamos os constantes assassinatos de pessoas negras. A filósofa argumenta que existem maneiras, historicamente induzidas, de não se considerar algumas vidas como enlutáveis, ou seja, passíveis de luto. Nesse sentido, Butler sustenta:
o sujeito que não é sujeito não é vivo nem morto, nem completamente constituído como sujeito nem plenamente desconstituído na morte. “Gerenciar” uma população é, portanto, não apenas um processo pelo qual o poder regulador produz um conjunto de sujeitos. É também o processo de dessubjetivação, com enormes consequências políticas e jurídicas. (BUTLER, 2019, p. 124).
Por isso, ao narrarmos visualmente as graves violações aos Direitos Humanos no Brasil, nossa intenção foi de “nos perguntar a partir de qual função na narrativa essas imagens foram mobilizadas” e, além disso, “quais cenas de dor e sofrimento tais imagens cobrem e desrealizam” (BUTLER, 2019, p. 174).
As formas de resistência ao esquecimento de práticas de violação aos Direitos Humanos no Brasil devem ser pensadas a partir das narrativas visuais, que englobam um instrumento de denúncia sobre os aspectos do racismo induzido politicamente. As narrativas visuais relatam algo – que somos dependentes uns dos outros para sobreviver..
Através das imagens de racismo podemos preservar as narrativas de corpos precarizados pelo contexto da violência historicamente construída em nosso país. Narrativas que indicam que nós, enquanto corpos, sempre “estamos expostos aos outros, e embora isso possa ser a condição de nosso desejo, também cria a possibilidade da subjugação e da crueldade” (BUTLER, 2015, p. 95). Indica, também, como dependemos das condições sociais, políticas, e econômicas de sobrevivência. As imagens podem, de algum modo, mudar nossa avaliação política.
Assim, trata-se de compreender que o clamor das imagens de sofrimento relata acontecimentos de indução política de desigualdades. Tais imagens repercutem contextos de violação a direitos humanos, e que nos permitem formular perguntas como:
quem não vai ser protegido pela lei ou, mais especificamente, pela polícia, nas ruas, no trabalho ou em casa, em códigos legais ou instituições religiosas? Quem vai se tornar objeto da violência policial? Quem terá as queixas de agressão negadas e quem vai ser estigmatizado e privado de direitos civis ao mesmo tempo que se torna objeto de fascinação e do prazer consumista? Quem vai ter assistência à saúde perante a lei? Quem terá as relações íntimas de parentesco reconhecidas perante a lei ou criminalizadas pela lei, e quem vai ter que viajar trinta quilômetros para se tornar um novo sujeito de direitos ou um criminoso? (BUTLER, 2018, p.42).
Isso significa, portanto, que as imagens de sofrimento nos dispõem de narrativas históricas de como determinadas vidas são reconhecidas e, assim, protegidas, enquanto outras são constantemente violentadas. Através das imagens de sofrimento localizamos as dimensões políticas que determinam quem deve ser reconhecido como humano. Ao tratarmos do modo como algumas vidas são desconsideradas, abandonadas, recorreremos à sensibilidade das imagens de sofrimento para, a partir delas, desativarmos discursos historicamente estabelecidos que visam determinar: “quais humanos contam como humanos? Quais humanos são dignos de reconhecimento na esfera do aparecimento, e quais não são?” (BUTLER, 2018, p. 43).
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: Quando a vida é passível de Luto? Trad. Sérgio Tadeu de Nicmeyer Limarão e Arnaldo Marques da Cunha; revisão de tradução de Marina Vargas; revisão técnica de Carla Rodrigues. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia / Judith Butler; tradução Fernanda Siqueira Miguens; revisão técnica Carla Rodrigues. – 1a ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência / Judith Butler; [tradução Andreas Lieber; revisão técnica Carla Rodrigues]. I. ed. — Belo Hotizonte: Autêntica Editora, 2019.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CIDH. Secretaria Nacional de Justiça, Comissão de Anistia, Corte Interamericana de Direitos Humanos. Jurisprudência. Trad. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Brasília: Ministério da Justiça, 2014.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. ONU, 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 28 mai. 2023.
[1] Doutoranda em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR, com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR, com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito Curitiba – UNICURITIBA. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4787-5595. E-mail: mari.luciac@gmail.com.
[2] Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e Mestre em Estudos de Linguagens pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (UNICURITIBA), Bacharel em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Especialista em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Mestre em Estudos de Linguagens pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7109-3046. E-mail:ickthe@gmail.com
[3] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm.
Fonte Imagética: Wikimedia Commons. Escravidão no Brasil, por Jean-Baptiste Debret. 30 mar. 2017 [1768-1848]. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Slavery_in_Brazil,_by_Jean-Baptiste_Debret_(1768-1848).jpg>. Acesso em: 13 set. 2023.