Cristina Foroni Consani[1]
Sobre os 50 anos do falecimento de Hans Kelsen, leia também “Hans Kelsen para Além da Reine Rechtslehre”, de Alex Sander Pires, e “Kelsen e Teoria Marxista do Direito”, de Antonio Carlos Wolkmer, publicados no Boletim Lua Nova.
Em 2023 completam-se 50 anos que Hans Kelsen faleceu, aos 92 anos, na cidade estadunidense de Berkeley. Como legado, deixou mais de 400 obras, muitas das quais foram traduzidas para mais de vinte idiomas. Certamente um dos mais importantes juristas do século XX, sua influência permanece não apenas na teoria do direito, mas também na filosofia do direito (com suas discussões a respeito da justiça e do direito natural, assim como do relativismo e do absolutismo no campo epistêmico, e da paz como valor no âmbito das relações internacionais), da sociologia (com foco nos temas da causalidade e da retribuição) e da teoria política (com análises a respeito da Constituição, do Estado, da democracia, da representação, da ideologia, do papel do poder legislativo e dos partidos políticos) – cf. Ladavac, 1998.
Nesta breve e singela homenagem, gostaria de ressaltar alguns dados biográficos e bibliográficos tendo como fio condutor o papel do conflito. Em minha leitura, o conflito é um tema central da reflexão kelseniana em todas as suas grandes contribuições, seja no campo da teoria do direito ou no campo da teoria política. Igualmente, em sua vida pessoal, os conflitos com os quais se deparou marcaram profundamente a sua biografia.
Kelsen nasceu em 11 de outubro de 1881 em Praga. Aos três anos de idade mudou-se com sua família para Viena. Seus estudos ocorreram predominantemente na Áustria com alguns períodos de intercâmbio na vida acadêmica alemã. Foi na Áustria também onde ele desenvolveu os seus primeiros trabalhos a respeito da teoria do direito e da política, e se tornou um renomado jurista.[2] Nascido em uma família judaica, mesmo sendo agnóstico, converteu-se ao cristianismo (ao catolicismo em 1905 e ao protestantismo em 1912) por receio de que as convicções religiosas de sua família pudessem impactar negativamente a sua carreira. Sua estratégia parece ter funcionado bem inicialmente, mas não foi suficiente para protegê-lo nos períodos de domínio nazista. Ele doutorou-se em direito 1906 e em 1911 tornou-se professor de Teoria do Estado e Filosofia do Direito na Universidade de Viena. Durante a Primeira Guerra Mundial, ele trabalhou no Ministério da Guerra, tendo atuado como conselheiro jurídico do ministro da guerra. Em 1919, tornou-se professor titular da faculdade de Direito da Universidade de Viena.
Os dez anos seguintes foram importantes para a consolidação da carreira de Kelsen, tendo sido muito profícuos no âmbito de realizações acadêmicas e profissionais. Ainda em 1919, ele tornou-se um personagem importante na vida política de seu país ao ser convidado a participar da elaboração da Constituição para a Áustria, que deveria seguir o modelo da Constituição de Weimar, também em elaboração, no sentido de ser uma constituição liberal e democrática. Sua principal marca na Constituição foi, certamente, o modelo de jurisdição constitucional da Áustria. Em 1921, Kelsen foi nomeado juiz da Corte Constitucional, tendo exercido bastante influência sobre a sua jurisprudência em muitas ocasiões. Em 1929, todavia, em decorrência das implicações políticas de seu posicionamento jurídico diante do caso das denominadas “dispensas matrimoniais”, acabou por perder o seu cargo de juiz da Corte Constitucional.
Esse caso é exemplar para analisar os problemas oriundos da confusão entre direito, ética e política. Diante de uma ambiguidade na legislação em vigor, as autoridades administrativas na Áustria permitiam a uma pessoa divorciada civilmente casar-se novamente. Devido à influência do catolicismo (que proibia a uma pessoa já casada perante a religião casar-se novamente), contudo, instâncias judiciais inferiores consideravam essa autorização administrativa ilegal e invalidavam o novo casamento. Liderada por Kelsen, a Corte Constitucional austríaca reformulou várias dessas decisões de instâncias judiciais inferiores. Como reação política ao posicionamento da Corte Constitucional, o partido social-cristão, então no governo, promoveu uma reforma constitucional que levou à dissolução da Corte Constitucional e à demissão de todos os seus membros, inclusive Kelsen (cf. Kelsen, 2018). O caso também teve grande repercussão social e Kelsen chegou a ser acusado de favorecer a bigamia, até mesmo cartazes com protestos foram afixados em frente à sua residência. O descontentamento com os acontecimentos posteriores à dissolução da Corte Constitucional o levou a deixar a Áustria e aceitar um cargo como professor de direito internacional na Universidade de Colônia, na Alemanha, onde permaneceu de 1929 até 1933.
Em razão de sua ascendência judaica (entendida mais como uma questão de raça do que de credo) e de sua participação na consolidação da democracia constitucional na Áustria, com a ascensão de Hitler ao poder, Kelsen perdeu seu cargo como docente e precisou deixar imediatamente a Alemanha. Em seguida, conseguiu uma posição como docente em Genebra. Concomitantemente ao trabalho em Genebra, ele foi convidado a lecionar também na Universidade Alemã de Praga, onde desde o início sofreu forte resistência de estudantes e organizações vinculados ao nacional-socialismo, chegando a ser afrontado em sala de aula e até mesmo a ser ameaçado de morte. Permaneceu em Praga até 1938, quando novamente precisou deixar sua posição como docente em razão do avanço da Alemanha sobre a Checoslováquia.
Em 1940, já então com quase 60 anos de idade e parco conhecimento da língua inglesa, Kelsen deixou Genebra e migrou para os Estados Unidos temendo que a Suíça também fosse tomada pelos nazistas. Lá trabalhou como professor temporário tanto na New School for Social Research quanto na Faculdade de Direito de Harvard. Em 1942, foi contratado como professor visitante no departamento de Ciência Política da Universidade de Berkeley, na Califórnia, onde veio a tornar-se professor permanente em 1945. Assim, aos 64 anos, finalmente ele encontra um lar e uma posição acadêmica definitiva em Berkeley.
No âmbito de sua obra, Kelsen tornou-se célebre por sua teoria do direito, que reformulou o positivismo jurídico no século XX ao colocá-lo entre o jusnaturalismo e o positivismo empirista. Por um lado, o jusnaturalismo é uma teoria normativa, mas encontra o fundamento de validade das leis positivas em concepções de moralidade e de justiça de natureza metafísica (natureza, Deus, leis racionais a priori), vinculando-se à denominada “tese da moralidade”, a qual é rejeitada por Kelsen. O positivismo empirista, por sua vez, aceita a “tese da facticidade”, segundo a qual o direito é “‘reduzido a’ uma concatenação de fatos – quer se trate de poder, da vontade do soberano, ou da aceitação do sistema jurídico da comunidade” (Paulson, 1998, p. ?). Nesse sentido, o positivismo empirista esvazia a teoria do direito de sua normatividade.Ao erigir a norma fundamental (uma norma pressuposta) como fundamento de validade das normas jurídicas, ele consegue, por um lado, afastar-se do jusnaturalismo mantendo a separação entre direito e moral, haja vista a norma fundamental não possuir um conteúdo que estabeleça o que é certo ou errado no âmbito do direito e, por outro lado, ele afasta-se também do positivismo empirista e da tese da facticidade, uma vez que o fundamento de validade do direito é uma norma e não um fato (cf. Consani, 2016).
Um ponto importante desta reformulação é a vinculação de Kelsen ao relativismo no campo epistemológico, o que está presente tanto em sua teoria do direito quanto em sua teoria política e em suas reflexões sobre a democracia. É exatamente neste aspecto que sua obra se torna singular por reconhecer e lidar com os conflitos inerentes às sociedades plurais, levando à sério as demandas de igual respeito e consideração pelas diferentes visões de mundo e de justiça coexistentes e em desacordo.
Kelsen refuta o absolutismo filosófico e filia-se a um relativismo filosófico e de valores. O absolutismo é definido por ele como “a concepção metafísica da existência de uma realidade absoluta, i,e., uma realidade que existe independentemente do conhecimento humano” (Kelsen, 2002, p. 347). Segundo ele, no absolutismo, o objeto do conhecimento é considerado independente do sujeito e, por essa razão, sua cognição se dá por leis heterônomas. Seu correspondente político indica uma forma de governo na qual “todo o poder do Estado concentra-se nas mãos de um único indivíduo, ou seja, o governante, cuja vontade é a lei” (Ibid., p. 350). O poder conferido a esta pessoa é ilimitado e submete todos os membros do Estado à sua vontade. Essa definição autoriza Kelsen a identificar o absolutismo político com a autocracia, pois precisará sempre de um valor absoluto, inacessível à ação humana, para ser o fundamento último de seus postulados.
O relativismo filosófico, distintamente, “advoga a doutrina empírica de que a realidade só existe no interior do conhecimento humano e que, enquanto objeto do conhecimento, a realidade é relativa ao sujeito cognoscente” (Kelsen, 2002, p. 347-8). Por conseguinte, no relativismo político também vigora a aceitação de que os valores e as verdades são relativos e são constituídos pela compreensão e ação humanas. De acordo com Kelsen, o relativismo é a concepção de mundo que melhor se adequa à democracia, uma vez que esta “julga da mesma maneira a vontade política de cada um, assim como respeita igualmente cada credo político, cada opinião política cuja expressão, aliás, é a vontade política” (Ibid., p. 105).
Trazendo essa discussão para o âmbito do Direito, uma vez que diante do relativismo de valores não é possível falar em uma única verdade no âmbito da moral ou da justiça, a separação entre direito e moral significa que a validade das normas jurídicas não pode depender das concepções de moralidade existentes na sociedade, pois essas concepções estão em disputa.[3] A validade do direito, assim, deve depender da observância dos procedimentos a serem seguidos para sua elaboração (Kelsen, 2000). Essa tese lança luz sobre a importância da política e da democracia na elaboração do direito legítimo.[4] E é sobre este tema, que recebeu menos atenção na literatura sobre Kelsen, que eu gostaria de me deter doravante.
No ensaio intitulado “O valor e a essência da democracia”, ao reconhecer a pluralidade de valores, Kelsen escolhe, no âmbito da política, o seu próprio valor (enquanto sujeito Kelsen): segundo ele, a democracia – representativa e liberal – é um valor essencial em uma sociedade que recusa o autoritarismo e quer se manter como Estado de Direito. À luz desse valor é que ele vai redefinir alguns conceitos centrais para a política, quais sejam: liberdade, povo, Estado e vontade.
A liberdade é um dos primeiros conceitos revisitados à luz do relativismo. Kelsen aponta para a transição da liberdade natural – na qual não se pressupõe a existência de limitações jurídico-sociais, mas vigora uma espécie de determinação cósmica ou divina – para a social, que implica a submissão do indivíduo a uma ordem normativa de cuja elaboração ele próprio participou. A participação na elaboração da lei caracteriza a liberdade no sentido de autonomia ou autogoverno. A ideia de liberdade como autonomia, contudo, não pode ser concretizada, na prática, abdicando-se do recurso à representação, como almejou Rousseau. Não pode, tampouco, esperar que todas as decisões impostas à coletividade sejam tomadas por unanimidade. Nas sociedades democráticas a unanimidade cede lugar à decisão por maioria e, ainda assim, encontra-se resguardada a liberdade como autodeterminação.
Segundo ele, “o fato de se continuar falando de autonomia e considerando cada um como submisso à própria vontade, enquanto o que vale é a lei da maioria, é um novo progresso da metamorfose da ideia de liberdade” (Kelsen, 2002, p. 30). Isso é possível porque mesmo vigorando o princípio majoritário, as minorias são protegidas tanto pelos direitos e liberdades individuais previstos nas constituições democráticas (liberdade negativa) como pelos próprios arranjos institucionais que permitem a mudança de opinião e também de legislação, tão logo se forme uma nova maioria. Dessa forma, se com a adoção do princípio da maioria nem todos os indivíduos são livres – a minoria vencida pode não se considerar livre no sentido da autonomia – pelo menos, o maior número o é. Logo, pode-se dizer que a ordem social contraria o menor número de cidadãos e, mesmo assim, por um período determinado, uma vez que a minoria pode a qualquer momento se tornar maioria e reverter o resultado de uma decisão política. Tal limitação do conceito de liberdade é considerada por Kelsen aceitável, principalmente em razão da possibilidade de o resultado final ser alterado.
Destarte, verifica-se que a liberdade como autonomia é aquela que define primeiramente um regime democrático, pois está associada à produção das leis do Estado. Mas, num segundo plano, o autor afirma que para ser reconhecida como “democrática” uma ordem social deve abrigar em seu conteúdo normas que protejam as liberdades individuais. Essa liberdade negativa é então aquela assegurada aos que não são partícipes da elaboração da ordem estatal. Além disso, ao identificar a liberdade como autonomia, a grande preocupação de Kelsen é contrapor-se à heteronomia. Segundo ele, a liberdade social ou política implica a necessidade de coerção social. O grande problema a ser enfrentado é reduzir ao mínimo o afastamento entre a liberdade anárquica e a heteronomia (coerção externa). Assim, se os indivíduos precisam submeter-se a uma ordem externa, o ideal seria, como pressupôs Rousseau, que eles fossem os próprios autores desta ordem. Contudo, como isso não é possível para todos os indivíduos, é melhor que sejam coagidos por uma ordem emanada de uma instituição impessoal – o Estado, cuja vontade é formada no parlamento, segundo o princípio da maioria.
Segundo o autor, a democracia, no plano da ideia, “é uma forma de Estado e de sociedade em que a vontade geral, ou, sem tantas metáforas, a ordem social é realizada por quem está submetido a essa ordem, isto é, pelo povo.” (Kelsen, 2002, p. 35). Surge, contudo, a seguinte questão: quem é o povo? Para a democracia, o povo é uma pluralidade de indivíduos que constitui uma unidade que é “ou teoricamente deveria ser – não tanto objeto, mas principalmente sujeito do poder” (Ibid., p. 35). Duas questões são reavaliadas nessa definição: em primeiro lugar, a ideia de pluralidade como unidade; em seguida, as condições nas quais o povo pode ser sujeito do poder.
Ao considerar as diversidades étnicas, religiosas, econômicas, entre outras, o autor observa que é bastante difícil afirmar a unidade de tal pluralidade. Na verdade, Kelsen considera que em sociedades plurais não há como falar do povo enquanto um conglomerado, como se houvesse homogeneidade de identidades. Pelo contrário, as identidades são múltiplas e muitas vezes entram em conflitos. Em clara divergência com a concepção homogênea de povo de Carl Schmitt (1996), Kelsen considera que “o povo só parece uno, em sentido mais ou menos preciso, do ponto de vista jurídico; a sua unidade, que é normativa, na realidade é resultante de um dado jurídico: a submissão de todos os seus membros à mesma ordem jurídica estatal constituída” (Kelsen, 2002, p. 36).
O conceito de vontade, central para a filosofia política, é redefinido por Kelsen em termos muito próximos do que vem sendo discutido pelos teóricos contemporâneos da democracia deliberativa: num contexto de desacordo e de pluralidade de visões de mundo, não é mais possível se falar em “a” vontade geral ou bem comum, mas em “uma” vontade geral, aquela que surge como resultado de um procedimento de decisão política, que é geral, mas é também transitória, pode ser modificada pela decisão subsequente, e não é representativa de uma verdade única ou absoluta, mas sim de um compromisso contingente.[5] Na esteira dessa definição, duas instituições assumem grande relevância, a saber, o parlamento (ou poder legislativo) e os partidos políticos. O parlamento é a instituição que levará a cabo essa forma de representação do povo e se responsabilizará pela formação de compromissos, não de consensos (no sentido de unanimidade). Para tanto, Kelsen aponta para a necessidade de meios juridicamente legítimos que garantam a formação da vontade do povo, papel desempenhado pelos partidos políticos.
Na teoria democrática kelseniana não se identifica o costumeiro mal-estar, presente em muitas obras de filosofia política, com os partidos.[6] Ao contrário, o partido político é a instituição responsável por agrupar indivíduos que possuam um conjunto mais ou menos semelhante de interesses e concepções comuns. Para Kelsen, os partidos não são fundados apenas sobre interesses egoístas de certos grupos de indivíduos, mas também e principalmente, podem agrupar pessoas que comungam de certas convicções ou visões de mundo. Segundo ele, a negação de legitimidade aos partidos, fundamentada na “ilusão metafísica” de um interesse geral, tem como base o interesse dissimulado de manter o domínio absoluto dos interesses de um único grupo, pois, ou se chega a um “meio termo” através da negociação entre diferentes posições políticas e de diferentes interesses, ou se nega o pluralismo partidário e se estabelece o interesse de um único grupo, geralmente aquele com maior poder econômico (Kelsen, 2000, p. 41).
Sua teoria reconhece o conflito de opiniões como algo inerente ao processo democrático e vê nas negociações e no debate o elemento que garante e perpetua a vitalidade do caráter democrático. A política, desse modo, somente pode ser legítima numa democracia se ela for regulada pelas leis constitucionais, as quais por sua vez legitimam o processo da política pela via da representação e dos partidos políticos, os quais representam os interesses dos grupos em divergência nas sociedades hodiernas, que são plurais. A política na democracia só é legítima quando ocorre num ambiente em que o conflito e a negociação de interesses pode acontecer.
Desde que Kelsen publicou suas obras sobre teoria do direito e teoria política, quase um século se passou. Tanto no âmbito da teoria quanto da prática, houve a reformulação de princípios e práticas institucionais. Após o colapso moral, jurídico, político e institucional produzido pelos regimes totalitários, o positivismo jurídico foi desafiado em sua tese da separação entre direito e moral, e muitas obras passaram a defender, seja no âmbito do direito, seja no âmbito da política[7], a necessidade de estabelecimento de valores externos ao direito positivo e à política como critério de legitimidade de ambos. Essa reaproximação entre direito e moral e a exigência de critérios externos avaliadores da política desencadeou uma reação. No campo da teoria do direito, o próprio positivismo jurídico foi remodelado e busca novamente reafirmar a necessidade de se pensar o direito independentemente dos critérios de justiça ou de moralidade, assim como apontar para os problemas inerentes a essa associação.[8] Na teoria política, ganhou força um conjunto de teses realistas que buscam afirmar a independência da política diante de critérios de avaliação moral, como forma de valorização da própria atividade política (Galston, 2010).
Na prática, muitas democracias constitucionais –Brasil e Estados Unidos podem ser tomados como exemplos–, têm enfrentado os problemas atrelados ao ativismo judicial, no qual membros do judiciário invocam para si a tarefa de implementar os valores morais implícitos nos princípios constitucionais, sob o argumento de que o judiciário é o melhor fórum para lidar com direitos e princípios em desacordo, muitas vezes ressaltando a desconfiança com relação à atuação do poder legislativo e com a política. Nesses mesmos países, visualizamos nos últimos anos um forte ataque às instituições democráticas, ao poder legislativo e aos partidos políticos, com a vitória eleitoral de candidatos que se apresentavam como outsiders na política. A invasão ao Capitólio em janeiro de 2021 e os ataques às sedes dos três poderes em Brasília em janeiro de 2023 podem ser tomados como exemplo das consequências da marginalização da política, dos partidos políticos e das instituições democráticas.
A obra de Kelsen nos lembra a importância e a dignidade dessas instituições mediadoras dos conflitos sociais. Assim, passados quase cem anos de suas principais publicações sobre direito e política, a leitura de sua obra, com o auxílio das lentes de nosso tempo, mostra-se ainda mais reveladora da importância de sua contribuição.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
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[1] Professora de Filosofia Política no Departamento e no PPG em Filosofia da Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora do CNPq. Pesquisadora do Programa Capes/Alexander von Humboldt na Goethe Universität (Normative Orders) – Alemanha (2023-2024). E-mail: cristina.foroni@ufpr.br
[2] No início de sua carreira na Áustria Kelsen publicou, por exemplo, os seguintes livros ou artigos: Problemas Fundamentais da Teoria Jurídica do Estado (1911); Essência e Valor da Democracia (1920), O problema da soberania e a teoria do direito internacional (1920); Socialismo e Estado (1923); Teoria Geral do Estado (1925).
[3] Aqui, Kelsen antecipa uma discussão contemporânea a respeito do papel dos desacordos políticos e sobre justiça nas discussões da teoria do direito. Um expoente contemporâneo que desenvolve essa tese dentro da perspectiva do positivismo jurídico é Jeremy Waldron (cf. 1999; 2001).
[4] A respeito das conexões entre a teoria do direito de Kelsen e sua teoria política, ver Urbinati e Accetti (2013).
[5] Cf. Knight e Johnson, 2007, p. 270.
[6] A esse respeito, ver Rosenblum (2008). A autora identifica que o tema dos partidos políticos tem sido negligenciado nas obras de filosofia política.
[7] No campo da teoria e filosofia do direito, a obra de Ronald Dworkin é um dos melhores exemplos de disputa com o positivismo jurídico (cf. Dworkin, 2002). Já no campo da filosofia política, as obras de John Rawls e de Jürgen Habermas são exemplos da tentativa de reabilitar uma teoria normativa da política com critérios não contingentes de legitimidade sem recorrer à metafísica (Cf. Rawls, 2008;; Habermas, 2021).
[8] Cf. Waldron, 1999; 2001. Cf. também Raz, 1979; 1986.
Fonte Imagética: Wikimedia Commons. Gedenktafel für Hans Kelsen (Wien, Wickenburggasse 23). 4 mar. 2017. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Wien08_Wickenburggasse023_2017-03-04_GuentherZ_0479_GD_Hans_Kelsen.jpg>. Acesso em: 21 set. 2023.