Isabela Tancredo[1]
Pedro Pulzatto Peruzzo[2]
Introdução
Os autores da pesquisa apresentada neste texto sistematizaram os resultados obtidos no ano de 2018. Após publicação dos resultados parciais no site Justificando, que não se encontra mais ativo, uma versão deste texto foi enviada para uma revista que aborda questões de gênero, mas a editoria da revista não manifestou interesse na publicação. No final de 2018, a autora apresentou os resultados da pesquisa em um trabalho monográfico, mas nenhuma outra versão do estudo ficou disponível para consulta pública após a descontinuação do site Justificando.
Assim sendo, considerando que no dia 26 de setembro a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a inclusão do crime de “stealthing” o Código Penal e que, nos debates, houve citação direta à pesquisa sintetizada neste artigo, os autores começaram a receber pedidos para divulgação do trabalho. Os autores obtiveram do Boletim Lua Nova um espaço para a divulgação do texto em versão revisada, porém sem atualização das entrevistas que baseiam a pesquisa. O texto será publicado em duas partes.
Em que pesem as conquistas e os avanços obtidos no âmbito do Direito pelos movimentos sociais de gênero nas últimas décadas, ainda são extremamente atuais e recorrentes as diversas formas de violências praticadas por indivíduos do sexo masculino contra as mulheres ou pessoas que não se enquadram no padrão social cisgênero ou heteronormativo. Conforme será aprofundado adiante, a cultura do patriarcado, que permanece enraizada nas relações sociais modernas, tem fundamento na hierarquização e na predileção social do masculino sobre o feminino, consequentemente sujeitando tanto as mulheres quanto pessoas transexuais e homossexuais a violações físicas, patrimoniais, psicológicas e, sob a ótica do objeto de ênfase do presente estudo, sexuais.
São alarmantes os índices de violências sexuais praticadas especialmente contra as mulheres e principalmente por indivíduos heterossexuais do sexo masculino. Mais do que uma forma de satisfação de lascívia, a agressão à dignidade sexual de outrem e a violação do consentimento para ter relações sexuais traduz uma relação de dominação do sujeito “ativo” para com o “passivo”, assim como será demonstrado neste trabalho, consolidando o status quo social e solidificando as bases da cultura patriarcal, na qual o direito das mulheres é preterido ante o direito da figura masculina sobre seus corpos.
Reconhecendo a necessidade de regulamentar essa realidade violenta, o legislador brasileiro se ocupou no sentido de consagrar o direito à dignidade sexual como um bem jurídico a ser tutelado na esfera constitucional – como decorrência da própria dignidade humana e liberdade individual – e criminal, inserindo no Código Penal Brasileiro um capítulo dedicado exclusivamente à tipificação de condutas que atentam contra esse bem. Assim, no Título VI, Capítulos I e II do Código Penal Brasileiro, há a tipificação criminal e a cominação das respectivas sanções às condutas praticadas no mundo dos fatos que atentem contra a liberdade sexual de pessoas vulneráveis e não vulneráveis.
Contudo, ainda que o ordenamento jurídico brasileiro tenha sofrido modificações legislativas a fim de adaptar o mundo do “dever ser” à realidade fática dos crimes praticados em razão das desigualdades de gênero, restam condutas lesivas aos direitos sexuais que ocorrem no mundo do “ser” e carecem de proteção estatal no nível deontológico, seja por atividade deficitária do intérprete da norma, seja por inércia do legislativo em trabalhar para concretizar os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Essa inércia deixa um vácuo legislativo não apenas para a ação estatal repressiva, mas também para a ação estatal preventiva, que se consolida com políticas públicas voltadas, em especial, à proteção das minorias, nesse trabalho representadas pelas mulheres, transexuais e homens homossexuais.
É nesse contexto problemático que se insere o objeto de estudo do presente trabalho, qual seja, o estudo da prática de uma conduta atentatória à dignidade sexual que por ora não se encontra expressamente prevista no ordenamento jurídico brasileiro: a retirada do preservativo masculino pelo homem, durante a relação sexual, sem que sua parceira ou parceiro tenha ciência do ocorrido ou com isso tenha consentido antes ou durante a relação.
A conduta em tela é denominada “stealthing”, termo empregado pela pesquisadora norte-americana Alexandra Brodsky em artigo (Brodsky, 2017:183-210) sobre o tema. A palavra da língua inglesa “stealthing” é verbo que advém do termo “stealth” e que significa, em tradução literal do inglês, “dissimulação”, “furtivo” ou “oculto”. Com isso, tem-se que o significado do termo “stealthing” reflete com propriedade o modo pelo qual o agente violador age retirando o preservativo durante o ato sexual sem que a parceira ou parceiro notem, razão pela qual será empregado neste projeto.
O método principal da presente pesquisa será a análise legislativa somada ao trabalho de campo, ou seja, a observação da realidade fática baseada em depoimentos contidos em sites e pesquisas a respeito do objeto em questão, com vistas a estabelecer uma premissa geral que motive a tipificação do crime de “stealthing”. A escolha de tal percurso se justifica pela inexistência de um tipo penal ao qual o ato se adeque perfeitamente, fato que torna inviável realizar uma dedução a partir da norma geral e abstrata que culmine em sua incidência nos múltiplos casos ocorrentes no mundo material.
Não havendo uma premissa legislativa maior da qual partiria tal raciocínio lógico, torna-se necessário que se analise a ocorrência do “stealthing” no plano fático e, uma vez reconhecida a ilicitude da conduta perante o ordenamento jurídico, se alcance uma conclusão lógica materializada em uma premissa maior, geral e abstrata, qual seja, a lei criminal mais apropriada.
Isto posto, o primeiro objetivo do presente trabalho consistirá em discutir os aspectos culturais e fáticos do “stealthing” como uma conduta violadora dos direitos fundamentais na dimensão do gênero, justificando a necessidade de lhe dar tratamento típico adequado. Posteriormente, serão levantadas hipóteses de subsunção do “stealthing” aos tipos penais já existentes, de forma a demonstrar os motivos pelos quais o fato não pode ser enquadrado como uma das hipóteses criminosas já previstas no ordenamento jurídico vigente.
Portanto, diante da impossibilidade do perfeito amoldamento do “stealthing” às leis penais já existentes, será proposta a criação, pelo legislativo, do crime de Violência Sexual Furtiva, novo tipo penal que atenderá à imperiosa necessidade de proteger o bem jurídico da dignidade sexual, bem como de conferir às vítimas a proteção estatal constitucionalmente garantida.
Vale registrar que não acreditamos que o Direito Penal tenha todas as condições de solucionar os problemas da discriminação de gênero. Apesar disso, o fato de inexistir punição ao fato aqui trabalhado e o fato de estarmos vivendo um momento de retrocesso nas discussões de gênero, a discussão que aqui propomos tem o escopo de realizar um dos objetivos centrais da República Federativa do Brasil, qual seja, promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação, nos termos do artigo 3º, inciso IV da Constituição de 1988.
A Violência de Gênero como Produto da Cultura do Patriarcado e o Dever Estatal de Promoção dos Direitos Humanos de Todos e Todas
Antes de mais nada, consideramos relevante esclarecer a importância de afirmar, ainda hoje, que os direitos humanos valem para todos e também para todas. Após o anúncio da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão no contexto da Revolução Francesa, a francesa Olympe de Gouges decidiu escrever a Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã, de 1791, pois naquela Declaração não estavam compreendidas as mulheres. Olympe de Gouges foi decapitada, pois realmente no conceito de Homem e Cidadão não estavam incluídas as mulheres.
Além disso, para não deixar sem registro questão fundamental, a situação histórica das violências de gênero também são fundamentais, pois enquanto Olympe de Gouges era decapitada na França pelo fato de afirmar sua condição de gênero, aqui no Brasil as mulheres negras eram vítimas de outras agressões pelo fato de não serem consideradas humanas, mas meros objetos (semoventes).
Atualmente vivemos um momento de retrocesso em que existem propostas de líderes políticos que defendem abertamente que as mulheres devem receber menos que os homens pelo fato de engravidarem. Tamanho despropósito somente pode ser combatido com ações afirmativas, inclusive no campo da linguagem. Assim sendo, nunca é demais afirmar que todos e todas são titulares de direitos humanos.
De acordo com Andreza do Socorro Pantoja de Oliveira Smith e Jorge Luiz Oliveira dos Santos, identidade de gênero pode ser conceituada como “um conjunto de maneiras de perceber, designar e classificar as distinções sexuais, atribuindo-lhes um lugar e um status social”(Smith et al, 2017:1087). Nesse sentido, a experiência individual de autopercepção do gênero, transcende a esfera corporal e biológica do indivíduo e entra no campo social, modificando a maneira como alguém se porta e se relaciona interpessoalmente, com vistas a adequar sua vivência ao gênero com o qual se identifica. Na mesma esteira, o jurista Elder Lisboa Ferreira da Costa diferencia gênero de sexo biológico, na medida em que o primeiro é a relação entre homens e mulheres com base em suas identidades, em condições, funções e responsabilidades conforme definido pela cultura e pela sociedade, enquanto o segundo consiste nas diferenças anatômicas entre os corpos feminino e masculino (Costa, 2014).
A violência de gênero, a seu turno, pode ser conceituada como uma forma de violação da dignidade humana em suas diversas facetas, que se manifesta em atentados contra os direitos à vida, integridade física, liberdade, dignidade sexual, patrimônio e saúde psicológica da vítima, motivada exclusivamente pela sua identidade de gênero, assim compreendida nos moldes dos parâmetros retromencionados.
Dessa forma, sofrem violência de gênero não apenas as mulheres cisgênero, biologicamente nascidas com gênero feminino e que se identificam como tal, mas também mulheres transexuais, biologicamente originárias do sexo masculino mas que se identificam como pertencentes ao gênero feminino. Pontua Andreza do Socorro Pantoja de Oliveira Smith e Jorge Luiz Oliveira dos Santos que: “Nesse sentido, os muitos registros de violências praticadas contra mulheres e pessoas LGBT devem ser encarados como violência baseada na discriminação de gênero” (Smith et al, 2017:1104). Nesse sentido, a violência de gênero também alcança homens cisgêneros bissexuais e homossexuais, uma vez que expressam uma característica atribuída pela sociedade como pertencente ao feminino[3], qual seja, o relacionamento com outros homens. Renata Floriano de Sousa diz que:
O conteúdo desse discurso tem como foco a ideia de que o poder sexual está no homem, e que este tem o direito de realizar esse poder sobre a mulher ou sobre outros homens (que, dentro da sociedade binária, não reproduzem os estereótipos de masculinidade e virilidade) como quiser e sempre que julgar necessário (Sousa, 2017:13).
A evidente repressão aos indivíduos que manifestam características femininas, sobretudo no que tange à prática de violência sexual, objeto deste trabalho, está intrinsecamente enraizada na cultura do patriarcado que impera nas sociedades modernas, inclusive a brasileira[4]. Como explicam Daniel Cerqueira e Danilo Santa Cruz Coelho (Cerqueira, Coelho, 2014:02):
A violência de gênero é um reflexo direto da ideologia patriarcal,que demarca explicitamente os papéis e as relações de poder entre homens e mulheres. Como subproduto do patriarcalismo, a cultura do machismo, disseminada muitas vezes de forma implícita ou sub-reptícia, coloca a mulher como objeto de desejo e de propriedade do homem, o que termina legitimando e alimentando diversos tipos de violência, entre os quais o estupro.
Na mesma linha, diz Gary Barker (Barker, 2016:318-319):
Por patriarcado, nos referimos às estruturas de poder que moldam as vidas dos homens e mulheres e que estão enraizadas na hierarquia de poder relacionada ao gênero. Patriarcado […] se refere ao poder-maior agregado que os homens têm sobre as mulheres – social, político, econômico – […]. A lente do patriarcado nos ajuda a ver como a violência é baseada em relações complexas de poder[5]
A ideia de superioridade do masculino sobre o feminino estabelecida pela cultura machista gera a predileção dos direitos dos homens sobre os dos indivíduos com características femininas e faz dos homens os principais protagonistas das violências sexuais. A violência sexual praticada pelos homens reduz mulheres cisgêneros, transgêneros e homens não heterossexuais à condição de objeto e lhes retira a dignidade humana na medida em que as vítimas passam a existir em sociedade para satisfazer os ímpetos masculinos. Aduz-se, portanto, que o patriarcado representa uma configuração social baseada em uma hierarquia de poder do masculino sobre o feminino.
Dessa estrutura de poder entre gêneros é possível abstrair que a motivação da perpetração da violência sexual pelos homens contra o feminino, em sentido amplo, não se atém à mera satisfação do desejo sexual do autor. Para além da questão, os crimes contra a dignidade sexual têm como motivação o ânimo da dominação do homem sobre o feminino, de forma a perpetuar o patriarcado e manter o status quo social. É por meio da submissão de pessoas consideradas minorias na acepção social do termo que os homens solidificam os pilares da estrutura social hierárquica e justificam, nos moldes da ideologia da imposição de sua virilidade, o cometimento de novos crimes sexuais por outros homens.
No mesmo sentido, Renata Floriano de Sousa(Sousa, op. cit.) anota que apesar de não se poder afirmar que todos os homens sejam estupradores, a cultura do machismo e da misoginia são responsáveis pela prática da violência sexual contra as mulheres. Isso significa, segundo Sousa, que, em sua maioria, os homens que cometem violações sexuais não possuem transtornos mentais, mas são indivíduos no pleno gozo de suas faculdades mentais que, incentivados pelos mecanismos culturais do patriarcado, optam por cometer delitos contra a dignidade sexual de outra pessoa.
A motivação da dominação sexual se encontra igualmente presente na prática do ilícito do “stealthing”, cuja conduta consiste na retirada, pelo homem, do preservativo masculino sem consentimento da parceira ou parceiro sexual. Para além do aumento da sensação de prazer do ato sexual praticado com contato direto genital, a remoção do preservativo proporciona ao agente a euforia advinda da transgressão, do proibido, do apoderamento de um corpo que não lhe pertence, emoções potencializadas por se tratar de uma violação da qual a vítima, vulnerável, só toma conhecimento após o término da relação sexual, nada podendo fazer para agir em sua defesa durante o ato. Conforme explicita Lia Zanotta Machado:
“Apoderar-se do corpo da mulher” é o que se espera da função viril. O “não” da mulher, ou o “medo” da mulher, aparecem como constitutivos do desejo masculino. O estupro é muito mais o lugar do exercício da afirmação da identidade masculina especular, em que a subjugação do corpo da mulher reassegura sua identidade masculina e reafirma o caráter sacrificial dos corpos das mulheres (Machado, 2013:251).
Importante destacar que o apoderamento sexual como instrumento de exercício da sexualidade e virilidade masculina não se restringe às relações heterossexuais. Conforme outrora já delineado, os principais autores dos crimes sexuais são os homens em sentido amplo, homossexuais ou heterossexuais, visto que ambos os grupos estão inseridos, desde o nascimento, em um contexto cultural que impõe a estrutura de poderio sobre o feminino.
Em pesquisa sobre os motivos pelos quais o preservativo masculino está em desuso por iniciativa dos homens, aqui incluindo os que possuem relações homoafetivas, Luís Augusto Vasconcelos da Silva anota que o preservativo simboliza a perda do contato com a parte mais íntima, essencial e preciosa do homem, seu sêmen, substância que representa a virilidade masculina (Silva, 2009:675-699).
As violações sexuais cometidas principalmente contra as mulheres representam apenas uma parcela das inúmeras outras formas de violência de gênero; a cultura patriarcal também motiva degradações dos direitos à vida, saúde, integridade física, liberdade, segurança, igualdade perante a comunidade social, integridade física, ao bem estar psicológico e aos direitos patrimoniais, representando verdadeira lesão generalizada à dignidade humana das vítimas.
Diante da realidade epidêmica de ocorrência de graves lesões aos direitos de gênero, é crucial que o Estado, na função de agente promotor do bem estar social e dos direitos de seus cidadãos, implemente medidas que visem tanto melhorar a situação das minorias sociais de gênero por meio de políticas públicas afirmativas quanto coibir as condutas violadoras por meio da punição de quem as pratique. Em relação aos crimes sexuais, dentre os quais o “stealthing”, objeto central do presente trabalho, o Estado possui o dever de criminalizar e punir os agentes criminosos, com fulcro no caráter repressivo do direito penal brasileiro.
Há, sem dúvidas, a obrigação estatal de combater a ideologia patriarcal, promover os direitos de gênero, coibir violações sexuais de qualquer espécie e inclusive criar leis penais visando reprimir a prática de novas modalidades de ilícitos sexuais e fomentar políticas públicas preventivas, dever que se impõe em razão da imperatividade dos direitos constitucionais fundamentais, dos tratados internacionais sobre direitos humanos pelo Brasil ratificados[6] e das normas infraconstitucionais criadas com o escopo de proteger a mulher, como a Lei Maria da Penha.
A Conduta de “Stealthing” e seus Reflexos no Mundo do “Ser”
Para melhor compreensão da conduta do “stealthing” e visando a sua caracterização como crime, importante traçar considerações sobre a modalidade de violência sexual. A seguir, serão analisados aspectos técnicos da conduta, com vistas a, futuramente, determinar os elementos particulares de possível tipificação penal.
Da terminologia inglesa que significa “furtivo” e “oculto” é possível extrair seu modo de execução: após o início de uma relação sexual inicialmente consentida entre os sujeitos e condicionada ao uso do preservativo masculino, o indivíduo dotado de órgão genital masculino viola o pacto de consentimento estabelecido e emprega meios de remover o preservativo ainda durante o ato, sem que a parceira ou parceiro tenha ciência do ocorrido. Há, portanto, a modificação unilateral dos termos do contrato estabelecido quando da livre decisão de manter relações sexuais, manifestação que se torna maculada na medida em que o preservativo é removido e se alteram as condições essenciais ao consentimento.
A conduta do “stealthing”, portanto, significa violação da liberdade e da vontade da vítima em ter relações sexuais mediante o uso do preservativo masculino, obrigando-a a participar em atos sexuais de maneira diversa da pretendida e de forma não consensual. Há, conforme anteriormente mencionado, evidente violação ao disposto no artigo 5º, inciso II da Constituição Federal, pelo qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Trata-se de violação ao direito fundamental de liberdade da vítima em escolher o modo como conduzirá seus relacionamentos e de estipular os termos e condições para que pratique relações sexuais.
Em relação ao consentimento, em uma perspectiva literal, Alexandra Brodsky (Brodsky, 2017:191) pontua que a remoção do preservativo masculino por ato unilateral configura vício na permissão inicialmente concedida pela vítima, uma vez que esta consentiu em ser tocada pelo preservativo e não pela pele do órgão sexual do parceiro, e, poderíamos acrescentar, pela manifestação de vontade da relação mas sem contato com o esperma do parceiro. Sob a ótica da lógica e da finalidade a que se destina o uso de métodos contraceptivos, Alexandra Brodsky (Brodsky, 2017:191-192) argumenta que há violação do consentimento na medida em que a remoção do preservativo masculino altera os riscos inerentes às práticas sexuais, aumentando as chances de adquirir doenças sexualmente transmissíveis ou uma gravidez indesejada. Uma vez que a remoção não consensual do método contraceptivo modifica essencialmente as chances de ocorrência das penosas consequências da relação sexual, as partes devem expressamente consentir com a não utilização do preservativo para que no pleno gozo de seus direitos reprodutivos e à saúde, suportem apenas os riscos a cuja submissão manifestem adesão.
O consentimento para todo e qualquer ato sexual deve ser livre de vícios, consciente, imaculado e racional. Não se limita, contudo, à manifestação de vontade verbal antes da prática de determinado ato sexual, sendo igualmente válida a manifestação de vontade tácita, traduzida pelo comportamento participativo do indivíduo durante a relação. Contudo, em ambos os casos, é imprescindível que os indivíduos tenham pleno conhecimento de todos os elementos que permeiam uma relação sexual, sobretudo quanto aos métodos contraceptivos utilizados. Com a remoção secreta do preservativo pelo homem, seja omitindo verbalmente a mudança dos termos do encontro sexual à parceira ou parceiro, seja não deixando à mostra o genital desprotegido para que a vítima tenha ciência de que não mais está sendo usada a proteção, há a ocultação de informações relevantes, fato que obsta a livre manifestação de vontade da contraparte em continuar se relacionamento sexualmente e a mantém em erro até o término do ato.
Como se observa, a conduta do “stealthing” não é praticada por meio da coerção física ou da grave ameaça à vítima. Contudo, a ausência de tais elementos não têm o condão de afastar a gravidade da violação, que se manifesta na esfera psicológica da vítima, acarreta prejuízos à sua integridade e lesiona seus direitos a uma vida digna na medida em que desclassifica, desconsidera e nega sua vontade como condição essencial para o ato sexual.
Com a cessação da atividade sexual, a vítima, que vinha sendo mantida em erro, toma ciência de que o preservativo fora retirado pelo parceiro durante o ato, e, determinando que a utilização de contracepção era condição sine qua non para que se relacionasse com o agente, é invadida por tormentos psicológicos que podem ir desde uma gravidez indesejada ou do risco de uma doença sexualmente transmissível, até o constrangimento de carregar dentro do próprio corpo o esperma daquele que traiu sua confiança. Nesse sentido, em estudo sobre as consequências sofridas por vítimas de crimes contra a dignidade sexual, foi possível perceber que o cotidiano das vítimas foi modificado pelo medo. Foi possível constatar que os impactos da violação transcenderam a dimensão física e adentraram a esfera emocional das vítimas, gerando sofrimento psicológico e causando impactos negativos nos relacionamentos interpessoais e na performance das atividades cotidianas, sendo que algumas delas inclusive abandonaram os estudos. Além do temor de sofrer nova violência sexual, as vítimas descreveram sofrer medo das consequências de um ato sexual desprotegido, como o de contrair doença sexualmente transmissível, como a AIDS, e se tornar infértil em razão da enfermidade (Trigueiro et al, 2017:03-04).
Reafirmando as tenebrosas consequências que uma violação sexual pode causar ao psicológico da vítima, bem como à sua saúde e bem estar geral, foi observada estreita correlação entre a prática de crime contra a dignidade sexual e a incidência de doenças mentais e psicológicas nas vítimas, conforme observaram Charlie Brooker e Karen Tocque ao analisarem pesquisa relacionando saúde mental e estupro, realizada na Inglaterra (Brooker, Tocque, 2016:28-33, apud Trigueiro et al, 2017:04-05). No mesmo sentido, em pesquisa de campo realizada por Ericka Procópio, Camila Feliciano, Kalina da Silva e Cintia Katz em Recife, no Brasil, restou comprovado o vínculo entre a violência sexual sofrida pelas vítimas e o desenvolvimento de distúrbios mentais traumáticos (Procópio, Feliciano, Silva, Katz, 2016:1961-1969, apud Trigueiro et. al, 2017:05).
Embora a prática não possua definição legal específica, ao navegar por fóruns estrangeiros disponibilizados na internet, é possível encontrar discussões a respeito do “stealthing”. Em análise de fórum eletrônico estrangeiro denominado “Experience Project”, dedicado ao compartilhamento de experiências pessoais, ora deletado pelos moderadores[7], Alexandra Brodsky ressalta a existência de uma comunidade online de violadores na qual os agentes costumavam defender as razões pelas quais praticavam a remoção não consensual do preservativo, compartilhavam experiências pessoais, incentivavam uns aos outros a praticar o “stealthing” e ensinavam técnicas práticas para a remoção secreta do preservativo sem que a parceira ou parceiro notassem (Brodsky, 2017:184).
Não o bastante, os perpetradores fundamentaram suas condutas na misoginia, na supremacia do gênero masculino sobre o feminino, no instinto natural masculino de disseminar seus gametas e no direito dos homens sobre os corpos das mulheres. De acordo com os membros do site, as mulheres que optaram por se relacionar sexualmente com eles estariam obrigadas a suportar o encargo de receber seus fluídos sexuais e seriam merecedoras de uma eventual gravidez (Brodsky, 2017:188-189).
Em relação ao “stealthing” cometido por homens contra parceiros do sexo masculino, Alexandra Brodsky (Brodsky, 2017:189) ressalta que: “Homens que praticam“stealth” contra outros homens apresentam retórica similar, focada no ‘direito’ masculino de espalhar seu sêmen – inclusive quando a reprodução não é uma opção”[8].
Portanto, analisando o discurso proferido pelos homens praticantes do “stealthing”, é possível concluir que se trata eminentemente de uma conduta lesiva cometida por motivos de gênero.
No que tange à ocorrência do “stealthing” na sociedade brasileira, realizamos, em março de 2018, pesquisa de campo por meio de ferramenta de criação de formulários anônimos da plataforma “Google”[9]. O questionário foi disponibilizado por duas semanas em dois grupos privados da rede social “Facebook”, compostos exclusivamente por mulheres jovens[10] de diversas classes sociais e orientações sexuais e cujos objetivos primordiais tratam da discussão de pautas do movimento feminista e do compartilhamento de assuntos cotidianos. Efetivamente, participaram da pesquisa 279 mulheres.
Conforme demonstrou a pesquisa, ainda que o termo “stealthing” seja oriundo de língua estrangeira e utilizado quase que exclusivamente no âmbito virtual, 21% das participantes não alegaram completo desconhecimento do ilícito, sendo que 13,6% afirmaram saber do que se trata.
Quanto aos 8,2% que alegaram talvez serem capazes de identificar o “stealthing”, resta evidenciada a importância dos debates públicos e científicos a respeito das modalidades de crimes sexuais ainda não previstos na lei codificada. Ressalta-se, ainda, a necessidade de conscientização da população a respeito do modo de execução da conduta, com o escopo de facilitar a comunicação de crime às autoridades e salvaguardar os direitos sexuais das vítimas, que podem não ter conhecimento suficiente para compreenderem a violação a que foram submetidas.
Relativamente à ocorrência de episódios de “stealthing”, 9% das participantes do questionário alegaram já ter experienciado a remoção não consentida do preservativo masculino pelo parceiro. Esse número torna-se ainda mais expressivo quando confrontado com os dados obtidos quando do questionamento a respeito do reconhecimento do “stealthing”, quando 41% das mulheres alegaram ter conhecimento ou talvez ter conhecimento da prática em questão.
Em relação às mulheres que alegaram ter sido vítimas do “stealthing”, foi disponibilizado no formulário um campo de texto no qual puderam descrever suas experiências pessoais em poucas palavras. Em unanimidade, todas as vítimas alegaram ter sofrido algum tipo de tormento psicológico, como insegurança e medo da aquisição de doenças sexualmente transmissíveis. Outras mulheres descreveram, ainda, que o ato lhes provocou sentimentos de traição, desrespeito, violação, invasão, irritação, mal estar, de redução à condição de objeto, sujas e culpadas:
“pode parecer exagero, mas me senti traída. medo por dias de alguma dst e imagino o que poderia ter acontecido caso eu não tivesse visto até a hora dele ejacular.”
“Me senti violada e que foi uma traição da minha confiança. Me senti extremamente usada e vulnerável.”
A respeito do exercício da sexualidade masculina por meio da violência sexual e da objetificação dos corpos femininos, reforça Adriana Piscitelli, que:
Essa violência é considerada efeito da construção da sexualidade dos homens no âmbito da dominação masculina, que os conduz a confirmar sua masculinidade por meio de práticas de objetificação e de agressão – enquanto a sexualidade das mulheres, construída a partir de uma posição de ausência de poder, se expressaria de maneiras muito diferentes (Piscitelli, 2017:22).
Posteriormente, na primeira semana de abril de 2018, novo questionário anônimo da plataforma “Google”[11] foi disponibilizado nos mesmos grupos privados do “Facebook”, permanecendo aberto às respostas por 07 dias, do qual 49 mulheres participaram. Dessa vez, contudo, o conceito de “stealthing” fora apresentado antes de apresentadas as perguntas. Em consonância à pesquisa relacionada em momento anterior, 10% das participantes alegaram ter sido vítimas da prática. Ainda, a estatística se elevou drasticamente ao serem questionadas quanto ao conhecimento da ocorrência da prática em terceiros, tanto do sexo masculino quanto feminino, que tenham sofrido alguma remoção não consensual do preservativo masculino, atingindo 39,6% de respostas positivas.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
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[1] Advogada formada em Direito pela PUC-Campinas, onde desenvolveu, durante a graduação, pesquisas na área de direitos humanos e das mulheres. Atualmente atua em área consultiva no âmbito da Lei da Europa de Proteção de Dados Pessoais.
[2] Membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-Campinas, advogado voluntário do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN), mestre e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).
[3] Do ponto de vista biológico, não há que se falar em características sociais pertencentes exclusivamente a determinado gênero, visto que as diferenças são meramente anatômicas. Contudo, para efeitos metodológicos, os termos “masculino” e “feminino” e as características sociais a eles relacionados serão utilizados neste trabalho conforme estabelecido pelos ditames sociais.
[4]O 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) demonstra que, no ano de 2015, o Brasil registrou 45.460 casos de estupro, sendo que 89% das vítimas são do sexo feminino. Pertinente mencionar que, em razão da natureza íntima do crime, inúmeros casos deixam de ser noticiados às autoridades.
[5]Da tradução livre do inglês: “By patriarchy, we refer to the power structures that frame men’s and women’s lives and that are rooted in power hierarchies related to gender. Patriarchy […] refers to the greater aggregate power that men have over women – social, political, economic – […]. This lens of patriarchy helps us see how violence is based in complex power relations […]”.
[6] A esse respeito, vide Convenção de Belém do Pará no âmbito interamericano e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra a Mulher da ONU.
[7]http://www.experienceproject.com/goodbye; Acesso em 29 de março de 2018. É possível identificar a mensagem: “Experience Project is taking a break. We thank our tens of millions of members for being a part of the largest community of shared experiences ever created. We remain passionate about the incredible power of empathy, and look forward to meeting again soon”. Em tradução livre ao português: “Experience Project está dando uma pausa. Nós agradecemos os milhões de membros por fazerem parte da maior comunidade de compartilhamento de experiências já criada. Nós continuamos passionais sobre o incrível poder da empatia e esperamos nos encontrar novamente, em breve”.
[8]Tradução livre do inglês: “Men who stealth assault other men display similar rhetoric focused on a man’s “right” to spread his seed—even when reproduction is not an option.”
[9]Formulário disponíbilizado no endereço eletrônico https://docs.google.com/forms/d/1LpmWFWh_K6d0WPwWMx5eMWmDGUWYsnBzvMCNWsEgnY4/edit?usp=sharing. Acesso em 18 de outubro de 2018.
[10]Conforme disposto no formulário, 83,5% das mulheres participantes possuem entre 18 e 25 anos, 10,4% se declararam como tendo de 25 a 30 anos de idade, 4,7% possuem entre 14 e 18 anos e 1,4% possuem mais de 30 anos.
[11]Formulário de pesquisa disponibilizado no endereço eletrônico https://docs.google.com/forms/d/1BQUy3YkJwNLP2Zk72JjGmubn7GxACCfAU5zEkglHFGc/edit?usp=sharing. Acesso em 18 de outubro de 2018.
Fonte Imagética: Felipe Francischini: prática do stealthing tem de ser combatida, Agência Câmara de Notícias (Foto de Zeca Ribeiro / Câmara dos Deputados). Disponível em <https://www.camara.leg.br/noticias/1001823-comissao-aprova-pena-de-prisao-a-quem-retirar-preservativo-sem-consentimento-do-parceiro/>. Acesso 11 out 2023.