Lucas Barcos Rodrigues[1]
Introdução
Não é incomum encontrarmos atores políticos que se referem ao Golpe Militar de 1964 no Brasil como uma “Revolução”. Servidores do Inep realizaram denúncias pelo jornal Folha de S.Paulo, em 2021[2], após o então presidente Jair Bolsonaro ter pedido ao então ministro da Educação Milton Ribeiro para que trocasse o termo “Golpe” por “Revolução” nas provas do Enem daquele ano. Da mesma maneira que não há um esclarecimento devido quanto ao ocorrido no Brasil, ao ponto do próprio presidente preferir se referir a ele como uma Revolução, o mesmo se aplica para o caso do Fascismo e do Nazismo na Europa na primeira metade do século XX.
O próprio entendimento quanto aos sentidos de uma Revolução são dificilmente compreendidos sem um bom domínio das origens e transformações da palavra. Como mostra Arendt (2016), a palavra advém de um conceito astronômico, que ganhou destaque com Copérnico, referente a uma volta de um astro em sua órbita, um movimento que volta para o próprio ponto de origem – um significado completamente distinto do conceito ressignificado de Revolução do século XVIII em diante. Ao mesmo tempo, os novos significados da Revolução não podem ser confundidos com meras mudanças políticas, revoltas, ou movimentos que utilizam da violência para a transformação, justamente porque nenhum desses está vinculado à necessidade de gerar algo inteiramente novo. O que, inicialmente, vai diferenciar uma Revolução desses outros tipos de movimentos é o fato dela ser um evento político único, que confronta seus espectadores com o problema de um início de uma maneira inescapável (ARENDT, 2016, p. 47). A antiguidade entendia bem o significado da mudança política, porém estas não traziam a questão da mudança completa do sistema político vigente, comumente seguindo uma trajetória previamente determinada pela própria natureza dos assuntos humanos vigentes (ARENDT, 2016, p. 48).
Os novos sentidos de Revolução consistiam em um processo definitivo do fim de uma ordem vigente, concomitantemente com o nascimento de um novo mundo. Ou seja, o ponto central para a compreensão das revoluções modernas é a convergência da conquista da liberdade somada a um novo início político e social (ARENT, 2016, p. 57). As próprias revoluções americana e francesa, que deram origem à ressignificação moderna da palavra, se deram pela busca de uma maior liberdade, e de uma mudança na estrutura política vigente, além das próprias condições materiais e sociais da sociedade. Ainda, porém, é possível confundir o Nazismo e o próprio Golpe Militar de 1964 no Brasil com uma Revolução, uma vez que estes movimentos pregam estarem trazendo a conquista de uma liberdade associada a um novo início social e, principalmente, político. A primeira diferenciação a ser feita aqui, é a de uma Revolução com relação a uma insurreição vencedora. “Apenas onde existe esse páthos de novidade e onde a novidade está ligada à ideia de liberdade é que podemos falar em revolução” (ARENDT, 2016, p. 63).
Ainda assim, os movimentos fascistas europeus ocupam uma zona cinzenta em meio a toda essa conceptualização. Não é necessário um esforço muito complexo para desvirtuar estes movimentos como revolucionários, uma construção retórica simples seria capaz de ressignificá-los como movimentos inovadores que buscavam a liberdade como seu fim. Para podermos diferenciá-los efetivamente de uma Revolução, dentro dos seus conceitos modernos, é necessário acrescentar um outro fator à equação, a questão social. Como coloca Arendt (2016), não restava dúvidas ao jovem Marx que a grande falha da Revolução Francesa se dava em virtude do foco dos revolucionários estar centralizado na instauração da liberdade. Esta, porém, nunca fora devidamente alcançada, uma vez que falharam em resolver a questão social vigente (ARENDT, 2016, p. 95). O desenvolvimento de uma revolução promissora não deveria estar focada em libertar os homens de uma opressão entre si, muito menos na busca de uma suposta liberdade, mas deveria resolver as questões econômicas entre escassez e abundância. A pauta central não deveria circundar a liberdade, mas sim a abundância (ARENDT, 2016, p. 98), e apenas com a resolução desta questão a liberdade poderia ser atingida.
Não por coincidência, encontramos escritos de apoiadores ingleses à Revolução Francesa que apontam que a verdadeira liberdade só poderia ser alcançada quando alcançarem a Verdade, Virtude e, por consequência, a Liberdade (PRICE, 1789, p. 6). A Verdade, para o autor, é a capacidade de obter conhecimento, tanto político quanto social. A Virtude, atrelada à Igreja, seria a única capaz de guiar os ímpetos dos homens, diferenciado-os de bárbaros. Atrelado a ambos, viria a Liberdade, que se refere, neste sentido, a uma liberdade política. Para que uma nação seja esclarecida e virtuosa, ela precisa necessariamente de liberdade, assim, seus cidadãos não podem ter seus direitos feridos e tampouco devem se curvar mediante a tiranos déspotas (PRICE, 1789, p. 6-26). Aponta, assim, que os governantes de uma nação são os reais servidores da população, em especial seu líder, que deveria ser o primeiro servidor do povo. Em governos despóticos, porém, o que se figura é o oposto: o líder é adorado, enquanto a população se curva perante o mesmo.
Nesse sentido, os movimentos fascista e nazista começam a se diferenciar de uma Revolução. Com exemplos de Hitler e Mussolini, esses movimentos trouxeram grandes líderes despóticos ao poder, mas que não só ascenderam, como não tinham a questão social como um problema a ser resolvido. Apesar de termos sim um fator de inovação com os governos fascistas, ele não advém da busca de povos oprimidos pelo já mencionado páthos da novidade, mas pelo contrário. Como deixa claro Neumann (1943, p. 38), no dia em que se deu a Revolução de 1918 na Alemanha, o partido contrarrevolucionário começou a se organizar, e logo este aprendeu que só poderia chegar ao poder com a ajuda do maquinário estatal, e não contra ele. Ao contrário da Revolução Russa e do governo soviético, a conquista do poder pelos fascistas italianos e alemães adveio de outro caminho, e uma vez em suas mãos, seguiu um sentido completamente diferente do que é esperado de um movimento revolucionário que visa a emancipação de seu povo, que resolva a questão social. “Mussolini e Hitler tomaram o poder de cima para baixo. Aliás, seria mais correto dizer que o poder lhes foi entregue” (MAYER, 1977, p. 33).
Ainda para Neumann, a chave para o sucesso do Nazismo na Alemanha foi justamente a sua associação à classe governante. O sistema judiciário alemão fora completamente condescendente com os ex-militares presentes no Golpe do Kapp (NEUMANN, 1943, p. 39), indicando, desde já, a sua posição. Ou seja, apesar de apresentar uma inovação, dificilmente podemos classificar o Fascismo e o Nazismo como movimentos revolucionários, se tivermos como norte não apenas a questão social e da emancipação material da população da pobreza, mas também a manutenção do próprio status quo destes sistemas. Em vez de um rompimento abrupto e extremo, os Fascismos italianos e alemães se aliaram às classes governantes, e a governança foi alcançada via interna ao próprio sistema vigente.
Assim sendo, se não podemos efetivamente classificar a ascensão dos governos fascistas como apenas um Golpe de Estado, e tampouco como uma Revolução, qual seria a melhor categoria para classificá-lo? Tanto Mayer (1977), quanto Neumann (1943) possuem uma visão sobre a questão, e ambos concordam em classificá-los como um movimento Contrarrevolucionário. Vamos explorar essa categoria.
Contrarrevolução
Seguindo uma ordem cronológica, a grande Revolução moderna, não necessariamente bem-sucedida, mas que de fato concretizou o termo como uma categoria política explicativa, foi a Revolução Francesa de 1789. Se estamos explorando a categoria de Contrarrevolução, o primeiro grande autor a ser destacado aqui é, senão, Edmund Burke, conhecido atualmente como o “pai do conservadorismo”[3]. Quando eclode a Revolução Francesa, Burke estava em um momento muito específico de sua vida, se encontrava isolado politicamente de seu partido (Whig), com problemas financeiros, em idade avançada e sem reconhecimento social. Mas justamente no ponto mais baixo de sua carreira é que o autor escreveu sua obra mais famosa, as Reflections on the Revolution in France (1790), em forte crítica à Revolução Francesa, e que alimentará a sua fama.
Ao longo do século XIX, e no começo do século XX, a leitura principal acerca de Burke tratava-o como um autor voltado para os temas da política prática e imediata, que negava as formulações dos teóricos do iluminismo mediante a seu caráter abstrato, reafirmando sua leitura utilitarista e pragmática da política (CASSIMIRO, 2015, p. 58). A obra de Sir Leslie Stephen, The History of English Thought in the Eighteenth Century (1881), é uma das principais que apontam Burke como um utilitarista, juntamente com as visões de Buckle (1821-62), Acton (1834-1902), Lecky (1838-1903) e Morley (1838-1923). Já no começo do século XX, as principais leituras de Burke utilitarista ficam a cargo de Charles Vaughan em 1907, John MacCunn em 1913 (MOREIRA, 2019, p. 35), Harold Laski em 1920 e Alfred Cobban em 1929 (CASSIMIRO, 2015, p. 59). Apesar do autor já ser visto como um grande crítico ao iluminismo, ele não era exatamente entendido como um autor contrarrevolucionário.
Foi apenas a partir dos anos 1950, no pós-guerra, que Burke foi resgatado por autores como Leo Strauss (1971[1952]), Peter J.Stanlis (1958[1955]), Charles Parkin (2001[1956]), Russel Kirk (1995[1953]) e posteriormente Isaiah Berlin (2001[1973])[4], e que proporcionaram uma nova leitura do parlamentar. A partir destes autores, Burke foi incorporado ideologicamente, especialmente nos Estados Unidos, como um intelectual coerente e sistemático, um grande filósofo conservador, que passou a ser uma referência de contrarrevolução, especialmente contra os “novos jacobinos” que lhes ameaçavam: os comunistas.
Isaiah Berlin (2001), é quem vai efetivamente rotular Burke como um contrailuminista (counter-enlightenment). Este movimento forneceria as bases teóricas do romantismo, definido mediante a sua oposição ao iluminismo e pela defesa das tradições históricas (CASSIMIRO, 2015, p. 60). Para isso, Berlin utiliza como base três autores para seu próprio entendimento do que seria esse contrailuminismo: Giambattista Vico, J. G. Hamann e Johann Gottfried von Herder. Vico atacava o racionalismo cartesiano, pois acreditava que este se equivocava ao defender que a realidade poderia ser desvendada a partir de uma estrutura lógica. Ainda que a observação científica fosse capaz de estabelecer correlações e desvendar algumas regularidades do mundo, no final, ela não seria competente o suficiente para descobrir a razão e a finalidade da ocorrência destes fenômenos naturais. Isto porque eles só poderiam ser verdadeiramente compreendidos por Deus, seu criador. O homem poderia sim entender os fenômenos que ocorrem por meio de sua própria ação e que estão diretamente relacionados, os chamados fenômenos históricos. Estes homens fariam estas correlações em diferentes culturas e épocas, com diferentes questionamentos, e produziram assim, diversas respostas, baseadas nas suas visões de mundo específicas. Com essa pluralidade de culturas, seria uma caracterização falaciosa a ideia de que existe apenas uma estrutura da realidade, e que justamente os filósofos iluministas seriam capazes de desvendar logicamente (CASSIMIRO, 2015, p. 68-69). Eles seriam, na realidade, apenas mais um grupo de homens em seu tempo e contexto específicos com questões e respostas limitadas às suas expressões culturais, de valores e indagações da realidade.
Os outros autores que Berlin apresenta para representar esse contrailuminismo, em geral, seguem a linha de Vico, entendendo que a realidade não se configura como uma estrutura escondida sob um conjunto aparente e lógico, mas sim como um grande conjunto de símbolos a serem desvendados. Entendem a história como o verdadeiro repositório da verdade, capaz de acumular a experiência das épocas, dos homens e das culturas, uma linha bem próxima com a de Burke. A imersão nas experiências específicas de um povo seria fundamental para a compreensão dos homens que compartilham tais experiências, e aqui reside o grande risco da filosofia iluminista, que buscava substituir as tradições herdadas dos povos por novas ideias arbitrárias, fruto de uma especulação racional.
Por outro lado, outros autores não entendem que Burke era um autêntico representante desse movimento contrailuminista. Tanto Pocock (2003) quanto Himmelfarb (2011) propõem a tese de que na Inglaterra surgiu um outro tipo de iluminismo que se diferencia do iluminismo francês, mas que era simultaneamente influenciado e crítico deste. Para Pocock, tanto Gibbons quanto Burke são representantes desse movimento britânico, que se caracteriza por dois pontos principais: a possibilidade do fim das guerras religiosas acompanhado da ascensão do Estado moderno; e a desconcentração do poder monárquico. Na visão do historiador, Burke propunha uma estrutura complexa de governo – monárquica, aristocrática e comercial – contrária às ideias revolucionárias francesas. O que ele mais temia, não seriam nem os burgueses e nem tampouco os proletários, mas a intelligentsia francesa, que enxergava como farsantes se passando por salvadores. Além de tudo, o iluminismo francês teve uma forte via anticlerical, que não se reproduziu na Inglaterra, sendo esse, inclusive, um dos maiores pontos de ataque de Burke contra à Revolução Francesa.
Himmelfarb (2011) desenvolve esse sentido de diferenciação dos tipos de iluminismo, propondo não apenas que exista uma separação entre os iluminismos britânico e francês, mas também do iluminismo americano. O primeiro, em que Burke seria um típico representante, tem seu foco principal relacionado à virtude, não derivada da religião, do autointeresse, da sensação ou mesmo da razão, mas sim que todos estes elementos são os suportes para a própria virtude. O que precederia a todos estes seria o senso moral (moral sense), que diferencia o certo do errado. A benevolência, compaixão, simpatia e afeição pelo próximo, são a base para este moral sense, comum a todos os homens. Além da típica valorização inglesa da Igreja, que apesar de não ser o ponto forte do iluminismo britânico, é um ponto frequentemente reforçado. O francês, por outro lado, possui um vínculo central com a razão, mas também o direito, natureza, liberdade, igualdade, tolerância, ciência e progresso, além do já citado forte anticlericalismo. O americano, por fim, prioriza a liberdade e o direito.
Ainda que Isaiah Berlin defenda Burke como um contrailuminista, e que efetivamente este título tenha se tornado uma visão comum do parlamentar, especialmente quando resgataram-no pós-guerra, como um símbolo da luta anti-revolucionária, há de se questionar sua real contrariedade ao iluminismo, ou se este seria apenas parte de outro tipo de movimento, parecido, mas diferente. Aqui, se faz necessário apresentar um dos principais pontos levantados por Mayer, quanto às grandes diferenças que existem entre reação, conservadorismo e contra-revolução (MAYER, 1977, p. 21). Apresentada a origem da comum confusão entre conservadorismo e contrarrevolução, podemos diferenciá-los.
Reação, Conservadorismo e Contrarrevolução
Mayer (1977) apresenta uma crucial diferenciação entre Reação, Conservadorismo e Contrarrevolução, fundamental para que possamos fazer uma leitura mais precisa de onde o Fascismo se encaixa em todo esse processo. Para além dos grandes autores conservadores, especialmente os americanos do pós-guerra, que resgataram Burke como essa figura central na luta antirrevolucionária, existem dois outros fatores essenciais para que haja esta leitura que mescla os conservadores com os fascistas, apontados como contrarrevolucionários por Mayer.
Primeiro o fato de que, no momento da ascensão do movimento nazista na Alemanha, “além dos incontáveis indecisos e neutros, havia legiões de agentes políticos reacionários e conservadores que, sem maiores hesitações, passaram a colaborar com os fascistas” (MAYER, 1977, p. 23). Estes agentes conservadores e social-democratas tinham leituras do fascismo ascendente como apenas um aparato instrumental e temporário, que lhes seria útil, mas que em breve cairia. Neumann aponta que, com o desenvolvimento da reação, a ala direita foi cada vez mais adquirindo preponderância dentro do partido social-democrata, sendo Brüning o expoente do conservadorismo moderado e Papen o do setor reacionário (NEUMANN, 1943, p. 37). O Nazismo não cumprindo os requisitos para ser compreendido como uma revolução, e apoiado por agentes políticos conservadores e reacionários, facilita a confusão.
Além disso, aponta Mayer, os escritores comunistas nunca se afastaram totalmente da leitura na qual o fascismo era um instrumento flexível nas mãos dos agentes capitalistas, que estavam empenhados em uma última resistência, que seria breve e fracassada (MAYER, 1977, p. 27). Em outras palavras, os teóricos comunistas, assim como muitos outros, não foram suficientemente capazes de distinguir apropriadamente entre reacionários, conservadores e contrarrevolucionários, encaixando-os três em um mesmo grupo capitalista que utilizou-se do nazismo como uma ferramenta de emergência em um momento crítico.
Segundo, a mobilização dos agentes contrarrevolucionários das classes em crise, os grupos reacionários e conservadores, exacerbando e manipulando os ressentimentos e temores que sentiam, além de sua alienação pelo mundo real que os cerca (MAYER, 1977, p. 69). Os agentes políticos reacionários podem ser definidos como aqueles críticos, impassíveis e pretensiosos da sociedade vigente, uma vez que rejeitam o mundo por sua decadência, corrupção, perniciosidade e mesmo as suas contradições. Costumam ser consumidos por um pessimismo a respeito do presente e do futuro, ao mesmo tempo em que desconfiam de todos aqueles portadores da inovação. “Os reacionários defendem a volta a um passado mitificado e romantizado” (MAYER, 1977, p. 57). O pensamento conservador, em outra chave, e este sim que mais se assemelha à Burke, possui um caráter de refutação mais articulada, condenando também as inovações que são abruptas e, especialmente, abstratas. O foco dos agentes conservadores está em defender as instituições sociais, econômicas e políticas tradicionais, quanto à estética, à moral e aos costumes. Em suma, o que rege estes agentes é a tradição e a valorização da formação histórica das instituições.
Os agentes fascistas pregavam “a ordem, hierarquia, autoridade, disciplina, obediência, tradição, coragem, sacrifício e nacionalismo” (MAYER, 1977, p. 73). Seu discurso apelava em prol da conversão e da regeneração de ideias e símbolos tradicionalmente já conhecidos. Os manifestos fascistas são os mesmos dos conservadores e dos reacionários. Os fascistas, tanto na Alemanha quanto na Itália, contaram com a cooperação do governo, da Igreja e das forças armadas para seu estabelecimento. Onde quer que o regime fascista tenha se instalado, o direito de propriedade permaneceu inalterado, garantindo o apoio das elites industriais, comerciais e agrícolas, que mantiveram seus fundamentos sociais e econômicos intactos. Aos melhores moldes do pensamento conservador e, segundo Mayer, de acordo com os sociólogos alemães, o movimento fascista se opõe a um sistema social fundamentalmente modificado, garantindo a manutenção do Status Quo Ante (MAYER, 1977, p. 53).
A obra de Mayer (1977) argumenta que a Itália e a Alemanha fascistas tornaram-se as bases históricas para a exploração do conceito propriamente desenvolvido de contrarrevolução, devidamente diferenciado do reacionarismo e do conservadorismo. Para o autor, embora o movimento seja, efetivamente, semelhante em diversos fatores aos outros dois, ele adquire um impulso que transcende a simples restauração da ordem e do status quo ante (MAYER, 1977, p. 54). Uma das principais características ideológicas do movimento contrarrevolucionário é a exaltação das paixões e das potencialidades do homem, em especial aquelas que alimentam a paranoia coletiva e a agressividade, que tanto se assemelha aos agentes reacionários.
Ainda que o discurso contrarrevolucionário se assemelhe muito com as categorias mobilizadas pelos agentes conservadores, especialmente a preservação das instituições históricas e da tradição como um guia moral de organização social, a intenção e a prática desses agentes é evidentemente contrária à moderação das paixões, ou mesmo a sua transformação em uma atitude mais nobre e moralmente guiada, que conduz à racionalidade e ao conhecimento.
O elemento essencial e peculiar do movimento contrarrevolucionário é justamente a capacidade de promover a combinação da glorificação das instituições, atitudes e comportamento tradicionais com a acusação de que estes estavam em decadência e sendo corrompidos, subvertidos e profanados por agentes e influências conspiradoras (MAYER, 1977, p. 73). Ainda que o movimento contrarrevolucionário aparente ser conservador no discurso mas reacionário em suas ações, é importante lembrar que os líderes deste movimento estão firme e seguramente vinculados ao governo, à sociedade e à economia vigente, que são pontos de aversão dos reacionários.
Em estilo, método e aparência, o seu rompimento com a política de conciliação e concessão mútua é bastante radical. Porém, em outros aspectos importantes, o projeto contra-revolucionário toma a forma de uma ação estabilizadora e de salvação, disfarçada em cruzada milenar de vitalismo heróico” (MAYER, 1977, p. 84).
E se, por outro lado, o movimento contrarrevolucionário pode aparentar se distanciar dos reacionários e se aproxima dos conservadores ao propor a manutenção das instituições, costumes e moral tradicionais, cabe lembrar o Behemoth de Franz Neumann, que aponta a existência de um abismo intransitável entre a contrarrevolução e a conservação. Enquanto o movimento contrarrevolucionário é o Behemoth, é o caos e a falta de ordem social, o conservadorismo, especialmente de Burke, não buscava alterar a ordem e os fundamentos da sociedade inglesa, mas pelo contrário, buscava, justamente, conservá-los.
Como já apontado anteriormente, os movimentos fascistas ocupam um local especialmente cinzento, difícil de ser alcançado e devidamente definido. Mesmo definindo-os como contrarrevolucionários, este termo em si também está em um local custoso de ser propriamente alcançado de forma precisa. Se trouxermos à tona as primeiras aparições do termo de contrarrevolução, como colocados por Condorcet, para quem a contrarrevolução é uma revolução contrária, e a resposta enérgica de De Maistre, o qual aponta que a contrarrevolução não seria uma revolução contrária, mas o contrário de uma revolução, ambas parecem inadequadas a definir apropriadamente o termo. Aos moldes da palavra “revolução” que, originalmente, era um termo astronômico que ganhou importância nas ciências naturais graças a Copérnico, mas que foi ressignificado no século XVIII para um processo que consistia no fim definitivo de uma ordem antiga e no nascimento de um novo mundo (ARENDT, 2016, p. 72), o conceito de contrarrevolução passou por um processo parecido.
Inicialmente pensado como uma resposta à Revolução Francesa, e diretamente vinculado ao que futuramente ficou conhecido como conservadorismo, a contrarrevolução foi ressignificada após as experiências fascistas na Europa. Apesar de seu constante flerte com os agentes políticos conservadores, o movimento também se vinculava aos agentes reacionários que não apenas enxergavam o passado com um certo romantismo, mas também sustentavam desprezo pelos conservadores que aceitam e apoiam o status quo (MAYER, 1977, p. 58). Por mais estranho que pareça a princípio, o brilhantismo por trás dos contrarrevolucionários reside justamente na capacidade de mobilizar a ordem e o caos em um mesmo sentido para seu benefício próprio. Em vez de ser apenas uma ferramenta passageira, seja na mão dos conservadores ou dos reacionários, os líderes contrarrevolucionários fascistas subverteram esse papel, conciliando ambos os grupos em prol de uma mesma causa, e por isso mesmo existe a dificuldade, já apontada por Mayer, em diferenciar reação, conservadorismo e contra-revolução.
Considerações Finais
Ainda que não possamos concretamente definir os movimentos fascistas da primeira metade do século XX como contrarrevolucionários, nos parece um ótimo ponto de partida diferenciá-los dos grupos reacionários e conservadores do período. Como uma classificação ao menos parcial, temporária para sentidos deste artigo, a terminologia cumpre seu papel de compreensão da ascensão e dos sentidos do fascismo. O que, certamente, podemos apontar, é que enquanto tivermos como norte os sentidos emancipatórios de um povo, que busque a solução da questão social, somos capazes de distinguir o Fascismo de uma Revolução.
Por fim, iniciamos este artigo com o caso do então Presidente Jair Bolsonaro buscando a mudança de “Golpe de 1964” para “Revolução de 1964” nas provas oficiais do governo federal. Nada mais justo, então, que encerrarmos destrinchando um pouco mais a questão. Se já fizemos a devida distinção dos movimentos fascistas de uma Revolução, cabe começar por aí. Como já apontado por Arendt (2016), não devemos confundir um movimento revolucionário com uma insurreição vencedora, justamente pela necessidade de haver um pathos de novidade, ligado à ideia de liberdade, para estarmos nos referindo a uma Revolução. Ainda que o discurso para a tomada do poder em 1964 esteja vinculado à liberdade, ele também apresenta que seus principais objetivos eram a restauração da ordem pública, o controle da indisciplina nos quartéis e impedir a tomada de poder pelos comunistas. Se estamos falando da busca da ordem, e a retomada de um controle em tese corrompido, imediatamente nos afastamos dos sentidos de uma Revolução, que ascende aos horizontes de um novo mundo pela destruição da ordem vigente.
Para não cairmos no mesmo problema de encaixarmos reacionários, conservadores e contrarrevolucionários em um mesmo cesto, é interessante também buscar em qual dos três aspectos o Golpe de 1964 brasileiro mais se aproxima. Quando falamos da restauração da ordem, é lógica a aproximação com a razão presente dentro do conservadorismo. Ao mesmo tempo, essa aproximação é evidentemente mais discursiva do que efetivamente prática. A condução do governo militar a partir de 1964 se aproxima das ideologias reacionárias, que exaltam e alimentam a paranoia, a violência e a agressividade. Teria então o governo militar brasileiro da década de 1960 ascendido por meio de um movimento contrarrevolucionário?
É muito difícil, para não dizer impossível, encaixar movimentos distintos em moldes específicos que sejam capazes de classificá-los com tamanha veracidade. Ainda que possamos ver fatores que se assemelham na ascensão fascista com o golpe no Brasil de 1964, seria um claro equívoco apontá-los como movimentos igualmente contrarrevolucionários. A Alemanha, em especial, tinha acabado de passar pela República de Weimar, o que, em um sentido literal, possibilita o uso da expressão contrarrevolução com muito mais acuracidade, e se aproxima, de certo modo, da proposição de Condorcet durante a Revolução Francesa, de enxergar uma contrarrevolução como uma revolução contrária. O Golpe de 1964 no Brasil, por outro lado, se aproxima da frase de efeito proferida por De Maistre em 1796 em resposta à Condorcet, que visualiza a contrarrevolução não como uma revolução contrária, mas sim o contrário de uma revolução.
Ao mesmo tempo, quando enxergamos o governo de Jair Bolsonaro, este se aproxima direta e certamente do movimento reacionário, em que as paixões dominam seus agentes políticos rumo à agressividade e a paranoia, com uma romantização de um passado inatingível e mitificado. Com a crença de uma sociedade contaminada e desvirtuada, são críticos impassíveis e pretensiosos da atual sociedade. Mas, como podemos ver pela comunidade criada pelo filho de Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro, intitulada de “Formação Conservadora”[5], os próprios agentes reacionários confundem o que seria esse reacionarismo com o conservadorismo. Resta saber se isso se deve propositalmente, para que haja uma maior coalizão desse grupo de direita sob uma mesma bandeira, ou se por uma falta de distinção de seus sentidos e lógicas.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
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[1] Doutorando do Programa de Pós Graduação em Ciência Política da FFLCH-USP. São Paulo, SP, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8582-4145, email: barcos97lbr@gmail.com
[2]https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2021/11/bolsonaro-pediu-que-enem-trocasse-golpe-de-1964-por-revolucao-em-questoes-dizem-servidores.shtml
[3] Importância não só em seu país de origem, mas que se expandiu ao redor do mundo. O pesquisador Christian Lynch em seu texto “Conservadorismo Caleidoscópio: Edmund Burke e o pensamento político Brasileiro Oitocentista” (2017), faz uma análise das influências burkianas em autores importantes para a formação do pensamento social e político brasileiro, a exemplo de Visconde de Cairu, Bernardo Pereira de Vasconcelos, José de Alencar, Rui Barbosa e Joaquim Nabuco. Não à toa, Lynch adjetiva a obra de Burke como a bíblia do conservadorismo (LYNCH, 2017, p. 4).
[4] The Counter-Enlightenment, posteriormente reunido no volume Against the Current. Essays in the History of Ideas, primeira edição de 1979.
[5] Mais informações disponíveis em https://formacaoconservadora.com.br/
Fonte Imagética: Revolution Anniversary or, Patriotic Incantations (Creditos: The Trustees of the British Museum, released as CC BY-NC-SA 4.0). Disponivel em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Revolution_Anniversary_or,_Patriotic_Incantations_(BM_1868,0808.6083).jpg>. Acesso em 21 set 2023.