Alice de Souza Araújo[1]
Leia o primeiro texto de nossa série sobre Fascismo, “Fascismo: Revolução ou Contrarrevolução”, de Lucas Barcos Rodrigues, aqui.
A República Alemã, sistema de governo vigente entre 1919 e 1933 e tradicionalmente conhecida como República de Weimar, foi um momento importante da história da Alemanha. Localizada entre um governo imperial e um nazista e entre duas guerras mundiais, a incipiente república foi largamente disputada e analisada por seus contemporâneos. Um deles, o jurista e teórico político Carl Schmitt, despontou como um de seus mais controversos críticos e deu fôlego teórico a concepções antidemocráticas e conservadoras da política de sua época.
Dentre sua extensa produção, o livro Legalidade e Legitimidade, escrito em 1932, se destaca por apresentar a crítica feita pelo autor à constituição de Weimar e, complementarmente, ao sistema democrático parlamentarista que a compunha. Pautado em uma análise que reitera a incapacidade decisória e os percalços jurídico-legais da república alemã, o livro parece representar um pensamento bastante objetivo que, olhando retroativamente, sabemos que capitaneou o sistema nazista alemão. A proximidade da escrita do livro com a queda da república e ascensão do fascismo oferecem evidências ainda maiores dessa relação entre as ideias e práticas propostas.
Diante disso, e novamente olhando em retrospecto, é possível se perguntar qual a ordem dos fatores: o pensamento representado por Schmitt na obra faz dela uma “filha de seu tempo”, no sentido de apresentar um diagnóstico da sociedade que a cercava, ou ela é menos passiva que isso e se apresenta como uma “bandeira de seu tempo”, no sentido de agir ativa e intencionalmente como mais uma força legitimadora da política autoritária? Em outras palavras, Legalidade e Legitimidade apresenta um diagnóstico ou um pensamento incendiário de seu tempo?
Com base nessa questão me proponho neste artigo, a partir da leitura do livro Legalidade e Legitimidade, a propor uma discussão acerca das proposições do autor no momento em que escrevia sobre a República de Weimar. Mais especificamente, busquei refletir se a obra tem como intenção apresentar um diagnóstico jurídico e político da situação da democracia alemã ou se, em alguma medida, ela serviu como baluarte para legitimar o autoritarismo como prática política mais adequada ao contexto alemão da época.
Ressalta-se, antes de mais nada, que este é um exercício deliberadamente anacrônico e informado da trajetória política e intelectual do autor. Afinal, como se sabe, ele foi filiado ao Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães e, portanto, simpático às políticas nazistas. Além disso, não se pretende aqui conjecturar acerca das intenções pessoais do autor ao escrever o livro, e sim entender em que medida a obra em questão pode expressar um posicionamento teórico e político de sua época que, esse sim, será avaliado enquanto intenção ativa diante de um contexto específico.
Crítica à República de Weimar e considerações sobre a democracia
O regime de governo conformado pelo Estado alemão durante a República de Weimar foi descrito pelo autor como uma democracia liberal. Sua institucionalização se deu sob a forma de um Estado parlamentarista dividido em duas casas legislativas – Reichstag e Reichsrat – somadas ao poder executivo do presidente. Sua Constituição foi resultado de uma Assembleia Constituinte e, considerando que foi erigida em uma sociedade com conflitos sociais e políticos numerosos e efervescentes, era de se esperar que fosse alvo de críticas dos diversos grupos que disputavam o cenário político de então.
Legalidade e Legitimidade apresenta a análise crítica feita por Carl Schmitt a essa Constituição. Dotada de características contraditórias, o autor defende que a Carta Magna encontrava-se “literalmente dividida entre a neutralidade valorativa de sua primeira parte e a abundância valorativa de sua segunda parte” (Schmitt, 2007, p. 52-53).
A primeira parte da Constituição designou-se a instaurar a estrutura organizacional e institucional do Estado alemão, além de traçar seus pressupostos de legalidade e legitimidade. O Estado legiferante, estrutura que sustenta a democracia liberal como se configurou na República de Weimar, foi descrito por Schmitt como
um Estado regido por normatizações com conteúdo mensurável e determinável, caracterizadas como impessoais e, por esse motivo, gerais, bem como predeterminadas e, consequentemente, concebidas, visando a uma duração permanente. Em tal Estado, lei e aplicação da lei, legislador e aplicação da lei existem separados entre si. […]. Quem exerce poder e domínio, age “com base em uma lei” ou “em nome da lei”. Apenas faz valer, com legitimidade, uma norma vigente. (Schmitt, 2007, p. 2, grifos do autor).
Dois aspectos se destacam nessa definição: a separação entre as esferas legislativa e executiva, e a primazia da lei como forma de manifestação do Direito.
Em uma democracia, diz Schmitt, lei é “cada vontade de cada povo existente” (Schmitt, 2007, p. 25), unificada na vontade da maioria dos cidadãos votantes. No Estado legiferante, porém, em função da divisão entre quem faz as leis e quem as aplica, a lei operava como sinônimo de norma, no sentido de que se via livre de qualquer obrigação com valores como os de justiça e moralidade, por exemplo. Lei, aqui, tinha uma função estritamente formal-funcionalista, e sua primazia no processo legislativo parlamentarista fazia com que quem criasse leis automaticamente criasse o Direito.
No processo legiferante, o legislador faz o que quiser, sempre é “lei” e sempre cria “Direito”. Com isso, estava aberto o caminho para uma ideia absolutamente “neutra” de legalidade, desprovida de valores e qualidades, funcional-formalístico em sua ausência de conteúdo (Schmitt, 2007, p. 24).
É por esse motivo que Schmitt atribuiu à primeira parte da Constituição de Weimar o caráter valorativamente neutro. Em função da estrutura jurídico-legal do Estado, o conteúdo das leis e seu tratamento ficavam – ao menos teoricamente – sob o mesmo jugo funcional-formalístico, de modo que o conteúdo político e moral de suas propostas não eram considerados como um diferencial, tampouco passíveis de salvaguardas extraordinárias.
Além de ser um problema em si, no sentido de esvaziar o conteúdo objetivo e valorativo das leis, esse fato tornava-se um problema ainda maior quando associado às competências instauradas pela segunda parte da Constituição, entendida por Schmitt como abundantemente valorativa.
Deliberando sobre o processo decisório, a segunda parte da Carta Magna instaurou, segundo o autor, três tipos diferentes de legisladores extraordinários, hierarquicamente divididos entre os com mais e os com menos força institucional. Esses legisladores se constituíam a partir do legislador ordinário, que aprovava leis por maioria simples. O primeiro legislador extraordinário, denominado legislador extraordinário ratione materiae, se constituía pela aprovação de leis por maioria qualificada; ou seja, assuntos que necessitavam de 50% mais ⅔ de quórum para aprovação instauravam um novo tipo de legislador e de legalidade, já que esses ⅔ funcionavam como uma força diferente, maior e qualitativamente mais valorada para aprovação de leis, ainda que legitimada apenas pela maioria aritmética. O segundo, legislador extraordinário ratione, se conformava pela aprovação de leis e questões legais via plebiscito, encontrando, neste, sua legitimidade. Por não ser legitimado pelo sistema de legalidade do Estado legiferante, este foi apresentado como o tipo “mais democrático” de legislador. Por fim, o legislador extraordinário ratione necessitatis era o que, em linhas gerais, reprimiria a legalidade e a própria base do Estado legiferante, já que se aproximaria de um Estado administrativo. Essa divisão entre tipos diferentes de legisladores é entendida por Schmitt como um problema pois
ao se dividir o sistema de legalidade em um tipo superior e um inferior – embora pareça haver somente uma diferenciação quantitativamente aritmética das maiorias votantes -, o Estado legiferante acaba sofrendo uma implosão que atinge inclusive seus fundamentos organizacionais. […] A diferenciação entre normas jurídico-materiais de tipo superior e inferior compele o legislador a deixar a posição de normatização central, pela qual um Estado logra transformar-se em Estado legiferante. Essa diferenciação penetra como uma flecha em toda a estrutura organizacional do Estado legiferante, modificando-o de tal modo que, no intervalo entre o uso e a reivindicação da legalidade superior, acabam surgindo instâncias e organizações inexoravelmente mais elevadas que são superiores ao legislador ordinário (Schmitt, 2007, p. 58-59).
Essa estrutura de legalidade somada à concepção de lei que dava base à democracia parlamentar fazia com que mudanças na base material da sociedade fossem difíceis ou quase impossíveis. Em um cenário como esse, para que uma mudança ocorresse ela deveria ser legalmente expressa e seguir os parâmetros de legalidade necessários – ou seja, atingir o quórum de maioria parlamentar, fosse ele de maioria simples ou qualificada. Na prática, isso implicava que uma mudança só poderia acontecer se fosse da vontade da maioria parlamentar, já que os interesses minoritários eram barrados, pelo próprio sistema de legalidade, de terem suas demandas transformadas em assunto de lei. No limite, portanto, esse sistema permite a reprodução social, mas nunca a mudança social.
O grande paradoxo apontado por Schmitt é que esse sistema, ainda que com todas as limitações às vontades das minorias, foi legitimado pelo princípio da igualdade de chances de alcançar a maioria. O fato de a expressão aritmética ser a referência exclusiva de formação de maioria fez com que os impedimentos que não se expressassem de maneira aritmética – como era o caso do monopólio sob a legalidade – não ficassem evidentes, de modo que a aparência mostrada pelo sistema era de que era possível para quaisquer facções da sociedade conseguirem maioria no parlamento. Nesse cenário, a democracia enquanto governo do povo sustentava-se como fachada, mas não como método. Aqui, mais uma vez, o autor enfatizou o caráter puramente normativo do Estado legiferante parlamentar, já que novamente reiterou que as questões qualitativas da política eram atropeladas por arranjos institucionais que se conformavam de maneira quantitativa e em favor do partido que operacionalizar a legalidade do Estado.
É interessante como a construção da crítica de Schmitt atribui ao sistema democrático parlamentar de Weimar características que o tornam intrinsecamente falho e desprovido de soberania. Restrito a um sistema de legalidade que legitimava a si mesmo em seus próprios termos, a democracia parlamentar foi descrita pelo autor como um sistema jurídico-legal puramente normativo e aparelhável por maiorias que não representam o demos.
Quem dispõe da maioria faz as leis vigentes, outrossim, tornará vigentes as leis feitas por ele próprio. Vigência e tornar vigente, produção e sanção da legalidade, eis seu monopólio. Não obstante, o mais importante é que o monopólio do fazer viger a lei vigente confere-lhe a posse legal dos meios hegemônicos estatais e, por conseguinte, um poder político que vai muito além da simples “vigência” de normas (Schmitt, 2007, p. 32-33).
Enquanto incapaz de garantir uma identidade entre governante e governado (Benjamin, 2008, p. 425) – no sentido de não expressar, em si e homogeneamente, a “vontade geral” – a democracia liberal foi entendida como uma contradição em termos. Por outro lado, o parlamentarismo associado ao sistema de legalidade que o configurava instaurou um estado de coisas onde “o partido dominante dispõe de toda preponderância decorrente da simples posse dos meios hegemônicos legais […]. Agora, a maioria subitamente não mais é um partido, é o próprio Estado” (Schmitt, 2007, p. 32-33).
O que o autor afirma a partir disso é que o sistema democrático parlamentar instaura uma situação que ele denominou como “Estado total”, que só poderia ser desfeito se se alçasse ao poder “uma autoridade estável para se realizarem as despolitizações necessárias” (Schmitt, 2007, p. 97). Essa autoridade deveria chegar ao Estado por meio de eleições diretas, já que esta lhe garantiria a legitimidade plebiscitária, entendida por Schmitt como único tipo de justificação pública válida. Tratava-se, portanto, da instauração do “Estado autoritário”, fundamentado na figura de um governo autoritário – não parlamentarista – legitimado pelo plebiscito – não pelo seu sistema de legalidade.
Considerações finais
Feita a passagem por alguns dos principais argumentos do livro, é possível voltar à questão que introduz esta reflexão. A respeito de ser uma obra que apresenta um diagnóstico de seu tempo, a resposta parece evidente. Sob a ótica da legalidade do Estado legiferante, Schmitt apresentou sua crítica à Constituição de Weimar mesclada às suas concepções a respeito do Estado enquanto instituição e da democracia como sistema de governo. Dessa forma, por meio da crítica à situação alemã o autor construiu uma teoria política do Estado que extrapolou os limites da Alemanha, ainda que dando a esta um sentido geral importante.
À segunda parte da pergunta, sobre os conceitos tratados na obra agirem ativa e intencionalmente como mais uma força legitimadora da política autoritária, a resposta não é possível enquanto solução, mas sim como exercício. Sem recorrer minimamente ao contexto de produção da obra e aos diálogos estabelecidos por ela, é difícil – senão impossível – chegar a uma resposta concludente acerca de seu impacto no contexto da República de Weimar. No entanto, propor uma questão como essa nos permite pensar em algumas coisas importantes e, ao meu ver, caras à Ciência Política: qual é o impacto de uma teoria política autoritária em uma sociedade incendiada por conflitos? O papel assumido por teóricos e teóricas políticos em momentos delicados no campo social e político repercute nos caminhos institucionais e simbólicos dos conflitos? O respaldo teórico oferece maior legitimidade a práticas autoritárias na política?
Assim sendo, mesmo sem garantir que Legalidade e Legitimidade seja filha ou bandeira de seu tempo, o mais importante, no fim, é entender que ela nos apresenta um retrato teórico de uma das forças que disputam o campo político até os dias de hoje. Mais que isso, posicionar Schmitt como teórico político e encarar sua obra como diagnóstico ou como legitimação de ideias políticas possibilita que pensemos nos impactos de nosso próprio ofício enquanto teóricos e teóricas. Nossas produções são diagnósticos ou bandeiras de nosso tempo? Elas precisam ser um ou outro? O impacto que causamos é da mesma grandeza e natureza dos impactos que nos mobilizam a teorizar sobre a política? Qual é nosso objetivo ao teorizá-la? A essas perguntas as respostas também são possíveis apenas enquanto exercício, e é a esse exercício que não podemos nos furtar.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
BENJAMIN, C. C.. Schmitt e o problema da democracia: nostalgia da transcendência ou a representação como questão para a democracia. Kriterion: Revista de Filosofia, v. 49, n. 118, p. 417–441, dez. 2008.
SCHMITT, Carl. Legalidade e legitimidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
Fonte Imagética: Wikimedia Commons. Alfred Hugenberg spricht im Reichstag, circa 1931. Fotografia de Erich Salomon. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Erich_Salomon_Alfred_Hugenberg_Reichstag.jpg>. Acesso em: 2 out. 2023.
[1] Mestranda em Ciência Política (USP) e pós-graduada em Estudios Latinoamericanos y Caribeños (CLACSO). alice.souza.araujo@usp.br.