Pedro Santos Mundim[1]
O artigo “A batalha pela opinião pública e o impeachment de Dilma Rousseff” tem três histórias: uma acadêmica, outra pessoal e uma terceira de bastidor. A primeira é simples de contar. Como professor universitário e pesquisador, ele faz parte de um esforço para a produção de artigos oriundos das pesquisas desenvolvidas durante a minha passagem na diretoria de opinião pública da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) entre 2014 e 2015. Disso resultaram em diversos trabalhos que relacionam a opinião pública brasileira com temas que foram importantes para o Governo Federal nesse período (MUNDIM, 2015; MUNDIM et al., 2019a, 2019b; MUNDIM; GRAMACHO; PINTO, 2018; MUNDIM; SILVA, 2019).
A segunda história é mais complicada. “A batalha pela opinião pública e o impeachment de Dilma Rousseff” foi o artigo que eu mais tive dificuldades de escrever. Aqui vão algumas razões. A primeira e mais óbvia é justamente por ser um tema bastante sensível: o golpe parlamentar dado para destituir uma presidenta democraticamente eleita em 2014. A segunda é que ele começou a ser germinado na minha cabeça em um momento pessoalmente muito difícil, que foi quando eu já tinha saído da diretoria de opinião pública da Secom-PR, no segundo semestre de 2015.
Lembro-me bem que, em setembro de 2015, fui convidado pela minha amiga Mara Telles (UFMG) para compor a mesa de abertura de IV Congresso Internacional de Comunicação Política e Estratégias de Campanha da Associação Latino-americana de Pesquisadores em Campanhas Eleitorais (ALICE), em Belo Horizonte. O impeachment ainda não estava no horizonte das elites políticas brasileiras. Mas, já naquela época, eu queria falar sobre como parte da crise política que vivíamos tinha a ver com uma crise de comunicação do governo federal com a maioria esmagadora da opinião pública brasileira. E a diretoria de opinião pública da Secom-PR tinha acompanhado isso como poucos o puderam fazer nesse período.
Contudo, na época eu estava psicologicamente tão mal que eu sequer consegui fazer uma apresentação, algo que nunca tinha acontecido antes na minha vida. Só mais de um ano depois é que eu finalmente consegui elaborar uma apresentação, repleta de dados de opinião pública dos relatórios que fazíamos toda semana para o gabinete presidencial, que continha as ideias iniciais do que posteriormente viria a ser o artigo.
A apresentação se chamava “A contribuição de Dilma 2.0 para a comunicação política”. Como o próprio nome sugere, há uma clara inspiração no célebre artigo de John Zaller sobre a “contribuição” do caso Monica Lewinsky para a Ciência Política (ZALLER, 1998, p. 185), onde ele argumenta que a “ascensão e queda de presidentes (…) têm a ver principalmente com a forma como eles governam”. Embora, nas suas palavras, “outras coisas” possam ser importantes, é a “prestação de contas sobre as condições do país e a implementação de políticas efetivas” o que realmente importa. Ou seja, mandatos presidenciais têm uma relação indissociável com a opinião pública do país, e governos que conseguem entregar “realizações” aos seus cidadãos tendem a prosperar, já que possuem “substância política”.
No entanto, o artigo propriamente dito só começou a ser escrito em 2021. Além dos motivos já mencionados, um dos problemas que encontrei para escrevê-lo sempre foi o fato de que, ao contrário de basicamente todos os artigos que eu já escrevi na minha vida – inclusive os artigos que levaram em consideração as pesquisas feitas na Secom-PR –, “A batalha pela opinião pública e o impeachment de Dilma Rousseff” tem um teor muito mais ensaístico e não foi escrito com a tentativa de provar de maneira mais substantiva ou cabal uma série de hipóteses que poderiam ter sido derivadas da discussão teórica seguindo as formas tradicionais utilizadas em trabalhos científicos.
O fato de ser um artigo ensaístico me apresentou uma série de dificuldades, porque eu sempre escrevi artigos empíricos seguindo o formato quadrado e tradicional de introdução, discussão teórica, elaboração de hipóteses, análise, apresentação dos dados, análise dos dados e conclusão. Neste caso específico, eu sabia que estaria apresentando uma ideia de que eu mesmo não teria condições de comprovar empiricamente da forma como eu comumente fiz em outros trabalhos. Mas ao mesmo tempo acreditava, e tinha evidências de trabalhos produzidos em outras outras áreas, principalmente no campo institucional, sobre o quanto a opinião pública é um componente importante para que governos possam coordenar suas ações com o parlamento. Mas, no caso do impeachment de Dilma, eu acredito que ele seja importante porque aborda o tema do impeachment da ex-presidenta de uma maneira que nenhum dos excelentes trabalhos que foram produzidos sobre o tema o fez até agora.
Posso não ter feito uma afirmação tão categórica assim no texto, mas acredito que caso a ex-presidenta não tivesse perdido tanta popularidade junto à opinião pública, a sua destituição do cargo teria sido mais difícil. Eu até fiz essa afirmação em versões anteriores do texto. Mas, por sugestão de avaliadores, a retirei. Como este artigo para o Boletim Lua Nova me dá um pouco mais de liberdade, por assim dizer, não vejo problema em trazer esse argumento à baila. Não digo que o impeachment não aconteceria. Mas é óbvio que haveria obstáculos a mais, e talvez até mesmo uma certa mobilização ou revolta maior de uma parte da população sobre o que estava acontecendo. Teria sido mais difícil. Enfim, deixo a tarefa de mostrarem que eu estou errado para outro(a)s pesquisadore(a)s.
Finalmente, a terceira história. Como disse no início do texto, entre janeiro e março de 2015, período em que foram produzidos os dados apresentados no artigo, eu trabalhava no governo federal. O primeiro semestre do ano de 2014 foi interessante do ponto de vista da opinião pública por conta da Copa do Mundo. O governo estava muito preocupado com qual seria o impacto do evento e uma eventual perda do título, como veio a acontecer, sobre a popularidade da presidenta, dado aquele era um ano de eleição presidencial. Nós monitoramos diariamente a opinião dos brasileiros sobre o evento e, sim, houve o que poderíamos chamar de um “efeito Felipão”: no dia seguinte ao 7 a 1, as pessoas ficaram extremamente críticas ao governo e à organização da Copa do Mundo. Mas isso passou e a vida seguiu. Veio a campanha e nós suspendemos todas as pesquisas da área até depois do 2º turno.
Mas ao mesmo tempo, como diretor da área de opinião pública, no final de 2014 eu alertei a equipe de que a nossa área seria muito mais necessária e importante a partir do segundo mandato, porque já se sabia, não por informações internas ou por algum segredo que apenas os ocupantes do governo federal saberiam, que o ano de 2015 seria um ano de ajustes econômicos, como era amplamente discutido e divulgado na imprensa e até mesmo sinalizado na campanha presidencial. Logo, realizar pesquisas para captar o humor da opinião pública em relação a esses ajustes seria essencial do ponto de vista da comunicação governamental, para que o governo pudesse ir ajustando as suas falas e suas estratégias de comunicação em função de como as pessoas iriam reagir às mudanças econômicas que fossem sendo implementadas.
Para nossa surpresa, na primeira pesquisa que realizamos em meados de janeiro de 2015, a popularidade da presidenta estava praticamente estável se comparada com a última pesquisa que a área tinha realizado em julho de 2014. Mas esse cenário logo começou a mudar na semana seguinte. Nos três meses posteriores, como o próprio artigo descreve, a popularidade da ex-presidente começou a derreter. Isso aconteceu, também, por conta de alguns equívocos estratégicos do próprio governo, que ao implementar um ajuste fiscal rigoroso não preparou a população para que isso acontecesse. Como está escrito no artigo, a primeira campanha sobre o ajuste fiscal só aconteceu em abril de 2015, com um nome que destoava completamente do contexto político em que vivíamos: “Ajustar para avançar”. Ninguém, óbvio, comprou essa ideia, e a popularidade não melhorou. Naturalmente, àquela altura, não poderíamos esperar outro tipo de reação da opinião pública.
Mas o fato mais surpreendente para nós, contudo, foi quando, em um projeto de pesquisa quadrimestral realizado em março de 2015, durante a execução de grupos focais que estavam discutindo os problemas econômicos do país, começamos a ouvir dos participantes desse grupo, inclusive muitos apoiadores do governo federal ainda naquele momento, que os problemas econômicos no Brasil estavam sendo causados pelo “furo” da Petrobras, como um dos entrevistados mencionou. Eu estava nesse momento em Recife acompanhando em loco um grupo focal, como era de praxe. Outros integrantes da equipe iam para outras capitais do país para executar a mesma tarefa. Entrei em contato com uma pessoa que estava em Porto Alegre e a mesma coisa aparecia naquele lugar. Outra pessoa estava em Brasília e os resultados eram os mesmos. Ali ficou claro, pelo menos para nós, que alguma coisa tinha se passado e que, ao que tudo indicava, era um caminho sem volta.
Isso é uma demonstração clara de que muitas vezes as políticas governamentais recebem um posicionamento muito crítico da opinião pública porque eventualmente o governo não se comunica com as pessoas. É claro que qualquer tipo de ajuste econômico vai causar muitos problemas para o governo de ocasião. As pessoas vão ficar insatisfeitas, vão ficar com raiva, vão ficar decepcionadas, e os nossos dados captaram tudo isso. Mas é função dos governos e da área de comunicação dos mesmos estabelecer e trabalhar da melhor forma possível uma comunicação com a população, mesmo que seja para dar-lhes más notícias. Ninguém é eleito apenas para comunicar coisas boas e positivas. Dar más notícias faz parte do trabalho, mas os políticos parecem ter medo disso. O problema é que, quando as pessoas se dão conta de que alguma coisa está errada, e percebem que não foram avisadas, tendem a ser muito mais críticas das ações governamentais.
A história por trás do texto é um trabalho que começou a ser germinado quando eu ainda atuava de maneira direta na obtenção de dados de opinião pública sobre o governo federal, trabalhando dentro do próprio governo. Em seguida, as ideias começaram a ser desenvolvidas a partir de muita reflexão e de contato com uma literatura que eu já tinha lido e apreciava de maneira muito substantiva. Houve também a necessidade de superar dramas pessoais e dificuldades para que, primeiro, eu conseguisse organizar as ideias em uma apresentação e, em seguida, em um texto de caráter acadêmico, o que nunca é simples. Por fim, a dificuldade foi conseguir estabelecer um diálogo com teorias, artigos e trabalhos sobre impeachment de diferentes campos das ciências sociais e linhas de pensamento completamente distintas das quais eu atuo. Ter escrito esse artigo e finalmente poder publicá-lo é o fim de uma jornada pessoal que começou em 2015 e terminou agora em 2023. Nunca imaginei que demoraria tanto.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
MUNDIM, P. S. Assistindo ao Jornal Nacional: determinantes da exposição aos principais telejornais brasileiros. Revista Debates, v. 9, n. 3, p. 37–62, 2015.
MUNDIM, P. S. et al. Bolsa Família, informação e preconceito: uma análise com o uso de experimentos. Revista do Serviço Público, v. 70, n. 4, p. 551–575, 2019a.
MUNDIM, P. S. et al. O Programa Bolsa Família e seus beneficiários na opinião pública brasileira. Opinião Pública, v. 25, n. 3, p. 556–576, 2019b.
MUNDIM, P. S.; GRAMACHO, W. G.; PINTO, A. J. DE P. Razão e emoção: reações ao estado da economia e aprovação do governo federal. Opinião Pública, v. 24, n. 1, p. 90–113, 2018.
MUNDIM, P. S.; SILVA, G. M. A. DA. The World Cup and Presidential Popularity in Brazil. Brazilian Political Science Review, v. 13, n. 3, 2019.
ZALLER, J. R. Monica Lewisky’s Contribution to Political Science. PS: Political Science & Politics, v. 31, n. 2, p. 182–189, 1998.
[1] Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ (Atual IESP-UERJ). Professor associado de Ciência Política da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Federal de Goiás (UFG) e Coordenador do Centro de Pesquisa em Comunicação Política e Saúde Pública da Universidade de Brasília (UnB). Email: psmundim@ufg.br
Fonte Imagética: Wikimedia Commons. Manifestação contra o governo e a corrupção na Esplanada dos Ministérios, 15 de março de 2015. Fotografia de José Cruz/Agência Brasil. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Brasília_protest_-_Brazil_15_March_2015.jpg>. Acesso em: 3 out. 2023.