Paulo Bittencourt[1]
Um esforço para a compreensão de tempos complexos
Setembro marcou 19 meses do início da ofensiva russa à Ucrânia. Mais uma vez, o O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), atento aos desdobramentos dos eventos políticos na região, mostrou sua vivacidade em um debate de alto nível, subsidiado pelo texto do professor Sebastião Velasco e Cruz, da Unicamp. Além do autor, participaram também da mesa os professores Marco Cepik (UFRGS), Augusto Teixeira (UFPB) e Giorgio Romano Schutte (UFABC). A mediação ficou a cargo do professor Tullo Vigevani (Unesp), ressaltando a importância do debate em questão e especificamente do texto do professor Velasco, uma vez que se faz necessária uma análise do tema problematizando-o no contexto das grandes perspectivas das Relações Internacionais.
A fala inicial foi feita pelo professor Sebastião, que optou por não fazer uma exposição do texto, senão por apresentar rápidas reflexões. Ele retomou uma série de discussões promovidas pelo INCT-INEU. A primeira delas retoma o cuidado com a observação da então crise, que viria a se transformar em guerra, ainda em dezembro de 2021. Nesta ocasião, embora a guerra fosse uma possibilidade, tratava-se de uma cogitação longínqua. Já em fevereiro de 2022, dois dias antes da invasão, o Instituto organizou um seminário com pesquisadores nacionais e estrangeiros. Nesse momento, já se discutia a possibilidade da guerra. Em maio de 2022, o Instituto ocupou-se de discutir os desdobramentos da guerra e suas implicações internacionais. No fim do mesmo ano, com as midterms estadunidenses, o Instituto realizou seu já tradicional balanço das eleições, que gerou um livro com as reflexões do evento. Nesta publicação, a questão da intervenção militar na Ucrânia se impunha como uma urgência, e o professor Sebastião tomou para si a tarefa de tratar dessa questão. Sua intenção era mapear o debate interno, nos Estados Unidos, sobre os eventos na Ucrânia.
O mapeamento do problema prosseguiu mesmo após o seminário de dezembro de 2022, quando o professor se viu diante de um problema muito maior do que a guerra na Ucrânia. Sua postura norteadora foi a de cuidadosamente observar a conduta do governo estadunidense e suas ambiguidades e elementos contraditórios. Com isso, Velasco nota as relações entre Estados Unidos e Rússia no contexto que se apresentava ao fim da Guerra Fria. A nova ordem que emergiu com a dissolução da União Soviética – mantendo a Rússia com um arsenal militar capaz de devastar o “vencedor” da Guerra Fria – apresentava uma “falha tectônica”: era uma ordem que tinha como pressuposto um hegemon incontrastável, mas que no plano decisivo não se colocava como tão incontrastável assim.
Para o professor, sua ideia era a de que o conflito na Ucrânia não podia ser compreendido por si mesmo, mas sim como um de uma série de episódios que surgem neste sistema de contradições. Concluiu o professor que o conflito fundamental do sistema internacional contemporâneo não é entre os Estados Unidos e a Rússia, mas entre os Estados Unidos e a China – a grande “causa ausente” de toda a conduta do governo estadunidense.
Uma guerra às custas dos reais problemas da humanidade
Passou-se, em seguida, às considerações do professor Marco Cepik. Sua fala se deu ao redor da constatação de uma contradição inescapável: a conduta dos Estados Unidos no contexto do desmanche da ordem internacional pós-Segunda Guerra Mundial é uma de desejar os fins rejeitando os meios. O que isso quer dizer? Os Estados Unidos, seja por meio de Trump ou numa visão de hegemonia benévola e defesa de regimes democráticos, reitera a posição com que saiu da Guerra Fria, ou seja, se reafirma como potência hegemônica global. Contudo, há uma rejeição dos meios para se bancarem tais custos, seja em termos de tolerância a outros polos de poder, seja em termos de oferecer soluções para o que Cepik chama de “problemas reais da humanidade”, problemas estes de uma humanidade muito diversa e plural quando comparada àquela que habita o Ocidente. Os “problemas reais da humanidade” são aqueles que foram agravados com a primeira onda de globalização: problemas da ordem da sustentação ecológica do planeta e da ordem da sustentação de sociedades cada vez mais desiguais em escala global. À proposta de reafirmação da hegemonia dos Estados Unidos não interessa nenhum desses problemas. E o que é oferecido por essa hegemonia é a guerra, com uma tentativa – e eventual sucesso – em produzir os efeitos do keynesianismo militar. Essa solução, prossegue o professor, mantém abertos os conflitos, com distintos graus de sofrimento, e desviando recursos e energia que poderiam resolver os problemas reais da humanidade.
Os Estados Unidos mantiveram, ao longo do fim da Guerra Fria, uma postura de desmonte da arquitetura institucional internacional, que tem como momento crucial a retirada dos Estados Unidos do Anti-Ballistic Missiles Treaty em 2001. Essa retirada tem como efeito uma grande desorganização institucional, cujos desdobramentos vemos até o momento.
A ordem internacional que vemos no presente, pois, é uma ordem que não é apenas desbalanceada, mas também assimétrica. Nesse sentido, Cepik concorda com Velasco que, apesar de uma grande potência, a Rússia não tem mais elementos para competição internacional – e mesmo a China tem condições militares e econômicas muito assimétricas quando contraposta aos Estados Unidos. Essa ordem internacional é proposta e gerida por redes políticas internas que caracterizam um sistema político claramente disfuncional, que é o estadunidense: internamente, há uma dependência crescente do grande capital (financeiro ou tecnológico) associado à necessidade de manutenção do estado de guerra permanente no sistema internacional e financiar uma elite política para que ela possa indefinidamente se eleger.
Dessa maneira, qual o custo, pergunta-se Cepik, de se manter essa grande estratégia? Qual o custo para a humanidade, para o desenvolvimento, para o equilíbrio ecológico do planeta, da emancipação de populações oprimidas, para a sustentabilidade social e ecológica de um modelo de desenvolvimento global que se propôs como tão superior? Finaliza Cepik apontando que transparece, pois, uma imoralidade radical da tentativa de retomada hegemônica por parte dos Estados Unidos, porque, diferentemente do que já houve em outros momentos históricos, estamos diante de emergências climáticas, ambientais e sociais que nos cobrarão muito caro pelo desvio de atenção dos “reais problemas da humanidade”.
Entre objetivos maximalistas e minimalistas
O debate prosseguiu para as considerações do professor Augusto Teixeira, que também salientou o aspecto presente no texto de Velasco de que a guerra na Ucrânia é um episódio num cenário muito mais amplo de rearranjo global em termos de powershift. A força militar é mobilizada com objetivos políticos de manutenção e conquista de espaços de poder. Nesse sentido, o ponto de inflexão do reposicionamento da Rússia no cenário internacional não se dá em 2022, com a invasão da Ucrânia, nem em 2014, com a anexação da Crimeia. Antes, ele se dá em 2008, com uma tentativa de cessar a perda de influência no antigo território soviético com o ataque à Geórgia. Teixeira faz coro a Mearsheimer ao apontar que as potências não buscam uma dominação global, mas sim a sua afirmação enquanto hegemons regionais, o que distingue uma diferença marcante da corrida geopolítica no contexto da Guerra Fria com a competição que encontramos atualmente.
Nesse contexto, três efeitos do conflito se colocam de forma contraditória. Primeiro, se, por um lado, a extensão da OTAN avançou para países com grande capacidade tecnológica e de manpower, além de simbolicamente romper com a tradição de neutralidade de outrora; por outro, essa mesma expansão enfrenta um problema importantíssimo: a capacidade de sustentar um cordão geoestratégico contra a Rússia em um contexto em que o uso da violência e da coerção estratégica se apresenta como algo muito mais recorrente do que no período da dissolução da União Soviética.
O segundo efeito do conflito tem a ver com a aproximação sino-russa, que constitui um arco importante entre os dois países asiáticos, trazendo ganhos econômicos e políticos, ao mesmo tempo em que traz intrinsecamente conflitos de interesses, como a disputa por influência na Ásia Central, e também a disputa pelo Ártico, em que a Rússia é um ator relevante e em que a China tem buscado se posicionar. Ainda um terceiro efeito no campo geopolítico diz respeito ao papel da Rússia em suas relações com o Sul Global, categoria proposta por Estados heterogêneos, com interesses distintos e ainda sem capacidade de se costurarem agrupamentos com elementos identitários que os identifiquem como um contraste à ordem prevalente, diferentemente do contexto da Guerra Fria. Esse cenário, conclui Teixeira, ainda não está aberto para ação política.
Augusto Teixeira destaca que a guerra não é necessariamente um objetivo, mas possui uma função na produção de um resultado político, seja ele a remoção do status de motor industrial europeu da Alemanha, seja de enfraquecimento crônico da Rússia, ou de reposicionamento americano enquanto ator protagonista na liderança da segurança europeia. Contudo, a dimensão militar se mostra problemática quanto às opções políticas disponíveis aos Estados Unidos, e Teixeira se propõe a explicar em que sentido se encontra o problema.
Na perspectiva ucraniana, seria possível pensar em objetivos maximalistas: expulsão da Rússia dos territórios ocupados por meio de uma vitória militar e política. Podemos, contrariamente, pensar em objetivos minimalistas por parte da Ucrânia: criação de uma situação militar que eleve sua posição de barganha em uma potencial negociação de paz. Contudo, o problema, para a Ucrânia, é que nenhum desses objetivos precisa necessariamente passar por Kiev, e isso porque os Estados Unidos, potência fundamental na guerra por procuração, também possui seus objetivos maximalistas e minimalistas. Aqueles podem ser descritos pela expulsão da Rússia dos territórios ocupados e efeito simbólico de humilhação da Rússia enquanto grande potência, inclusive militar, uma vez que, desde o fim da União Soviética, os documentos de segurança militar e de defesa russos colocam como elemento básico a busca pelo reconhecimento de seu status de grande potência, além de sua condição de potência nuclear. Também dentro dos objetivos maximalistas, poderíamos pensar em termos de mudança de regime dentro da Rússia, a partir da crise que uma derrota militar poderia desencadear. Já o objetivo minimalista também se caracteriza, da perspectiva estadunidense, pela ampliação do espaço de barganha em favor da Ucrânia.
Ambas as categorias de objetivos, prossegue Teixeira, são danosas à administração Biden, sobretudo às vésperas da corrida eleitoral. O desgaste em termos humanos e tecnológicos no campo de batalha torna improvável uma vitória que garanta que os objetivos maximalistas sejam alcançados. Outra limitação dessa opção é seu efeito na opinião pública: há uma redução no apoio à guerra, somado aos efeitos do ciclo eleitoral que se aproxima, aumentando as dificuldades de se sustentar um apoio mais intenso no conflito. Há problemas, também, em se garantir a opção minimalista, porque ao tão-somente aumentar a margem de barganha ucraniana, ela passa pela necessidade de se abrir mão de territórios que foram invadidos e conquistados – ou seja, há aqui uma concessão territorial.
Teixeira se encaminhou para o fim de sua apresentação notando que o conflito percebido nos Estados Unidos é com a China, e não diretamente com a Rússia. Nesse sentido, a manutenção de uma guerra na Europa, com a necessidade de escoamento de material, recursos e atenção para o conflito entre Rússia e Ucrânia retira dos aliados europeus de Washington qualquer capacidade de contribuir com uma frente de contenção chinesa – e isso se torna tanto mais importante quando notamos que os Estados Unidos, historicamente, operam por meio de coalizões. A guerra na Ucrânia, finaliza Teixeira, é uma triste ocorrência que acelera processos estruturais de transformação.
Uma guerra feita de surpresas
Enfim, a palavra foi concedida ao professor Giorgio Romano Schutte, que vê nos eventos desdobrados na Ucrânia uma série de surpresas.
A primeira delas é a própria invasão: para Schutte, discordando do argumento de Velasco e Cruz, não havia clareza por parte dos EUA de que a Rússia invadiria a Ucrânia. O ataque de Moscou a Kiev parecia impossível tanto nos EUA como na Europa. O professor salienta os grandes custos da guerra para a Rússia, de modo a sustentar que seria difícil imaginar um cenário em que essa alternativa fosse a preferida.
A segunda grande surpresa foi a atitude de Zelensky: ao se posicionar como pilar da resistência ucraniana, o presidente consegue um forte apelo popular, a despeito dos episódios regionais e domésticos anteriores à invasão, tais como a queda da sua aprovação devido ao envolvimento de setores de seu governo com esquemas de corrupção, a dificuldade em prosseguir com a agenda que o havia alavancado eleitoralmente, além também da operação da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) no Cazaquistão em janeiro de 2022.
Um terceiro elemento de surpresa foi a capacidade do governo Biden de liderar, tanto doméstica como internacionalmente, o processo de auxílio à Ucrânia. Em termos internacionais, Romano cita o fortalecimento da OTAN, ilustrando essa questão com o aumento da participação alemã no orçamento da organização.
A quarta surpresa envolvida na guerra foi a posição do Sul Global. Segundo Schutte, havia uma expectativa europeia de que sua posição seria seguida pelos países do hemisfério, o que não se concretizou: as reações de países como Brasil, Índia e África do Sul são muito parecidas entre si, mas distintas das expectativas europeias. O Sul Global se torna, na análise de Schutte, um ator importante nesse episódio, o que contribui, por exemplo, para o interesse de novos países em adentrar os BRICS, buscando uma posição mais autônoma em relação ao Norte Global.
Para Giorgio Romano Schutte, a posição americana é clara: manter sua hegemonia, e mantê-la indivisível. E nesse cenário, convergindo com as análises anteriores, a disputa por espaço não é com a Rússia, mas sim com a China. Além disso, com a aproximação das eleições estadunidenses, há o receio de que ações equivocadas na condução da guerra na Ucrânia contaminem o eleitorado, à exemplo da queda de aprovação do governo Biden após a retirada das tropas estadunidenses do Afeganistão.
Enfim, no que diz respeito à Rússia e suas relações com os Estados Unidos, Schutte a caracteriza em três momentos. O primeiro deles é a década de 1990, sob a presidência de Boris Yeltsin. Aqui, as relações entre Rússia e Estados Unidos são relativamente próximas, já que Yeltsin vence, naquele momento, o candidato Gennady Zyuganov, do Partido Comunista, que tinha tido grande desenvoltura nas eleições parlamentares de 1995. O segundo momento das relações entre Rússia e Estados Unidos no pós-Guerra Fria é marcado pela eleição de Putin (2000) e pela política de reestatização das empresas de petróleo e gás. Nesse momento, apesar de grande parte dessas empresas ainda pertencerem à iniciativa privada, o Estado russo consegue retomar o controle e a direção de um setor estratégico. Nesse espírito, o discurso de Putin em Munique em 2007 traz uma Rússia revigorada ao panorama internacional. O terceiro momento dessas relações é a volta de Putin após o mandato presidencial de Dmitri Medvedev. Putin não tem mais um projeto político a partir de então, segundo Schutte. Com desenvolvimento apequenado, ausente das revoluções tecnológicas em voga, Putin passa a se aliar a setores sociais ultraconservadores para compensar a performance política carente de projeto: esta é uma marca distintiva fundamental deste momento com o anterior. A Rússia, no diagnóstico do professor, é uma potência em decadência, que se esforça em manter sua presença por meio da capacidade militar e de uma ideologia altamente radicalizada do nacionalismo. Captar a lógica interna da Rússia é importante para compreender suas ações externas. Essa lógica interna é marcada, ressalta Schutte, ecoando um argumento do professor Ângelo Segrillo, pelo dramático fechamento de espaços democráticos após a ofensiva à Ucrânia.
À guisa de conclusão, com todo esse acirramento das disputas políticas com a Europa e os Estados Unidos, resta à Rússia voltar-se ao Oriente, onde se encontra a China, uma parceria com muitos problemas, mas indispensável para a Rússia.
Discussão
Retomando a palavra para responder às intervenções, Velasco e Cruz apontou para a necessidade de se encararem os quadros domésticos nas sociedades em questão, concordando com a fala de Giorgio Romano Schutte. Esse conflito não emerge primeiramente como guerra, mas como crise política. É uma crise política, que se desdobra em crise internacional e eclode como guerra. Em 2004, há uma situação de crise de legitimidade no governo eleito após denúncias mútuas de fraudes. A Europa e os Estados Unidos apoiam as denúncias de fraude, e sucedem novas eleições, dessa vez vencidas por Viktor Yushchenko, um candidato pró-Ocidente. Depois de dois anos da eleição, o governo de Yushchenko estava desmoralizado por denúncias de corrupção, de modo que o presidente traz seu antigo adversário político, Viktor Yanukovych – pró-Moscou – como primeiro-ministro. Em 2014, Yanukovych era o presidente ucraniano, e se torna alvo de protestos gigantescos no país, o que leva à crise daquele ano, com a anexação da Crimeia. Ora, não se pode compreender a Ucrânia como um país qualquer: ela foi parte do Império Russo e da União Soviética, mas também da Polônia, do Império Austro-Húngaro e que, portanto, carrega um problema de identidade nacional.
Contudo, mesmo com as elites pró-Rússia defendendo relações próximas a Moscou, não se buscava que a Ucrânia voltasse a constituir parte da Rússia. Até mesmo Yanukovytch, sendo taxado de “pró-Rússia”, defendia uma maior integração com a Europa (embora seja verdade que defendesse uma posição de neutralidade entre organizações militares como a OTAN e a OTSC). De qualquer maneira, cria-se uma situação de Guerra Civil e setores no leste do país, com apoio russo, organizam um plebiscito e declaram sua absorção à Rússia. A partir, pois, da formação de uma identidade excludente anti-russa, colocam-se as condições para o não-estabelecimento de uma paz interna, de modo que temos aqui a gênese da transformação de uma guerra civil para uma guerra internacional.
Com respeito aos Estados Unidos, por sua vez, sua posição no fim da Guerra Fria é clara: a redução da Rússia a um ator importante, mas sem capacidade de acalentar o sonho de se tornar uma grande potência, mantendo a posição hegemônica dos Estados Unidos intocada, sem rival (tal qual Zbigniew Brzezinski propunha em sua análise ao fim da década de 1990). Para Velasco e Cruz, um dos objetivos estadunidenses – considerados como parte de uma agenda maximalista na exposição de Teixeira – seria certamente não a negociação com a Rússia, mas a sua derrota e remoção do governo atual: uma mudança doméstica que, somada aos resultados da guerra, levariam a uma decomposição da ordem existente hoje na Rússia. A preocupação, prosseguiu o professor, é com qual ordem substituirá aquela a hipoteticamente ruir. Velasco e Cruz apontou para uma liderança ainda mais agressiva e virulenta.
No que se refere à OTAN no debate estadunidense, emergem três posições quanto ao destino da segurança europeia e da segurança dos Estados Unidos. A primeira delas é a de que a segurança europeia deve ser deixada a cargo dos próprios europeus – posição compartilhada em alguns centros da Europa. Outra posição é a de que é inconcebível uma OTAN sem a liderança dos Estados Unidos, e, nesse sentido, a liderança dos Estados Unidos na segurança europeia é fundamental. Uma terceira posição é a de que os Estados Unidos devem se focar, com seus aliados do Pacífico, na contenção da China, porque ela é a potência em ascensão, e contra quem um conflito num curto período de tempo é muito provável. Esta última é a posição de Elbridge A. Colby, influente político do Partido Republicano e que participa da formulação da Estratégia de Defesa Nacional dos Estados Unidos, publicada em 2018.
Citando Norbert Elias, Velasco e Cruz retoma a ideia de que “a História é inconcebível sem a vontade humana, mas não é a vontade ou a intenção humana que explica a História”. Voltando um pouco mais, o professor retoma Marx ao dizer que “os Homens fazem a história, mas não a fazem nas condições que escolhem”. Isso se relaciona, para o professor, às colocações postas por Marco Cepik, que explora as contingências e urgências do atual cenário econômico, social e ambiental.
Em seguida, abriu-se espaço para perguntas da plateia, que fizeram referência ao cenário eleitoral que se avizinha. O professor Velasco e Cruz apontou para a existência de uma crise política interna de grandes proporções nos Estados Unidos. É uma sociedade dividida, não nos mesmos termos e sentidos que a ucraniana, mas ainda assim dividida, e com possibilidade de candidatura de um ex-presidente passível de condenação criminal. Não é por acaso, pois, o ataque ao Capitólio de 6 de Janeiro de 2021.
A título de conclusão, Tullo Vigevani aponta que os Estados Unidos saem ganhando na guerra, com o reforço da liderança estadunidense na arquitetura de segurança ocidental. Por outro lado, a Europa não pode ser considerada apenas um satélite estadunidense: há uma convicção de que os valores ocidentais, brancos, devem ser prevalentes no sistema internacional. Outro aspecto importante são os ganhos do sistema industrial-militar estadunidense: há grande interesse na manutenção da guerra visando a ganhos privados, e dificulta os esforços para a paz porque mobiliza interesses concretos dentro dos Estados Unidos.
A profundidade das reflexões apresentadas no evento evidencia o que o professor Tullo Vigevani apontou no início do painel: a necessidade de se refletir mais sistemática e estruturadamente sobre um tema tão importante dentro das relações internacionais contemporâneas e que nos coloca diante de um problema que exige tantas camadas de análise. Nesse sentido, o texto do professor Velasco e Cruz traz como mérito a problematização do quadrilátero da crise entre a Rússia, a China, a Europa e os Estados Unidos.
O debate de alto nível não deixa dúvidas de que nos encontramos diante de tempos de grande complexidade, que demanda, mais do que nunca, um esforço acadêmico para que se possa fazer sentido de um cenário com tantas nuances.
[1] Bacharel em Relações Internacionais e mestre em Ciências sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp. Doutorando em Ciência Política no Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (DCP/USP). Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP (NUPRI/USP), e atualmente pesquisador visitante na Universidade de Copenhague (Dinamarca). E-mail: paulobittencourt@usp.br