Maria Alice Pinheiro Nogueira Gomes[1]
O ideal democrático constitucional não define a realidade da democracia em determinado ambiente. Em verdade, fatores culturais, econômicos e políticos dialogam e influenciam diretamente as perspectivas de uma sociedade e isso tem como consequência a absorção de novos valores que irão mudar a visão de prioridade social em cada momento histórico.
Na América Latina, percebe-se a predominância do desenvolvimento econômico e social tardio dos países que a compõem, o que atribui ao Estado um protagonismo para a efetivação de direitos dos indivíduos. Contudo, diferente da política assistencialista dos governos Lula (2003-2011) e Dilma (2011-2016), o governo Bolsonaro (2019-2023) foi caracterizado pela abstenção do Estado quanto à saúde pública, ao meio ambiente e aos povos indígenas.
Destaca-se por outro lado que, em termos comparativos, dentro do período de 2010 a 2023, a postura de algumas instituições públicas mostrou-se mais ativista, como o Poder Judiciário e o Tribunal de Contas, especialmente o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal de Contas da União (TCU), que passaram a agir na seara política e social do Brasil em períodos de crise popular dos líderes, por vezes reconhecidos como populistas.
A pesquisa que atualmente desenvolvo, com base em revisão bibliográfica, análise documental e verificação de sítios eletrônicos, propõe um estudo crítico sobre a dinâmica dos Poderes Executivo e Legislativo, democraticamente eleitos, com o Poder Judiciário e com o Tribunal de Contas, órgãos controladores da administração pública.
Toda a discussão que proponho tem como questionamento basilar o seguinte: onde estão as instituições representativas no momento de crise democrática que enfrenta o Brasil? Algumas delas retraem sua atuação enquanto outras avançam, de forma deliberada, ou não, sobrepondo limites de competências. Nesse sentido, chama a atenção como os órgãos de controle, a exemplo do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Contas da União, têm assumido responsabilidades institucionais nas últimas décadas.
As inúmeras vertentes complexas do modelo democrático, seja na perspectiva de enfoque nos atores políticos, seja no enfoque das relações institucionais, prospectam a heterogeneidade que as decisões públicas podem alcançar. Os contornos da representatividade da democracia brasileira ensejam conhecimento das suas particularidades e lacunas.
Para o ambiente democrático representativo subsistir, o dinamismo do processo eleitoral se apresenta em caráter prévio, concomitante e posterior ao voto (URBINATI, 2006), bem como se exige a postura de justificação constante por parte das autoridades eleitas. Compreender que não há trade-off entre representatividade e governabilidade eficiente é o primeiro marco importante. Na verdade, são conceitos democráticos complementares. E é o modelo de accountability que permitirá o equilíbrio entre os dois conceitos.
Conforme O’Donnell (1998, p. 30-40), a accountability vertical assegura a característica democrática de que os governados, em posição superior, podem escolher seus governantes e deles exigir atuação eficiente e comprometida com a sociedade, especialmente com aqueles que os elegeram, podendo repercutir em confirmação ou negação de voto em novas eleições. Admite-se, ainda, como necessária a accountability horizontal, pela qual, reciprocamente, as instituições estatais e a sociedade civil passam a acompanhar e supervisionar a rotina dos agentes públicos, em mesmo patamar de igualdade, podendo haver repercussões sancionatórias de responsabilidade em situações de desconformidades, em semelhança ao que se denomina check and balances ou freios e contrapesos.
Destaca-se a necessidade de incorporação da accountability política na cultura social como instrumento de observância de condutas e possível responsabilização dos eleitos, haja vista a crescente apatia ou desinteresse sobre assuntos políticos pelos cidadãos, evidenciando crise de representatividade, acrescida de pouco controle sobre as atividades daqueles que foram eleitos para gerir e prospectar interesses coletivos (SCHUMPETER, 1984; PINZANI, 2013; LIJPHART, 1999; STARK; BRUSZT, 1998).
Quando a responsividade não se cumpre de forma voluntária, surgem gatilhos para se verificar a compatibilidade entre governabilidade e representatividade: a) o próprio povo, diretamente, nas eleições, pode premiar ou punir candidatos por meio do voto (Accountability vertical); b) a rede de instituições que formam o sistema público brasileiro pode assumir a postura de fiscalização recíproca (Accountability horizontal); c) ou as instituições (especialmente as de controle) podem tomar frente na tomada de decisões públicas, seja por consequência da apatia política; pela assimetria informacional que recai sobre a sociedade; por transferência deliberada do debate político; ou por impulso próprio.
O povo, titular do poder, tem a legitimidade de cobrar posturas e resultados a quem foi delegado o poder, pela representatividade. Contudo, no modelo democrático brasileiro, o custo das decisões pode prejudicar resultados eleitorais. A tendência é o desfrute do silêncio voluntário pelos atores políticos que ocupam cadeiras representativas no Legislativo ou no Executivo: articulam e se posicionam apenas quando estrategicamente lhes convém. Falham no papel que lhe deveria ser inerente: representar interesses de quem lhes depositou confiança. Nesse cenário, como não falar em crise democrática?
A ascensão popular, por meio de manifestações de ruas, foram vistas em 1992 com o pedido de impeachment do ex-Presidente Fernando Collor de Mello e em meados de 2013 o Brasil vivenciou novas manifestações populares em diversas cidades, a princípio para reivindicar a redução das tarifas do transporte coletivo, mas que depois ampliaram seus contornos sociais e políticos. Nesse período, percebe-se a ausência de respostas efetivas das instâncias representativas, com maior volume de demandas sendo encaminhadas ao Poder Judiciário, a exemplo da ADPF nº 132 e da ADI nº 4277, sobre união homoafetiva, e da ADPF nº 54, que tratava de fetos anencéfalos, julgadas respectivamente em 2011 e 2012, e que serão abordadas adiante.
Dessa forma, quando o objetivo particular de se manter no poder se sobrepõe aos custos de lidar diretamente com as questões sociais, os representantes eleitos tendem a repassar, direta ou indiretamente, o ônus para os tribunais, que não têm sobre si a prestação de contas com eleitores.
Vê-se a transferência do debate político para outras zonas estratégicas. A judicialização da política ocorre quando, em um ambiente democrático, com desenho institucional delimitado de separação dos poderes, as instituições majoritárias decidem evitar o desgaste e a sobrecarga decorrentes de determinadas decisões.
Especificamente, quando o Judiciário ou o Tribunal de Contas cujos membros não são eleitos pelo povo nem estão sujeitos à responsabilidade popular periódica decidem sobre situações próprias do cenário político-social, é possível que se questione o déficit democrático.
Resta problemática a suposição de que o ambiente dos tribunais é o mais adequado e apto para articular problemas sociais e políticos controversos, sob o manto dos dispositivos constitucionais e dos princípios que aparentemente poderiam fundamentar toda e qualquer demanda proposta.A eles a Constituição Federal não conferiu a legitimidade popular necessária para tais decisões.
Ran Hirschl (2004, p. 222-223) inaugurou o termo “juristocracia” para indicar o empoderamento do Poder Judiciário em razão da expansão de direitos. Para a alemã Ingeborg Maus e Antoine Garapon, o Judiciário se tornou o “superego da sociedade” (MAUS, 2000) e o “guardador de promessas” (GARAPON, 1999) de um povo que presencia a ineficiência dos meios democráticos e legítimos conferidos pelo próprio texto constitucional. Já José Ricardo Parreira de Castro (2015, p. 240-242) utiliza a expressão “ativismo de contas” para designar a postura proativa dos Tribunais de Contas enquanto concretizadores da finalidade da Constituição, ainda que isso repercuta em maior interferência na Administração Pública.
Como não lhe compete agir de ofício, o Poder Judiciário responde às demandas que lhes são questionadas. Ainda que se observe o princípio da inafastabilidade da jurisdição, pelo qual se assegura que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, deve-se reconhecer limites à apreciação do mérito, evitando, assim, invasão de espaços de outras esferas de poder.
Luis Roberto Barroso (2011, p. 361-362) indica causas gerais para a judicialização da política, dentre elas: a) o reconhecimento de um Poder Judiciário forte e independente; b) o descontentamento com a política majoritária, em virtude da crise de representatividade e da questionável funcionalidade do órgão legislativo; c) e, ainda, aponta a atitude deliberada dos atores políticos de transferir para a esfera jurisdicional decisões polêmicas, que podem lhe causar desavenças com o seu eleitorado e o descrédito em eleições futuras.
Na classificação estabelecida por Ran Hirschl (2004, p. 141) quanto à judicialização da política, existem três categorias abrangentes, que são compreendidas como processos inter-relacionados: a) a disseminação de discursos, jargões, regras e procedimentos jurídicos na esfera política e nos fóruns e processos de elaboração de políticas públicas; b) a judicialização da elaboração de políticas públicas pelas formas “comuns” de controle judicial de constitucionalidade de leis e atos da administração pública; c) e a judicialização da “política pura” — a transferência, para os tribunais, de assuntos cuja natureza e significado são claramente políticos.
O tema da judicialização da política não é novo e pode ser relembrado quando do julgamento em 12/04/2012, no Plenário do STF, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, com a finalidade de que a antecipação terapêutica do parto nos casos de fetos anencéfalos não fosse tipificada como aborto. Ao final, após todo o debate realizado, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, que seria inconstitucional a interpretação pela qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo fosse conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal.
Já a ADPF nº 132, julgada em conjunto com a ADI nº 4277, em 05/05/2011 no Plenário do STF, foram propostas, respectivamente, em 2008 pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), e em 2009 pela Procuradoria Geral da República, em face de interpretações e decisões que negaram os direitos reconhecidos às uniões heteroafetivas que estavam sendo violados, em relação aos casais homoafetivos, os preceitos fundamentais da igualdade, da segurança jurídica, da liberdade e da dignidade da pessoa humana. À unanimidade, os Ministros acordaram em julgar as ações procedentes para aplicar as mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva à união homoafetiva.
Ambos os casos conferiram ganho social às minorias, contudo, seriam temas propícios para o debate público, nos moldes da política, que foi transferido estrategicamente para a seara judicial.
Quando se aprecia a atuação do Tribunal de Contas, percebe-se situação sui generis. O órgão de controle externo cumula sobre si as atribuições de fiscalização e de julgamento, podendo, diferente do Poder Judiciário, agir de ofício, com independência e autonomia. Significa que não há necessidade alguma de aguardar provocação de terceiro para que sua atuação se inicie. A atividade pode ocorrer em diversos momentos: preventivo, concomitante ou posterior e, em todos eles, o Tribunal tem como premissa o princípio da efetividade para exigir posturas e resultados dos gestores com o dinheiro público.
A mudança do perfil vem do novo olhar que o órgão de controle tem dado à administração pública. É inquestionável que a complexidade dos contornos democráticos, considerada a escassez dos recursos públicos, exigiu rápido e gradativo aperfeiçoamento da forma da sua atuação. Como exemplo, as auditorias no setor público passaram a contar com maior rigor técnico, sob as balizas internacionais da Organização Internacional das Instituições Superiores de Controle (INTOSAI), entidade voltada para o suporte à auditoria externa aos vários governos internacionais associados[2], o que tem gerado a publicação de manuais e guias especializados nas modalidades de auditorias de desempenho e financeira.
Além disso, percebe-se que a atuação do Tribunal de Contas da União não diz mais respeito unicamente às auditorias de conformidade ou ao tradicional julgamento de contas públicas. Os contornos de autonomia e independência têm ganhado capilaridade em terreno de crise democrática, com o objetivo de resguardar o gasto público de qualidade, cobrando resultados e impacto social do dinheiro aplicado, especialmente com políticas públicas.
O TCU passou a ser mais ativista no cenário político. Como primeiro caso, cita-se o processo de impedimento da ex-presidenta Dilma Rousseff, que se originou em dezembro de 2015, por meio de denúncia de crime de responsabilidade protocolada pelos advogados Miguel Reale Júnior, Hélio Bicudo e Janaína Paschoal.
As acusações diziam respeito às inconsistências que desobedeciam ditames das leis orçamentárias e da lei de improbidade administrativa por emissão de decretos que resultaram em aberturas de créditos suplementares sem a anuência do Congresso Nacional.
Ao contexto, insere-se a emissão pelo Tribunal de Contas da União de parecer prévio desfavorável às contas de Dilma Rousseff. Como se sabe, quanto às contas dos Chefes do Poder Executivo, compete ao órgão de controle a emissão de parecer prévio, ou seja, uma análise preliminar sobre as contas, cabendo à esfera legislativa respectiva o julgamento propriamente dito.
Nesse período, o TCU vislumbrou irregularidades que atentaram contra a lei de responsabilidade fiscal (LRF) pela prática de pedaladas fiscais, que correspondiam a manobras contábeis para não pagar bancos públicos e privados que financiavam o programa social “Bolsa Família”. A operação do governo federal foi compreendida pelo órgão de controle como empréstimo financeiro por instituição que ele mesmo controlava, ferindo o que dispõe o artigo 36 da LRF e, portanto, as contas receberam parecer prévio desfavorável.
Os argumentos inovaram o entendimento jurisprudencial e foram utilizados na ação de impeachment. Nesse sentido, questionou-se o posicionamento do TCU e sua atuação teve muito impacto no ambiente democrático, que já estava dando indícios de sucumbência.
Em outro momento, o órgão de controle direcionou esforços no combate às fake news, exigindo do governo federal o destino consciente dos recursos públicos para publicidade do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Por fim, vê-se a tendência de uma postura preventiva dos órgãos de controle, atuando desde o início da cadeia da política pública, com o intuito de observar, especialmente, a legalidade e a eficiência dos atos, a compatibilidade do orçamento aplicado e os resultados e impactos alcançados, identificando o órgão na vanguarda das atividades de accountability, transparência e fiscalização.
Argumenta-se que a partir do momento em que se identificam previamente as métricas para justificar determinada decisão, o monitoramento e a avaliação auxiliam para tornar o projeto mais sólido, repercutindo, assim, em políticas públicas mais duradouras. Ademais, de nada adianta a existência do planejamento orçamentário se não há acompanhamento eficaz das atividades dos gestores públicos, não apenas com o intuito fiscalizatório, mas também pedagógico. A ação preventiva envida esforços para que se alcancem resultados mais robustos quanto ao equilíbrio das contas públicas.
Por meio do estudo desenvolvido, observa-se a tendência de ascensão do Poder Judiciário e dos Tribunais de Contas. O protagonismo judicial e de contas, ainda que receba críticas, não acontece por acaso. Vazios institucionais do modelo representativo contribuem para a instauração desse panorama. Quando os órgãos do Poder Legislativo e do Poder Executivo decidem estrategicamente pela inércia ou atuam aquém do esperado, os órgãos de controle sobre a Administração Pública reivindicam para si a legitimidade para decidir questões chave do cenário democrático.
Dessa forma, os vazios institucionais, que qualificam a crise democrática brasileira, permitem que sejam criadas oportunidades de protagonismo dos órgãos de controle. Espera-se o compromisso das instituições representativas em participar ativamente do processo de construção da decisão pública, com maior aproximação entre os atores políticos e sociais envolvidos, representantes e representados.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
BARROSO, Luís Roberto. O Controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
CASTRO, José Ricardo Parreira de. Ativismo de Contas: controle das políticas públicas pelos Tribunais de Contas. Rio de Janeiro: Jam Jurídica, 2015.
GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução: Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge: Harvard University Press, 2004.
LIJPHART, Arend. Patterns of Democracy. Yale University Press, 1999.
MAUS, Ingeborg. O Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã”. Trad. Martonio Lima e Paulo Albuquerque. Revista Novos Estudos CEBRAP, nº 58, nov. 2000.
O’DONNELL, Guillermo. Accountability Horizontal e novas poliarquias. Revista Lua Nova, São Paulo, n. 44, 1998.
PINZANI, Alessandro. Democracia versus tecnocracia: apatia e participação em sociedades complexas. Revista Lua Nova, São Paulo, n. 89, 2013.
SCHUMPETER, J. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984.
STARK, David; BRUSZT, Laszlo. Enabling constraints: fontes institucionais de Coerência nas políticas públicas no pós-socialismo. Revista Brasileira de Ciências Sociais. vol. 13, n. 36 São Paulo, Feb. 1998.
URBINATI, Nádia. O que torna a representação democrática? Revista Lua Nova, São Paulo, n. 67. 2006.
[1] Assessora Técnica de Gabinete do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE/SP). Doutoranda em Administração Pública e Governo pela FGV/EAESP. Mestre em Direito Constitucional e Política pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Email: mngomes@tce.sp.gov.br
[2] A missão da INTOSAI é apoiar os seus membros na contribuição eficaz para a accountability do setor público, promovendo a transparência pública e a boa governança, e fomentando a economia, a eficácia e a eficiência dos programas governamentais para o benefício de todos.
Fonte Imagética: Tribunal de Contas da União. Flickr oficial, 6 jan. 2017. Fotografia de Saulo Cruz. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/150778624@N04/31993268002/in/album-72157675095069293/>. Acesso em: 7 out. 2023.