Giovanna Olinda[1]
Terminologia em voga atualmente para se referir às pessoas que fazem da rua sua morada, a expressão “população em situação de rua” não surgiu do nada. Seu nascimento e sua maior utilização são acontecimentos recentes e sua aceitabilidade ainda está em debate. Há quem a negue, há quem a afirme e há quem jogue com ela. Para além dessas utilizações e disputas recentes, existe um precedente histórico-conceitual sobre essas figuras urbanas que se faz objeto primordial do estudo aqui resumido.
Ao partir de pontos nodais do presente, a pesquisa inserida no mestrado em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC (UFABC) buscou desenrolar os fios de conexão que ligam a figura social da “pop rua” aos seus antepassados “vadios”, “mendigos”, “inválidos” e “excluídos”. O objetivo não foi realizar a história dessa “população”, mas, sim, evidenciar as zonas institucionais cinzentas que envolvem esses sujeitos ao longo da história brasileira. O movimento foi indicar as nomenclaturas institucionais destinadas a esses grupos urbanos e ao mesmo tempo salientar o que estava em jogo com essas classificações no passado brasileiro até chegarmos ao cenário atual, em que essa terminologia se fortalece, para melhor perceber suas sutilezas e perigos. Assim, foi possível não apenas evidenciar as investidas institucionais que cada terminologia abarca, mas principalmente revelar os jogos de poder que recaem sobre toda a sociedade moderna através desses conceitos-chave.
Para realizar tal empreitada, as ferramentas utilizadas foram exclusivamente qualitativas, com enfoque naquelas que se ligam à genealogia e à etnografia. Ao unir esses dois mundos metodológicos, foi possível observar os acontecimentos históricos que envolvem a temática, à luz dos tensionamentos atuais vindos do trabalho em campo. As experiências vividas na realidade dialogam, desafiam e revelam nódulos históricos sobre essa temática. Não à toa, a fagulha inicial para os questionamentos principais dessa pesquisa surgiu quando um homem que vivia nas ruas questionou uma palestrante sobre os planos dela para o fim de tarde. A palestrante respondeu, sem hesitar, que iria tentar não perder o metrô para dar tempo de cumprir algumas tarefas domésticas. O homem, após a resposta, falou que, no seu caso, ele iria deitar na praça e olhar o céu. Essas e outras experiências serviram para indicar as muitas diferenciações cotidianas entre o universo da rua e o universo de quem não vive essa realidade, Apesar de conectados, cada cotidiano apresenta suas rotinas, horários, regras e formas de viver que lhe são muito próprias.
De início, a pergunta que rondou os primeiros passos da pesquisa foi: “Seria a rua, uma instituição a céu aberto?”. No decorrer da travessia, passando pelos canteiros teóricos, históricos e carregando as experiências vividas em campo, as aparentes respostas para tal pergunta se revelaram em condicionantes. Se a rua se configura como uma instituição, estamos todos encerrados nela. Socialmente nos situamos todos nessas margens institucionais, porém, as pessoas que vivem nas ruas se arranjam em uma configuração existencial distinta e singular, vivem em uma terceira margem das instituições. Nessas prisões, para os que têm um teto, o céu é ainda menos visível.
O desenvolvimento da pesquisa mostrou que os mundos aparentemente distantes fazem parte de um mesmo jogo complementar. Para cada nomenclatura dada às pessoas que desenvolvem suas vidas na rua, existe uma correspondente para as pessoas que desenvolvem suas vida dentro da “normalidade”. Na tentativa de salientar esses processos, a dissertação (que também foi publicada em formato de livro físico) se divide em três partes, cada uma trazendo um personagem dessas terceiras margens que nos guiam pelos muros invisíveis das instituições sociais.
Assujeitamentos: os dois lados de uma moeda
No princípio, a palavra mendigo trazia consigo elementos místicos da caridade, em que a pobreza ainda era envolta pela possibilidade desse pedinte ser o próprio Jesus encarnado testando a bondade de seus filhos terrestres. As modificações necessárias para o desenvolvimento da modernidade e do progresso – de uma sociedade construída nos solos da escravização de africanos e dizimação de povos originários – contribuíram para que essa mística se transformasse em necessidade de punição e institucionalização promovidas pelo Estado recém-criado. A pobreza perdeu sua mística e fomentou outros arranjos da percepção coletiva sobre o assunto, agora encarada nas chaves sentimentais coletivas do medo e da repulsa.
Os tipos sociais que desafiavam as lógicas estabelecidas foram colocados no polo negativo da ordem e do progresso, se configurando como ameaça para essa “evolução”. A mendicância foi criminalizada, e esses sujeitos, que carregam em si posturas desviantes da produtividade e utilidade, foram cada vez mais afastados dos meios sociais coletivos e inseridos nas lógicas punitivas de internações que se fortalecem na chamada “Era Clássica” como as Casas de Caridade, Casas de Correção e prisões. O “termo de bem-viver” sinalizou a tônica moral da questão, que, mais do que promover a intervenção institucional na vida dessas pessoas, legitimou e fortaleceu a construção imagética de uma sociedade inteira, quando as atitudes desejadas e moralmente aceitas se ligavam a produtividade, enquanto o mal-viver era visto nas práticas dos dissidentes que tinham o ócio como prática cotidiana. As terminologias estavam postas na mesa: para cada mal vivente apresentavam-se formas do cidadão de bem, ambos assujeitados em suas definições sociais.
Ao longo da história nacional, outro personagem de muito destaque foi a figura do vadio, que ganhou maior atenção institucional após 1930, quando o trabalho não apenas passou a ser exaltado, mas também se configurou como condição necessária para o exercício efetivo da cidadania. A mudança do “termo de bem-viver” para o “termo de tomar ocupação” indica os rumos institucionais para lidar com as desordens urbanas. O lado oposto da carteira de trabalho eram as práticas ligadas ao ócio, e foi preciso muita repressão à vadiagem, ao lado de muita propaganda de exaltação à ideia de trabalhador exemplar, para que o labor moderno fosse considerado o norte de uma vida ideal. Além da criminalização de práticas ancestrais, como a capoeira e atividades ligadas ao ócio (que desafiam a lógica do tempo produtivo), fomentou-se também -por meio de diferentes estratégias ligadas, principalmente, às ações políticas e culturais da chamada Era Vargas- a figura do ser “tipicamente brasileiro”. Sujeito idealmente branco que tinha o trabalho como signo de sua existência.[2] O malandro precisa de modificar para entrar nas rodas do trabalho e o vadio permanece em seu avesso, simbolizando, mais uma vez, o não-ser.
As modificações mais recentes dessas categorizações são fruto da Constituição de 1988, que tem como lema principal a universalização da cidadania. Em tese, tal aparato legislativo garantiria que brasileiros (naturais ou naturalizados) teriam direitos a usufruir de todos os benefícios de ser cidadão. O esforço com essa mudança significativa não mais se fez no sentido de criminalizar ou afastar aqueles que desviam das normalidades, mas de incluí-los. Assim, as ações estatais cresceram no sentido de abarcar cada vez mais aqueles que foram colocados às margens sociais ao longo da história nacional, buscando ativamente sua inserção na sociedade normalizada.
No livro em questão, mostra-se que novos aparatos surgiram para lidar com os sujeitos historicamente desviantes e que as efetivações desses mecanismos legais não são feitas por apenas uma via, existindo diferentes caminhos. Um deles são as políticas públicas de cunho universalistas – que apresentam condicionantes mínimas para que se usufrua dos benefícios, como o Sistema Único de Saúde. Outro caminho são os dos arranjos que apresentam maiores condicionalidades como por exemplo as políticas de albergamento que garante a vaga para os sujeitos que se insiram em requisitos estabelecidos pela gestão de cada espaço. Nessa lógica, para que se usufrua do suposto direito é preciso que o “cidadão” tope as regras. É preciso entrar no jogo, para conseguir as benesses dessa sociedade. Tais configurações não estão longe das lógicas de cidadania pelo viés do trabalho, elas não se apresentam mais com uniformes, mas agora, trajam roupagens de gala. A inclusão carrega novas facetas de velhos mecanismos.
Contribuições para debates contemporâneos
Imagens 1, 2 e 3: Fotografias feitas durante experiências no campo. São Paulo, 2019.
Imagem 1: Foto em preto e branco, feita pela autora durante experiências no campo. São Paulo, 2019
Não foi um movimento óbvio que a moradia se apresentasse em primeiro lugar para lidar com a questão de quem vive nas ruas. Essa proposta é recente e ainda está em disputa. Longe de dizer se ela é ou não efetiva para a “solução do problema”, o que se mostrou ao longo da pesquisa foi que essa lógica não é unanimemente aceita no universo das ruas, bem como percebemos que os programas de moradia primeiro salientam um processo de inclusão excludente. A premissa da efetivação de direitos constitucionais atrelado a ideia de uma casa convencional favorece também processos de rupturas, quebras de vínculos e desenraizamentos.
O pressuposto basilar desse dispositivo seria que, por meio da casa convencional, haveria maiores acessos e possibilidade de efetivação de outras políticas públicas, fomentando a inserção na sociedade daquele que vive às margens. Diferentemente da lógica universalista de política pública – que teria como premissa a existência de casas convencionais para quem as queira, sem necessidade de condicionantes – o alvo dos programas da “casa primeiro” se faz no fomento à retirada de uma pessoa de um certo modo de viver para incluí-la em outro que, muitas vezes, ela não se encaixa de antemão. Para além de todo debate sobre a efetivação concreta dos programas de Housing First[3]. É preciso, antes, indagarmos sobre o próprio movimento recente de inclusão. As políticas públicas aparecem com papel fundamental para a construção desses caminhos, e as lentes que se voltam para o presente podem embaçar as percepções. É preciso atenção redobrada para fazer o seguinte questionamento: o que fica excluído no processo de inclusão?
Imagem 2: Foto em preto e branco, feita pela autora durante experiências no campo. São Paulo, 2019
A rua é heterogênea e diversa em seus desejos, não se configurando na normalidade historicamente construída. Certamente existem desejos reais de ter uma casa socialmente entendida como tal, porém, na rua, também há os que afirmam já terem sua casa ou ainda os que negam as moradas convencionais e insistem na permanência em espaços abertos de passagem, mesmo com todas as problemáticas desses espaços. Enquanto continuarmos a negar que essas pessoas apresentam desejos válidos, nós não apenas estamos desvalidando sua existência, mas também estamos minando a capacidade inerente do ser humano de desejar possibilidades para além das construídas enquanto ideais. Ter emprego, apartamento com varanda gourmet, carro, celular de última geração e família nuclear são os sonhos de alguns, não de todos.
A atenção se volta mais uma vez para o que está em jogo nessas classificações. O que se liga à ideia de “situacionalidade” e quais são os ganhos sociais quando se incluem os desviantes? Ao fazer com que essas vidas entrem nos jogos de normalidade da sociedade ocidental, ganharíamos, de fato, cidadania e harmonia coletiva, como aspira o preâmbulo da Constituição? Ou perderíamos espaços vivos em que a recusa à normalidade é um grande indicativo do que há de errado nesse normal? Mais uma vez, o jogo está posto, indicando tanto o lado “positivo” quanto o “negativo” dessas relações de poder, que trazem agora toques sutis das instituições contemporâneas neoliberais, atuando não apenas pelo viés da repressão, mas sobretudo balizando sutilmente a condução dos desviantes para as margens normalizadas. Furando o barco, míngua-se a terceira margem.
Imagem 3: Foto em preto e branco, feita pela autora durante experiências no campo. São Paulo, 2019
Quão perigoso é sonhar outros sonhos e desejar outros desejos? Realizando essa travessia com as figuras típicas do universo das ruas, o estudo em questão apontou para as disputas que perpassam as terminologias que recaíram e recaem sobre essas pessoas para mostrar a constante necessidade de intervenção nesses espaços, uma vez que eles delineiam os moldes das vidas ideais. Dois polos complementares que contribuem para que a engrenagem econômica e social continue girando em seu curso artificialmente naturalizado. As inúmeras resistências a esses processos – que por parte dos interlocutores deste estudo se localizam principalmente na insistência de viverem conforme seus desejos e suas vontades – servem como espelho para que as pessoas “com teto” reflitam sobre seus próprios desejos.
O normativo, assim como os horizontes de expectativas,[4] é construído coletivamente. A rua mostra, pelas vias históricas, que os quereres divergentes são tão importantes que foram objetos de atenção repressiva durante séculos, pois abalam, mesmo que minusculamente, os ideais de uma sociedade inteira. Sociedade essa na qual a ordem e o progresso são mais importantes que a preservação da vida coletiva, o dinheiro é o maior balizador das relações sociais afetivas, se destroem as moradas naturais para construir mansões artificiais dentro de muros altos e muito bem vigiados, as ruas servem de passagem, não pontos de encontro. Ao encarar a rua por esse prisma, o livro buscou suscitar a percepção para esses espaços sociais que desafiam a lógica normalizada e indicam outras possibilidades de viver o real, abrindo espaço para debatermos a realidade presente e, também, outros desejos de futuro.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
BERNARDINO, Giovanna Olinda dos Santos. 2020. A terceira margem das instituições: uma genealogia da “população em situação de rua”. Dissertação de Mestrado em Ciência Humanas e Sociais. São Bernardo do Campo: UFABC. Disponível em: https://bit.ly/3KMOoxx.
OLINDA, Giovanna. 2022. A terceira margem das instituições: uma genealogia da população em situação de rua”. Campinas: Oficios Terrestres Edições, 2022.
Referência Imagética: Acervo da autora, gentilmente cedida para a divulgação no Boletim Lua Nova.
[1] Bacharel em Ciências e Humanidades; Bacharel em Políticas Públicas; Mestre em Ciências Humanas e Sociais e Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC. // Email: giovanna.olinda@aluno.ufabc.edu.br
[2] Ver Ynaê Lopes. dos Santos. O Racismo Brasileiro, uma história da formação do país. São Paulo, 2022.
[3] Ver Carvalho, A. P., & Furtado, J. P.. (2022). Fatores contextuais e implantação da intervenção Housing First: uma revisão da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, 27(1), 133–150.
[4] Ver Koselleck, Reinhart. Espaço de experiência e horizonte de expectativa: duas categorias históricas. In: Koselleck, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. pp. 305-328.