Silvia Brandão[2]
9 de abril de 2024
Este texto faz parte de uma série especial do Boletim Lua Nova sobre os 60 anos do Golpe Cívico-militar de 1964. Confira os demais textos da série aqui.
Em fevereiro de 2024 veio à público a minuta elaborada durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Ela foi encontrada no gabinete do ex-presidente, na sede do seu partido (Partido Liberal-PL), em Brasília. O conteúdo do documento apresenta indícios de que o então presidente da República e integrantes de seu governo, incluindo membros das Forças Armadas, arquitetaram um golpe de Estado no país. De acordo com matéria publicada pela Rede Brasil Atual (2024a), a minuta tinha por conteúdo a decretação de um estado de sítio, que seria acompanhado da imposição de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). O ex-presidente teve seu passaporte cassado, foi proibido de se comunicar com outros suspeitos e está sendo investigado pela Polícia Federal.
As acusações são graves, assim como os fatos associáveis ao modus operandi do que se convencionou denominar de bolsonarismo. Todavia, a arquitetura do golpe, assim como a chegada de Bolsonaro ao segundo turno das eleições presidenciais de 2022, sua eleição em 2018 e seu governo de fazer morrer a população que em tese deveria proteger, podem ser compreendidos também como parte dos desdobramentos do modelo de transição implementado pelo Estado ditatorial na década de 1970 (BRANDÃO, 2023).
A implementação do projeto de transição teve início durante o governo do presidente general Ernesto Geisel, quando então o Estado ditatorial criou medidas de controle da política como o Pacote de Abril de 1977, que possibilitou a eleição indireta de senadores biônicos e, por decorrência, os contornos da Lei de Anistia de 1979. Logo após sua institucionalização, como ato contínuo, presos políticos foram soltos das celas, militantes exilados e banidos retornaram ao país e ativistas perseguidos saíram da clandestinidade[3]. Todavia, os contornos institucionais de sua interpretação também produziram a impunidade dos agentes da ditadura que sequestraram, torturaram, mataram e desapareceram com inúmeros cidadãos brasileiros (DOSSIÊ, 2009; COMISSÃO, 2014).
Contudo, a autoanistia assim como a posterior vinculação democrática das polícias militares estaduais ao domínio das Forças Armadas via artigo 144 da Constituição Federal de 1988, como viríamos a descobrir, seriam apenas alguns dos efeitos do pacto do consenso acordado entre as Forças Armadas e as elites políticas conservadoras (TELES, 2015).
Vale destacar ainda que, em 1979, para que a impunidade conquistasse o apoio de parcelas da população, foi preciso justificá-la por meio da inverossímil associação entre os ditos crimes conexos e a teoria dos dois demônios. A teoria advoga que a violência produzida por agentes de uma suposta linha dura militar descontrolada equivale às ações da resistência armada. Assim, para seus adeptos não se trata de autoanistia, mas de uma anistia que beneficiou os dois lados radicais do conflito.
No contemporâneo, a associação entre impunidade e teoria dos dois demônios, articulada ao discurso da necessidade de reconciliação e pacificação nacionais, tem funcionado como um dos dispositivos de controle social e político acerca dos sentidos da violência de Estado tanto em contexto ditatorial como democrático.
Parte da população percebe a prisão ilegal, a tortura, o assassinato e o desaparecimento forçado como se não fossem crimes, se cometidos por agentes estatais. Essas pessoas consideram esses atos até mesmo justificáveis, se praticados para defender o sujeito beneficiário da vigilância e da proteção do Estado. Em síntese, na atualidade a impunidade atrelada ao medo social produz apoiadores dos apoiadores dos modos de operar da ditadura, como em geral ocorre com os eleitores de Jair Bolsonaro.
Contudo, os efeitos da autoanistia que agem no presente não decorrem apenas da interpretação de 1979, já que a impunidade dos agentes da ditadura e seus desdobramentos democráticos foram revalidados e fortalecidos em 2010 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando ao julgar a ADPF 153 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, movida pela Ordem dos Advogados do Brasil) acerca da recepção democrática da autoanistia, escolheu compactuar com a versão ditatorial. Na ocasião, apesar de ser óbvio a vigência da ditadura em 1979, o STF argumentou não possuir competência para desfazer decisões democráticas (ADPF 153, 2010).
A questão sugere: não à toa vivemos numa democracia que mata indígenas, negros e pobres, ao mesmo tempo em que militariza a vida cotidiana e desrespeita direitos duramente conquistados, enquanto nos programa para assistir a violência de Estado com baixa indignação ou mesmo para desejá-la e apoiá-la, se dirigida contra os tipificados como vândalos, bandidos ou qualquer categoria produzida como ameaça à nossa segurança de grupo. Igualmente somos compostos para acreditar viver numa sociedade voltada à defesa dos direitos da população, mas cujo modo operatório é do tipo autoritário.
Em outros termos, apesar das especificidades de cada governo, desde o final da ditadura o Estado democrático de direito, com maior ou menor intensidade, dependendo da situação, age articulado a dispositivos legitimadores de um estado de exceção permanente. No percurso, embora a impunidade dos algozes da ditadura aparentemente tenha se estruturado a partir de promessas de reconciliação e paz, o Estado democrático não deixa de operar também por meio de lógicas de guerra. O processo fabrica violências, imagens e narrativas que penetram nas subjetividades e nos faz acreditar que os ataques governamentais são excepcionais e necessários à preservação da vida da população honesta, trabalhadora, empreendedora e de bem.
Um modo de operar democrático que pode ser mais bem compreendido por meio da definição de estado de exceção de Giorgio Agamben (2004). Segundo o italiano, a excepcional suspensão da lei ocorre devido a uma situação urgente, que faz com que a norma em vigor deixe de ser aplicada para um caso específico, enquanto atos sem lei se tornam aplicáveis ao mesmo caso. Assim, o estado de exceção não é uma ditadura, mas um espaço vazio de direito que permite a exclusão de grupos que em tese deveriam ter seus direitos respeitados, porém, devido a uma necessidade emergencial e a ameaça que representam ao corpo social, tornam-se excluídos do direito a partir de uma medida autorizada pelo ordenamento jurídico.
Na democracia brasileira as possibilidades de exceção se ampliam, ao mesmo tempo em que se originam do projeto de transição controlada. Ainda que não nomeada como tal, a ideia de exceção entra na Constituição de 1988 por meio do artigo 142, que assegura às Forças Armadas, acima de qualquer um dos poderes, a defesa da pátria e a garantia da lei e da ordem. Desde então medidas de exceção têm sido fortalecidas por diferentes governos democráticos.
Sabe-se que durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), entre 1995 e 2002, as possibilidades de exceção foram atualizadas por meio da Lei Complementar 97, de 1999, que dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas e o Decreto 3.897, de 2001, que regulamenta as missões GLO. Depois, no mandato da presidenta Dilma Rousseff (2011-2016), ela sofreu nova modernização quando Celso Amorim ocupou o Ministério da Defesa e editou a Portaria Normativa 186/DM, de 31 de janeiro de 2014. A Portaria define as missões GLO como acontecimentos excepcionais, que só ocorrem quando há o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública. Em graves situações de perturbação da ordem e exclusivamente por determinação expressa da Presidência da República.
Posteriormente, em outubro de 2017 o presidente Michel Temer (2016-2018) sancionou o projeto de lei que alterou o Código Penal Militar e transferiu à Justiça Militar o julgamento de crimes dolosos contra a vida praticados contra civis por militares quando em atividade operacional, como são consideradas as missões GLO. Meses depois, em fevereiro de 2018, Temer autorizou a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro. Na época, o presidente afirmou que as medidas extremas eram necessárias para combater o crime organizado, já o ministro da Segurança Pública Raul Jungmann afirmou que a intervenção não implicaria em restrições de direitos e garantias, visto que a ordem jurídica permaneceria a mesma (BRANDÃO, 2023).
Pouco depois, durante a gestão federal de Jair Bolsonaro ocorreu a tentativa de ampliação do excludente de ilicitude, incentivada por meio do projeto de Lei 882/2019. Previsto no artigo 23 do Código Penal brasileiro, o mecanismo não considera crime quando agentes praticam condutas ilegais em caso de necessidade ou legítima defesa, desde que no cumprimento do dever. Contudo, o agente deverá responder por excesso doloso ou culposo. Na época, o ministro da Justiça Sérgio Moro, por meio do projeto de Lei, propôs que o juiz pudesse reduzir a pena ou não a aplicar quando o crime fosse decorrente de medo, surpresa ou violenta emoção. Na prática, tentou-se legalizar os assassinatos cometidos por policiais.
Em outras palavras, o projeto foi uma tentativa de adicionar à normalidade jurídica atos policiais passíveis de punição. A ação do ex-ministro não visou, no entanto, justificar a suspensão da lei para casos excepcionais, mas incluir a exceção na legislação ordinária. A ideia era fazer com que os crimes cometidos por policiais deixassem de ser abonados pela ótica do eventual e do necessário, para possivelmente serem aceitos como atos corriqueiros em casos de “medo”, “surpresa” ou “violenta emoção”. Ao final estaria aberto o caminho para que a saída autoritária-criminal deixasse de ser vista como tal, tornando-se assim “aceitável” como norma profissional.
As permanências, as atualizações e as multiplicações das normas legitimadoras da violência de Estado não deixam dúvidas sobre a relação de filiação entre o dispositivo impunidade inaugurado no período ditatorial e as medidas de exceção editadas por atos democráticos. De fato, para além da não punição dos responsáveis pelos crimes contra a humanidade praticados em ditadura, as novas exceções, as novas impunidades e as atuais tentativas de normalizar violações cometidas por agentes estatais, se espelham e se alimentam dos sentidos produzidos pela velha autoanistia: crimes de Estado não são crimes, são necessidades.
Num país onde atos de violência governamental, mesmo que com diferenças de intensidade, são constantemente praticados contra corpos destituídos da real proteção de direitos, como geralmente ocorre com os povos indígenas, com a população negra e com ativistas de direitos humanos; a questão que se coloca é também a responsabilidade do Supremo Tribunal Federal, que em 2010 foi capaz de “validar” a autoanistia, ao mesmo tempo em que mostrou-se incapaz de brecar os efeitos da tese do Marco Temporal[4].
A constatação sugere que em democracia as decisões e as indecisões do STF, não apenas atuam como um dos mecanismos propiciadores de velhas violências e impunidades, como compõem o acervo das peças produtoras de desejos e de escolhas políticas autoritárias, que por sua vez se desdobram em engrenagens de atuais genocídios como os recentes ataques contra o povo Yanomami do Brasil (HUTUKARA; ASSOCIAÇÃO, 2022), assim como em novos massacres como as operações realizadas por policiais militares da Bahia (REDE Brasil Atual, 2024b).
Diante do quadro, é urgente enfrentarmos que no Brasil houve uma grande ditadura, cujo um dos efeitos foi nos legar uma democracia do tipo autoritário. Do contrário, seguiremos sujeitos aos efeitos do projeto de transição controlada e seu pacto do consenso, assim como suas modernizações democráticas.
A questão é evidente, tanto que, em 2018, aceitando a violência de Estado como ato justificável, se usada contra perigosos bandidos, parcelas da população elegeram Jair Bolsonaro como Presidente da República. Durante o período que esteve no comando do Estado, sabendo representar um projeto político de país, contando para isso com o apoio de parcelas das Forças Armadas, do Judiciário, do Legislativo, da mídia, de empresários e da população, Bolsonaro sentiu-se à vontade para promover inúmeras mortes como, dentre tantos fatos, demonstram os óbitos produzidos no contexto do Covid 19 e o genocídio do povo Yanomami do Brasil. No entanto, até mesmo essas múltiplas violências falharam em impedir que o ex-presidente chegasse ao segundo turno das eleições presidenciais de 2022. Ao final, vencidas por Luís Inácio Lula da Silva.
Em 2023, Lula assume seu terceiro mandato como presidente do país. De imediato, para atender à demanda dos povos originários, criou o Ministério dos Povos Indígenas, sob o comando de Sônia Guajajara. Ele também escolheu, pela primeira vez na história do país, a ex-deputada federal Joênia Wapichana para presidir a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).
As medidas são importantes. Entretanto, se aprendemos algo acerca das implicações da relação autoanistia-democracia autoritária, intensificadas durante a gestão Temer, mais ainda no governo de Bolsonaro e apenas em parte minimizada durante o primeiro ano do terceiro mandato de Lula, isso passa pela compreensão da impossibilidade de vivermos numa democracia que opera em favor da impunidade dos criminosos estatais. De fato, se por um lado, não podemos atribuir a responsabilidade pelo atual autoritarismo unicamente aos efeitos da impunidade, por outro, tornou-se evidente que a decisão democrática de perpetuar a autoanistia tem atuado como parte dos mecanismos validadores da violência de Estado do presente, ao mesmo tempo em que opera como uma das engrenagens produtoras da conexão “nós” contra os “outros”, que ameaçam nossa segurança de grupo. Por decorrência, sob regime democrático, mecanismos de exceção como as missões GLO são acionados com apoio de parcelas da população, enquanto corpos minoritários como indígenas e negros são assassinados por ação e por omissão do Estado.
Enfim, a primazia da implementação de um projeto de país que recuse políticas de reconciliação sem investigação, processo e punição dos responsáveis por crimes de Estado, inclusive por tentativas de golpe, não pode ser novamente adiada. Se não rejeitarmos a impunidade como modelo de política governamental, seguiremos sujeitos ao seu controle e às suas operações de morte.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
ADPF 153. Lei de Anistia, voto de 28 de abril de 2010. Disponível em<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adpf153.pdf>. Acesso em: 15 set. 2018.
AGAMBEN, Giorgio (2004). Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo.
BOLSONARO é intimado pela PF para depor sobre tentativa de golpe. Rede Brasil Atual, 19 fev. 2024a. Disponível em: <Bolsonaro é intimado pela PF para depor sobre tentativa de golpe (redebrasilatual.com.br)>. Acesso em: 13 fev. 2024.
BRANDÃO, Silvia (2023). O projeto de transição brasileiro: operação democracia autoritária. Intellèctus (UERJ. ONLINE), v. 22, p. 91-114, 2023. Disponível em: < O projeto de transição brasileiro: operação democracia autoritária | Intellèctus (uerj.br)>. Acesso em: 23 fev. 2023.
COMISSÃO Nacional da Verdade (2014). Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Brasília, Casa Civil.
DENUNCIADA por violência no carnaval, polícia da Bahia é também suspeita de matar indígenas. Rede Brasil Atual, 14 fev. 2014b. Disponível em: <Violência: Polícia da Bahia é acusada de formar milícia (redebrasilatual.com.br)>. Acesso em: 27 fev. 2024.
DOSSIÊ Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985) (2009). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto de Estudos sobre a Violência do Estado.
HUTUKARA Associação Yanomami; ASSOCIAÇÃO Wanasseduume Ye’kwana (2022). Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na terra indígena yanomami e propostas para combatê-lo.Disponível em:< https://site-antigo.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/yanomami-sob-ataque>. Acesso em: 13 mar. 2023.
TELES, Edson (2015). Democracia e estado de exceção: transição e memória política no Brasil e África do Sul. São Paulo: Fap-Unifesp.
[1]O texto reproduz parte do artigo de minha autoria: O projeto de transição brasileiro: operação democracia autoritária, publicado em 2023 na Revista Intellèctus/UERJ.
[2]Doutora em Filosofia pela Unifesp. Desenvolve pesquisa de Pós-Doutorado vinculada ao PPGSSPS-Unifesp e colabora com Curso de Especialização Direitos Humanos e Lutas Sociais/CAAF-Unifesp.
[3]Vale frisar, os condenados por “crimes de sangue” permaneceram nos cárceres, tendo suas penas abrandadas somente devido à reformulação da Lei de Segurança Nacional de 1978, quando então adquiriram direito ao regime de liberdade condicional Os denominados “crimes de sangue” englobavam ações de resistência armada como assaltos, sequestros e atentados pessoais (DOSSIÊ Ditadura, 2009; ADPF 153, 2010).
[4]A tese surge no contexto da demarcação da Terra Raposa do Sol, Roraima (2009). Trata-se de uma teoria que ignora as violências operadas contra os originários desde a colonização, assim como apaga os crimes praticados pelo Estado ditatorial contra originários do país (COMISSÃO Nacional, 2014). De acordo com a tese, para terem direito à demarcação de seus territórios, os povos indígenas devem provar que lá viviam em 05 de outubro de 1988. Em 21 de setembro de 2023 o STF finalmente rejeitou a tese, porém a demora possibilitou que ela avançasse no Legislativo. Por decorrência, logo após a decisão do STF, em 27 de setembro o Marco Temporal foi aprovado pelo Congresso Nacional (Projeto de Lei 2.903/2023). Assim, a tese permanece envolta às disputas políticas, enquanto os povos indígenas seguem sujeitos à violência, à insegurança jurídica e ao bloqueio de seus direitos originários.