Lina Penati Ferreira[1]
Silvana Mariano[2]
02 de maio de 2024
Todo ser humano necessita de cuidado, embora o nível de dependência varie no decorrer da vida. Sabemos que bebês e crianças exigem atenção privilegiada, situação que tende a se repetir na velhice, embora as demandas sejam diferentes. Pessoas com deficiência também podem requisitar alguma atenção especial ao longo da vida. Mesmo em situações que fogem a esses exemplos, o cuidado com o outro é parte da produção do cotidiano: fazer comida, limpar a casa, contar uma história ou mesmo ceder tempo e atenção a alguém, todos esses são exemplos de cuidado. Entretanto, quando olhamos para a outra ponta da relação, não encontramos essa mesma universalidade. São as mulheres, em grande maioria, as responsáveis pelo trabalho de cuidado. Mais do que isso, quando falamos de Brasil, são mulheres negras e com idade entre 25 e 49 anos as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidado (IBGE, 2020). Nesse sentido, o cuidado se torna um tema produtivo para o desvelamento sociológico de desigualdades de gênero, raça, classe e geração.
Estudos feministas têm destacado a relevância que o cuidado representa na organização da vida social. Ainda que pouca atenção lhe tenha sido dada pelas teorias econômicas ou sociais, ele é um pilar importante da organização econômica, social e cultural das sociedades contemporâneas. O cuidado tem sido pensado como um conceito amplo, que engloba um conjunto de práticas e relações que buscam atender às variadas necessidades de si e dos outros, sejam elas materiais, afetivas ou de serviços, e que envolve atividades diretas e indiretas, materiais, técnicas e emocionais, vinculadas a uma postura ética e de justiça. Ou seja, além de atividades que requerem a interação presencial, como alimentar, dar banho e brincar, o cuidado tem um envolvimento indireto, como garantir um espaço limpo, organizado e seguro. É importante destacar que o cuidado contém, ainda, uma dimensão cognitiva e emocional, representada por preocupações, sentimentos e atenção com o bem-estar do outro.
No Brasil, desde a colonização, o trabalho exercido por mulheres negras é a solução de boa parte dos problemas derivados das demandas por cuidados. Mesmo após a escravidão, as mulheres negras e empobrecidas foram mantidas ou direcionadas para o trabalho doméstico e outras funções de cuidados, com jornadas exaustivas, salários baixos e desqualificação social. Além disso, reforçou-se um imaginário nacional que objetifica a mulher negra. Essas mulheres foram encarregadas de cuidar dos membros das famílias brancas ao mesmo tempo em que cuidavam de seus próprios familiares. Em um país de precária estrutura de serviços públicos para o cuidado, são elas que continuam sendo fonte de cuidado para toda sorte de necessidades.
É verdade também que, quando falamos de cuidado, classe é uma categoria fundamental. Enquanto as mulheres das camadas médias e altas podem delegar, via mercado, atividades domésticas e de cuidado para outras mulheres ou para serviços, como creche ou escola em tempo integral, as mulheres pobres contam com menor grau de liberdade para decidir como organizar as demandas de cuidado. Em 2017, por exemplo, a renda de famílias brasileiras em que as crianças permaneciam sob o cuidado de alguma responsável dentro do próprio domicílio era, em média, de R$ 550,00 per capita, em comparação a R$ 813,00 no caso de crianças que ficavam sob cuidados em outro domicílio, e R$ 972,00 em se tratando de crianças que frequentavam creches ou escolas (IBGE, 2017).
Em uma pesquisa de caráter qualitativo que realizamos em 2018, tivemos a oportunidade de entrevistar 97 mulheres que eram beneficiárias do Programa Bolsa Família e viviam em grandes centros urbanos no Brasil[3]. Embora não fosse um critério amostral da pesquisa, 80% das entrevistadas se identificaram como pretas ou pardas, o que revela na prática as intersecções entre classe e raça no país. Na entrevista, tratávamos de assuntos variados sobre a experiência de vida dessas mulheres, e o cuidado era sempre abordado por elas como um tema central[4]. Nas narrativas das participantes da pesquisa, o cuidado era fortemente associado a percepções de trabalho extra, cansaço, injustiça e explicitamente relacionado a gênero e aos papéis sociais na família, como ser mãe. Entretanto, o cuidado estava também vinculado a um reconhecimento positivo da sua importância no seio familiar. Essas impressões se repetiam mesmo entre mulheres que residiam com companheiros, ou seja, a existência de um homem adulto na casa altera pouco a intensidade do trabalho de cuidado, isso quando não aumenta. Essa informação também é constatada em pesquisas de cunho quantitativo (Picanço; Araújo; Covre-Sussai, 2021).
Na experiência das entrevistadas, o cansaço atribuído ao cuidado é fonte de desgaste emocional. Parte das pesquisas sobre cuidados tem ressignificado o entendimento sobre o uso do tempo para incluir não somente um sentido cronológico, mas também sua dimensão simbólica e emocional (Mariano, 2020). As mulheres que ouvimos na pesquisa falaram desse tipo de encargo, pois é um tempo que as ocupa mentalmente com variadas preocupações, como a provisão de alimentos e roupas e a segurança dos seus familiares. Algumas, inclusive, relataram sintomas de estresse e depressão. Todo esse sofrimento emocional frequentemente aparecia associado com as responsabilidades da maternidade e dos cuidados em geral.
A pesquisa nos permitiu, ainda, observar o modo como essas mulheres lidam e enfrentam esse contexto fortemente marcado pelas desigualdades relacionadas às demandas de cuidado. Para isso, filiadas a uma tradição sociológica morfogenética (Archer, 2011), recorremos ao conceito de estratégias, entendido aqui como práticas sociais, mais ou menos conscientes, e com certa variação, a depender de trajetórias familiares e individuais, inseridas em contextos sociais, econômicos e culturais que exercem influência na sua conformação. A partir disso, passamos a trabalhar com a ideia de estratégias de cuidado, para analisar as práticas interacionais mobilizadas predominantemente por mulheres com vistas ao bem-estar da família.
Ao analisar as narrativas das entrevistadas, pudemos identificar práticas estrategicamente mobilizadas nas demandas de cuidado e fortemente circunscritas por uma determinada estrutura de oportunidades e padrões culturais definidos por gênero, raça, classe e ciclo de vida familiar. Vínculos familiares, relações comunitárias e recursos estatais se destacaram como as estratégias mais recorrentes em um cenário composto por diversos constrangimentos, como a divisão sexual do trabalho, a escassez de serviços públicos na socialização do cuidado de crianças, a construção social da solidão da mulher negra e a baixa participação masculina nas responsabilidades de cuidado.
Ciclos de vida se mostram como uma categoria central para entendermos a variação entre as estratégias. Por ciclo de vida entendemos tipos de mudanças que acontecem ao longo do tempo na vida das pessoas e que estariam condicionadas por transições familiares, como saída da casa de origem, nascimento de filhos, aposentadoria e morte. Com esse conceito, queremos explicar as diferentes condições das mulheres em decorrência de eventos significativos, como casamento, parto, idade dos filhos e separações conjugais, sem, com isso, pressupor um padrão social de etapas e sequência entre essas experiências. Nesses termos, tomamos a família como um espaço caracterizado por laços de cooperação e de tensão que se estabelecem entre os indivíduos que compartilham ou não o mesmo domicílio. Nesse espaço, gênero e geração se tornam categorias fundantes das desigualdades e hierarquias que sustentam as relações intrafamiliares.
Considerar essas desigualdades é fundamental, dado que o uso dos laços familiares figura entre as primeiras opções que os indivíduos acionam para lidar com as necessidades cotidianas, estratégia ainda mais comum quando se trata de mulheres em situação de vulnerabilidade e pobreza. Contar com a ajuda de mães e irmãs no cuidado com as crianças, com a alimentação e mesmo com o dinheiro do orçamento familiar foi uma das práticas descritas pelas entrevistadas da nossa pesquisa. Essa ajuda, por vezes, era narrada com sentimentos de sofrimento e insatisfação, pelo fato de nem sempre poderem cuidar dos filhos da maneira que desejavam, o que corrobora o argumento do feminismo negro, que chama atenção para a histórica demanda das mulheres negras em poder cuidar de seus filhos. Perceber os paradoxos e as ambiguidades do cuidado abre a nossa visão para experiências nas quais as mulheres encontram satisfação afetiva e emocional nas interações vividas no cuidado, como transparece nos relatos daquelas que gostariam de dispor de mais tempo com os filhos.
A impossibilidade objetiva de poder cuidar de seus próprios filhos gera histórias que se repetem de geração em geração. Isso é, mulheres que falaram sobre a necessidade de contar com o apoio das mães e irmãs já tinham sido fonte de recurso de cuidado para outras mulheres da família. Essas inversões no papel de cuidada/cuidadora vão se alternando ao longo do ciclo de vida dessas mulheres. Na presença de filhos ou filhas adultas e adolescentes, o vetor de ajuda também tende a se modificar, e essas mulheres passam a contar com a ajuda delas(es) em diferentes ordens (financeira, nas atividades domésticas, no cuidado de crianças). Desse modo, o que observamos é que a estratégia de apoio familiar para as demandas de cuidado se sustenta em três frentes: i) a demanda de apoio para outras mulheres da família; ii) a oferta de cuidado, especialmente por mulheres sem filhos; e iii) o apoio intergeracional, no caso de filhos adultos.
Percebemos ainda que as ajudas familiares não estão circunscritas ao auxílio dos parentes consanguíneos. Ao contrário, o cuidado pode ser um fator importante na construção de laços de parentesco. Nesse sentido, um personagem fundamental são as sogras ou ex-sogras. Esse vínculo é fortalecido pela presença de crianças e, em muitas situações, preenchem a ausência da responsabilidade paterna. A condição similar de gênero, classe e raça entre essas mulheres parece ser um importante vetor de solidariedade. Nessas situações, o ciclo de vida também é um fator importante. Mulheres com crianças pequenas são demandantes do cuidado das avós das crianças. Além da ajuda com alimentação, roupas, fraldas, pagamento de contas e supervisão das crianças, o auxílio oferecido pelas (ex)sogras também é representativo em questões ligadas à moradia, seja com a ajuda no pagamento do aluguel, seja com o cedimento de imóveis.
As mulheres também falaram de circuitos de reciprocidade e solidariedade com laços de vizinhança e das igrejas. A relação entre vizinhas figurava como ajuda com o cuidado de forma direta e indireta, como com a alimentação, a proteção e os cuidados em geral. Esses relatos foram mais frequentes entre mulheres mais velhas, com uma quantidade maior de filhos e desempregadas. Em outras situações, de menor ocorrência, ouvimos relatos de mulheres que contaram com o apoio material e simbólico de amigas da igreja ou de grupos religiosos. Constatamos, assim, que o apoio comunitário fortalece a rede de proteção e sustenta vínculos de sociabilidade e de solidariedade para além da família. Nessas redes, mantém-se um padrão de gênero como elo vinculador.
Identificamos ainda que os recursos estatais, embora escassos, somam-se às estratégias cotidianas de cuidado implementadas por essas mulheres. Segundo as participantes da pesquisa, o uso do dinheiro do Bolsa Família era prioritariamente gasto com os filhos, desde alimentação, roupas e sapatos, materiais escolares até o pagamento de serviços de educação e saúde realizados na rede particular, como creches, escolas e exames médicos. Esses relatos foram narrados por mulheres com crianças pequenas. Assim, embora o Bolsa Família não seja uma política de cuidado, na prática se aproxima desse objetivo, sem, com isso, assumir uma perspectiva que empodere a autonomia das mulheres, funcionando como um mecanismo de reprodução das desigualdades de gênero.
É importante frisar que as creches, nesse sentido, também são um importante recurso nas estratégias de cuidado. Algumas das participantes relataram suas experiências com as creches gratuitas, relacionando especialmente o acesso ao serviço com a possibilidade de exercer trabalho remunerado. Por outro lado, algumas delas relataram certa desconfiança com a qualidade do serviço. Contudo, a maioria dos relatos destacava a falta de oferta de creches e, em certas situações, a necessidade ou a preferência pela contratação de uma cuidadora “de confiança”. Embora se mostre uma ferramenta essencial para essas mulheres, a quantidade e a forma de funcionamento das creches são insuficientes para a demanda atual.
Em suma, nossa pesquisa constatou que as narrativas das participantes trazem elementos importantes para uma compreensão mais apurada do cotidiano das mulheres pobres no Brasil, e o cuidado se mostrou central na experiência delas. Por um lado, as percepções do cuidado como trabalho extra, cansaço e injustiça, associadas aos papéis de gênero na família, revelam dimensões cognitivas e emocionais que configuram as relações de cuidado desde a perspectiva dessas mulheres. Por outro lado, os relatos sobre as dificuldades e os obstáculos para cuidar dos próprios filhos e a solidão feminina, marcados por sentimentos de sofrimentos e insatisfação, revelam as marcas da raça e da cor na experiência dessas mulheres.
Por sua vez, os relatos sobre as redes de apoio familiares e comunitárias, baseadas na confiança e na solidariedade entre mulheres que compartilham a mesma condição de raça e classe, bem como o uso estratégico do pouco recurso estatal acessado por essas mulheres, ilustram a força da agência em um cenário de escassez. Em todas as circunstâncias, aspectos do ciclo de vida, especialmente, experiências de trabalho remunerado, casamentos, divórcios e idade dos filhos mostram-se como elementos fundamentais para compreender a variação com que as estratégias são acionadas. Os resultados mais detalhados da pesquisa podem ser conferidos no artigo completo.
Com isso, concluímos que as responsabilidades com os afazeres domésticos e com os cuidados, bem como a carga emocional e cognitiva dessas tarefas, principalmente com as crianças, constitui uma dimensão importante para compreender as experiências de pobreza que essas mulheres vivenciam. Nesse sentido, a economia feminista tem sugerido incorporar a dimensão temporal nas definições de pobreza. O tempo gasto com o trabalho de cuidado é um fator relevante para explicar as dificuldades de saída da pobreza entre as participantes desta pesquisa. Políticas estatais de socialização do cuidado são ferramentas cruciais para evitar a reprodução das desigualdades sociais e da pobreza. Entendemos, assim, que as pesquisas sobre pobreza urbana que consideram a dimensão do cuidado podem revelar outras faces do cotidiano das pessoas que vivem essa realidade e ampliar as possibilidades das políticas de enfrentamento à pobreza.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
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IBGE. Aspectos dos cuidados das crianças de menos de 4 anos de idade: 2015. Rio de Janeiro: IBGE, 2017.
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MARIANO, S. Conditional cash transfers, empowerment and female autonomy: care and paid work in the Bolsa Família programme, Brazil. International Journal of Sociology and Social Policy, n. 40, v. 11/12, p. 1491-507, 2020. https://doi.org/10.1108/IJSSP-03-2020-0093
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PICANÇO, F.; ARAÚJO, C.; COVRE-SUSSAI, M. Papéis de gênero e divisão das tarefas domésticas segundo gênero e cor no Brasil: outros olhares sobre as desigualdades. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 38, p. 1-31, 2021. http://dx.doi.org/10.20947/S0102-3098a0177
[1] Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). Mestra em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Está vinculada à Rede Cuidados, Direitos e Desigualdades do (CuiDDe). Seus interesses estão relacionados aà temas como vida econômica, cuidado, pobreza, desigualdades sociais e feminismos. E-mail: linapenati@gmail.com
[2] Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Tem interesse em temas como gênero e desenvolvimento, feminismo, direitos das mulheres e, desenvolvimento humano sustentável. E-mail: silvanamariano@yahoo.com.br
[3] Para saber mais sobre a metodologia e o desenho de pesquisa ver: MARIANO, Silvana; FERREIRA, Lina Penati; SOUZA, Márcio Ferreira. Metodologia e ética feministas em pesquisa social com mulheres em situação de pobreza. Revista Pesquisa Qualitativa, v. 10, n. 24, p. 192-212, 2022. https://doi.org/10.33361/RPQ.2022.v.10.n.24.500
[4] A análise completa está disponível em: FERREIRA, Lina Penati; MARIANO, Silvana. Estratégias de cuidado e ciclos de vida familiar: as experiências de mulheres em situação de pobreza. Ciências Sociais Unisinos, v. 59, n. 2, p. 84-96, 2023. https://doi.org/10.4013/csu.2023.59.2.07
Fonte imagética: Gênero e número. No Brasil, 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza, 12 dez. 2019. Fotografia de Lola Ferreira. Disponível em: https://www.generonumero.media/reportagens/casas-mulheres-negras-pobreza/