Lorena Esteves[1]
Danila Cal[2]
16 de maio de 2024
Este texto apresenta parte de um artigo recentemente publicado na Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación, [S. l.], v. 22, n. 42, 2023. DOI: 10.55738/alaic.v22i42.994.
As narrativas que circulam sobre indígenas, em geral, reforçam estereótipos, generalizam e silenciam as singularidades dessas sociedades (Neves; Corrêa; Tocantins, 2013). Também recaem sobre os/as indígenas o imaginário de “bons selvagens, ingênuos, incapazes de se cuidar”. Mais especificamente, em relação à mulher indígena, Ivânia Neves e Arcângela Sena (2020) evidenciam que os discursos que circulam reforçam o imaginário colonial da sensualidade, o estereótipo de que elas são desavergonhadas, despudoradas e que precisam de alguma forma ser contidas. Apesar da resistência dessas mulheres a uma identidade generalizante, os discursos, construídos historicamente, dão conta de um imaginário colonial que revela “uma mulher nua, selvagem, sensual, com atribuições que muitas vezes ultrapassam a condição humana” (Tocantins; Neves, 2016, p. 66).
As dinâmicas de poder existentes na sociedade são reproduzidas também nas mídias hegemônicas, inclusive em ambientes e plataformas digitais, perpetuando estereótipos de raça e de gênero e desafiando um imaginário ingênuo de que a internet seria um ambiente de “transcendência” de opressões. Com relação aos povos e mulheres indígenas, Neves e Sena (2020) afirmam que facilmente encontramos, no âmbito das mídias digitais, “enunciadores que continuam reafirmando discursos de discriminação, defendendo inclusive que eles devem morrer” (Neves; Sena, 2020, p. 2). O que é novo, segundo as mesmas autoras, é que, frente a esse apagamento, outros/as enunciadores/as mobilizam discursos que defendem os povos indígenas. Esse movimento de contranarrativa é fortalecido pelo crescimento dos movimentos sociais em rede, especialmente indígenas e indigenistas, o que aumentou a visibilidade sobre as demandas dos povos indígenas.
Esses movimentos buscam dar visibilidade ao racismo ambiental e às injustiças sociais e interseccionais, na esteira, de acordo com Maristela Svampa (2020, p. 161), de diversas redes de justiça socioambiental que se desenvolvem hoje na América Latina. Essa construção de uma nova gramática de sentidos, a formação de redes de base, articulação por meio de redes sociais digitais, e a busca pela autonomia discursiva e disputa de narrativa por meio da autocomunicação é uma postura declaradamente decolonial.
Como horizonte teórico, entendemos a decolonialidade como luta e resistência de grupos e indivíduos subalternizados contra a dominação, visando à criação de outras formas de ser, poder e estar no mundo (Walsh, 2005). Para Torrico (2022, p. 117), a decolonialidade é “um horizonte de esperança” para restaurar a humanidade perdida em razão da colonialidade persistente.
Tsitsina, do povo Xavante, denuncia o processo de desumanização e invisibilização das pessoas indígenas provocado pela invasão colonial e reiterado historicamente por sistemas de opressão. “A colonização, desde quando chegou no Brasil, ela sempre tenta fazer um processo de apagamento cultural, um apagamento da nossa identidade e eu vou trazer essa fala enquanto mulher e indígena, trazendo também essa questão da ancestralidade e da nossa história” (Tsitsina Xavante, ATL, 2020). Essa fala ocorreu durante a edição histórica do Acampamento Terra Livre (ATL) 2020, uma agenda importante do movimento indígena no Brasil, que, pela primeira vez, foi realizado de modo inteiramente digital, no Youtube, em razão do isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19.
Casos de apagamento cultural, apagamento dos corpos, tentativas de calar ou invisibilizar as vozes dos povos e mulheres indígenas persistem diariamente na cobertura jornalística, em postagens nas mídias digitais, no entretenimento, em casos de assassinato e feminicídio, e também por instituições do Estado. Além de uma dimensão simbólica, esse apagamento possui repercussões sociais e políticas. Tsitsina Xavante denunciou, por exemplo, que, no auge do período pandêmico, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) não notificou casos de indígenas que viviam em contexto urbano e foram contaminados pela Covid-19, gerando subnotificação. “A não notificação da SESAI em relação aos casos de Covid dos indígenas que estão no contexto urbano é uma negação da nossa identidade, enquanto povos indígenas, é uma negação, seja homem, mulher, criança e ancião” (Tsitsina Xavante, ATL, 2020).
Outra forma de apagamento cultural é o da língua, colonialidade introduzida no contato com o colonizador. Esta foi institucionalizada com as missões jesuíticas que, com o objetivo de catequizar e civilizar os povos indígenas, os batizava com nomes cristãos e fazia com que eles aprendessem a língua do colonizador. Em resposta a esse processo de apagamento, algumas mulheres indígenas externalizaram no ATL 2020 sobre a responsabilidade de ocuparem espaços, expandirem suas vozes e tornarem visíveis suas lutas. “É também a nossa responsabilidade, enquanto mulheres indígenas, que estão nesse espaço de tomada de decisão tornar visíveis as realidades e essa diversidade nossa” (Tsitsina Xavante, ATL, 2020).
De acordo com María Lugones (2014), o processo de resistência pressupõe tensionamento, uma subjetividade ativa que nega a imposição de uma forma de ser, ver e ser visto/a e estar no mundo definida externamente. Nesse sentido, as manifestações de mulheres indígenas tanto no espaço ampliado de visibilidade do ATL 2020, quanto nas mídias sociais de forma geral, demonstram um papel ativo no questionamento dessas colonialidades persistentes.
Hoje, a gente se vê obrigada a adentrar nesses outros espaços para poder trazer essa voz que há muitos anos, séculos seguidos, vem sendo invisibilizada, mas ao mesmo tempo visibilizada por nós que trazemos esse legado dessas mulheres que nos antecederam, tanto que estamos aqui, falando dos nossos direitos, ocupando nossos espaços de direito, se apropriando das ferramentas de defesa dos nossos direitos (Nyg Kaingang, ATL, 2020).
Essa manifestação reforça a reiteração do apagamento imposto desde a colonização que permanece atravessando as relações entre indígenas e não indígenas, internalizadas e reificadas por pessoas e instituições sociais. É como diz Jaqueline Xucuru, “a colonização não acabou, ela acontece a todo instante, a sociedade brasileira o todo tempo tenta retirar os nossos direitos e nos colonizar” (Jaqueline Xucuru, ATL, 2020). O apagamento é uma outra forma de matar os povos indígenas, matar sua cultura, seu território, matar o direito de ser e viver de acordo com seus modos é também os ferir mortalmente. “A gente não deixou de ser morto pela bala e ao mesmo tempo eles encontraram outros mecanismos de nos matar” (Jaqueline Xucuru, ATL, 2020).
Quando os/as indígenas são reduzidos/as a um imaginário cristalizado, ou seja, são estereotipados/as, acabam sofrendo também o processo de apagamento, de essencialização de sua diversidade étnica, cultural, histórica, política, organizacional. Afinal, são mais de 305 povos falantes de mais de 274 línguas (APIB, 2021) apenas no Brasil que acabam sendo reduzidos ao imaginário do “índio” criado pelo colonizador. “A invisibilização que os povos indígenas sofriam e a estereotipação, né, de estabelecer o padrão do que é indígena, isso nos inquietava muito por a gente não atender aquela expectativa” (Jaqueline Xucuru, ATL, 2020). Segundo Freire Filho (2004), os estereótipos são práticas significantes e possuem, portanto, uma dimensão ativa que agrega juízos e ideias evidentes ou implícitas sobre pessoas e/ou grupos.
Quando a gente para observar a questão de estereótipo que cobra, que exige, que nós povos indígenas sejamos uniformes nesse desenho universal: cabelo liso, pintada, caçando, pescando, na mata. Cuja mata nós não temos mais porque a Amazônia está sendo devastada a cada dia, é incinerada, é mineração, é grilagem, é o diabo a quatro, e outros biomas que também estão sendo destruídos, Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga (Cristiane Pankararu, ATL, 2020).
Na tentativa de enfrentar essas marcas de opressão e estereótipos presentes nas instituições sociais e na sociedade em geral, as mulheres indígenas buscam, por meio da relativa autonomia possibilitada pelas mídias digitais, produzir outros sentidos sobre o ser mulher indígena, tanto por meio do ATL virtual quanto por perfis pessoais de mulheres indígenas em mídias como Instagram e Facebook. Segundo Tocantins e Neves (2016), as pinturas corporais marcam a representação do corpo indígena na internet (jenipapo e urucum) como marca da identidade cultural, desafiando estereótipos cristalizados no imaginário coletivo. Normalmente, as mulheres indígenas, quando postam na internet, estão inscritas em outros acontecimentos, sem reforçar a nudez ou a concepção colonial de selvagem. “Essa nova forma de circulação atualiza os discursos sobre a identidade indígena” (Tocantins, Neves, 2016, p. 161).
Elas reverberam discursos de empoderamento, de estímulo à reivindicação de uma identidade indígena em todos os espaços sociais como estratégia política, pedindo para que os/as parentes não tenham vergonha de se declarar indígenas em qualquer lugar que estejam. As resistências ocorrem a partir da contestação e da necessidade de protagonizar as narrativas, de visibilizar, de externalizar outros saberes, cosmovisões, outras gramáticas, alternativas e próprias. Essas formas de resistência fazem frente à homogeneização e invisibilização a que foram (são) historicamente submetidos os povos indígenas.
Na perspectiva de uma comunicação decolonial, elas questionam o histórico de apagamento das mulheres, de modo específico, e dos povos indígenas, de forma mais ampla, num processo de resistência contra a própria incomunicação atribuída a esses sujeites. Essa luta perpassa pela descolonização de mentes, corpos e instituições, de modo que os povos originários passem a ser reconhecidos como sujeitos e sujeitas de direitos que tenham seus valores, culturas, cosmovisões e constituições respeitados e garantidos.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
APIB, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Carta dos Povos Indígenas do Brasil: Levante Pela Terra. 14 jun. 2021a. Disponível em: https://apiboficial.org/2021/06/14/cartados-povos-indigenas-do-brasil-levante-pela-terra/. Acesso em: 05 nov. 2021.
FREIRE FILHO, João. Mídia, estereótipo e representação das minorias. Revista Eco-Pós, v. 7, n. 2, p. 45-71, 2004.
KAINGANG, Nyg, Acampamento Terra Livre, 2020. Disponível em: https://youtube.com/playlist?list=PLmsK4TGRR2BHel-P5dcMy9A6sG7YoVdho&si=Y_a5w9yFuFMDiSaU
LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos feministas, v. 22, n. 3, p. 935-952, 2014.
NEVES, Ivânia; CORRÊA, Maurício; TOCANTINS, Raimundo. A invenção do índio na mídia: silenciamentos, estereótipos e pluralidades. MOARA–Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras, v. 2, n. 40, p. 05-21, 2013.
NEVES, Ivânia; SENA, Arcângela. Telejornalismo local na Amazônia brasileira: os Tembé Tenetehara e a TV Liberal. Organon, v. 35, n. 70, p. 1-20, 2020.
PANKARARU, Cristiane, Acampamento Terra Livre, 2020. Disponível em: https://youtube.com/playlist?list=PLmsK4TGRR2BHel-P5dcMy9A6sG7YoVdho&si=Y_a5w9yFuFMDiSaU
SVAMPA, Maristella. Extrativismo neodesenvolvimentista e movimentos sociais: um giro ecoterritorial rumo a novas alternativas? In: DILGER, Gerhard; LANG, Miriam; PEREIRA FILHO, Jorge (Orgs). Descolonizar o imaginário: debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento. Tradução: Igor Ojeda. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2016, p. 140-401.
TOCANTINS, Raimundo; NEVES, Ivânia. Discursos e identidades indígenas em circulação na web. REDISCO, Vitória da Conquista, v. 10, n. 2, p. 155-167, 2016.
TORRICO, Erick. Comunicación (re)humanizadora: Ruta decolonial. Quito, Ecuador: Ediciones Ciespal, 2022.
WALSH, Catherine. (Re)pensamiento critico y (de) colonialidade. In: WALSH, Catherine (org). Pensamiento crítico y matriz (de) colonial. Quito:Editorial Abya Yala, 2005, p. 13-36.
XAVANTE, Tsitsina, Acampamento Terra Livre, 2020. Disponível em: https://youtube.com/playlist?list=PLmsK4TGRR2BHel-P5dcMy9A6sG7YoVdho&si=Y_a5w9yFuFMDiSaU XUCURU, Jaqueline, Acampamento Terra Livre, 2020. Disponível em: https://youtube.com/playlist?list=PLmsK4TGRR2BHel-P5dcMy9A6sG7YoVdho&si=Y_a5w9yFuFMDiSaU
[1] Pós-Doutoranda e Doutora em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará (PPGCOM/UFPA); Conquistou o Prêmio Intercom de Teses e também o Prêmio Capes de Teses na área da Comunicação e Informação (2023). Bolsista Capes. E-mail: lesteves@ufpa.br.
[2] Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS), da Fiocruz. Bolsista Capes. E-mail: danilacalufpa@gmail.com.
Fonte imagética: Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Indígenas realizam edição histórica do Acampamento Terra Livre. 30 abril 2020. Fotografia de ATL, 2020. Disponível em: <https://cimi.org.br/2020/04/indigenas-realizam-edicao-historica-do-acampamento-terra-livre>. Acesso em: 8 mar. 2024.