Kleiton Wagner Alves da Silva Nogueira[1]
Ronaldo Laurentino de Sales Júnior[2]
20 de maio de 2024
De que forma podemos pensar o neoliberalismo para além do senso comum que o vincula ao economicismo ou a uma ideia de diminuição do tamanho do Estado na promoção de políticas sociais?[3] Numa aproximação inicial podemos de fato encontrar elementos da economia como centrais. Contudo, reduzir o neoliberalismo apenas a esta instância seria perder de vista a totalidade e a complexidade especificamente sociais do neoliberalismo: mesmo que num nível aparente promova austericídio e penalize a vida das classes trabalhadoras e grupos subalternos, como essa doutrina consegue manter a hegemonia diante dos seus efeitos sobre os grupos subalternos?
Foi no rastro dessa reflexão que buscamos, mediante uma leitura sociológica, empreender uma aproximação inicial entre os pensamentos de Antonio Gramsci (1891–1937) e Michael Foucault (1926–1984) no artigo Governamentalidade e consenso na construção da hegemonia neoliberal: aproximações teóricas. Publicado na revista Contemporânea (UFSCar), nele reiteramos que se trata de um esforço inicial de pensarmos, mediante uma reflexão teórica, o neoliberalismo como uma forma de governamentalidade hegemônica.
Neste sentido, além da introdução e das considerações finais, o artigo apresenta um total de quatro partes. Na primeira, argumentamos que a hegemonia neoliberal, pelo menos desde a década de 1970, está associada ao estabelecimento de um regime de governamentalidade. Ao nos reportarmos a Antonio Gramsci, entendemos que a hegemonia envolve a instituição e o exercício de uma direção econômica, intelectual e moral que se evidencia entre as distintas classes e frações de classe na sociedade civil.
O elemento ideológico atua, aqui, como um cimento que conecta os distintos interesses de classe que, no caso do neoliberalismo, implicaria a fundamentação de uma visão de mundo calcada na supremacia da individualidade, egoísmo e competitividade centrada no mercado e disseminada por Aparelhos Privados de Hegemonia (APHs) que atuam na sociedade civil. Isso implica que, numa perspectiva gramsciana, não podemos desconsiderar a produção intelectual de ideias que, objetivamente, se vinculam a interesses de classes e posições assumidas na sociedade civil, mas que sedimentam uma conexão com a sociedade política, considerada o espaço de deliberação política institucionalizada mediante leis, decretos, sistemas de justiça, e sobretudo, pelo exercício da coerção pela força repressiva do Estado Integral.
Se a hegemonia se estabelece mediante o consenso, mas também pelo uso da coerção, tais dínamos não poderiam se materializar sem o exercício do poder que, no caso específico do neoliberalismo, atua sobre a corporalidade e subjetividade dos sujeitos. Este exercício se estenderia, assim, por uma rede de relações de força penetrantes e inter-relacionais, o que também abre margem para pensarmos em resistência e formulação de uma contra-hegemonia no campo da sociedade civil pelos subalternos. Mas, ao pensarmos em termos de relação de poder no neoliberalismo e na manutenção de sua hegemonia, esta se daria também pela governamentalidade, que significa um conjunto de técnicas de saber, controle, vigilância e intervenção governamental sobre populações, para além da dominação centralizada do Estado.
Na segunda parte de nosso artigo, a partir daquela aproximação entre os conceitos de hegemonia e governamentalidade, tecemos considerações sobre as continuidades e rupturas do liberalismo em relação ao neoliberalismo. Buscamos, assim, compreender que há continuidades mas também reformulações entre esses dois constructos. No caso do liberalismo, revisitamos um itinerário reflexivo mediante intelectuais orgânicos como John Locke (1632–1704) e Adam Smith (1723–1790) como pensadores que fomentaram as premissas liberais a partir da ascensão da burguesia enquanto classe dominante e dirigente. Ideias como a mão invisível do Estado, liberdades individuais e questionamento à dominação feudal implicaram na conformação de um novo consenso que não se estabeleceu apenas ideologicamente, mas a partir da presença da burguesia enquanto classe detentora dos meios de produção de um novo modo de produção que surgia da crise do sistema feudal: o capitalismo.
O liberalismo político e o liberalismo econômico serviram como cimento ideológico e prático para o firmamento desta nova classe. Todavia, devido às contradições do próprio capitalismo, às suas crises cíclicas, com a intensificação dos conflitos entre nações imperialistas e com o advento da Primeira Guerra Mundial (1914–1918), além do crescimento do proletariado e de fenômenos políticos com a Revolução Russa de 1917, observamos uma crise da governamentalidade liberal, abrindo espaço para as ideias intervencionistas de Keynes (1883–1946), que contribuíram no sentido de dotar o capitalismo de ferramentas para atenuação dos efeitos deletérios de sua lógica interna de concentração, acumulação e crises.
Após a Segunda Guerra Mundial (1939–1945), diante dos novos dilemas trazidos pela configuração geopolítica no mundo, e do próprio processo de crise das práticas econômicas intervencionistas, nos anos 1970, o neoliberalismo surge como uma resposta alternativa. baseada na liberdade irrestrita do mercado a ser garantida por um Estado vigilante dos interesses individualistas negociados no mercado, entendido como o elemento de nexo entre racionalidade econômica, eficiência dos processos e liberdade dos indivíduos. Para Foucault, essas ideias e práticas são pulverizadas para toda a sociedade num regime de governamentalidade que tem em vista alienar e traduzir em linguagem econômica até então áreas não tocadas efetivamente pelo mercado, como a própria subjetividade numa lógica de competitividade entre os indivíduos e empreendimento de si.
Na terceira parte do artigo, entenderemos a hegemonia como a articulação entre governabilidade, formas de organização do trabalho e de constituição de subjetividades. Ao apontarmos a influência das distintas formas de organização do trabalho, passando pelo taylorismo, fordismo, toyotismo e pela flexibilização, entendemos que, em cada uma delas, existiram mecanismos, controles e formas de pensar o corpo e a conduta das classes trabalhadoras na produção de mais-valor. Desta perspectiva, no neoliberalismo, a “flexibilização” da regulação legal das relações de trabalho implicou não apenas no ataque aos direitos trabalhistas, mas na produção e propagação de ideias e práticas segundo as quais a desregulamentação da legislação trabalhista é favorável à geração de emprego, à viabilização de negócios e à promoção do empreendedorismo, da competitividade como gestão racional não apenas das empresas econômicas, mas também das relações pessoais.
Esse consenso não fica restrito apenas ao universo empresarial e interpessoal da sociedade civil. Na própria estrutura estatal, em suas políticas e administração, há a importação de valores empresariais. É no interior dessa retórica empresarial que proposições relativas à eficiência administrativa, à austeridade fiscal, ao combate à corrupção são apresentadas, defendidas e implementadas. Dessa forma, é na quarta parte de nosso artigo que compreenderemos como a governamentalidade neoliberal, baseada em ideias e práticas do mundo empresarial, acabam se disseminando no Estado e nas políticas públicas de países como o Brasil, especialmente a partir da década de 1990.
É neste contexto que se implementam formas de adequar as atividades estatais ao gerencialismo, visando maximização de resultados organizacionais por meio da prevalência da gestão técnica sobre a política, a utilização de métricas de eficiência e produtividade, e a austeridade fiscal. Diante da necessidade de parceria com o setor privado, terceirização ou privatização de serviços e empresas públicas, acaba-se criando mecanismos de estender a gestão estatal para Organizações Sociais (OSs) que buscam aplicar mecanismos empresariais no trato do serviço público, implicando até na mudança de regime de trabalho, não abarcando mais funcionários estatutários, mas celetistas e até terceirizados.
Na lógica neoliberal, a ausência de recursos para os serviços públicos é tratada como um problema de eficiência na alocação e utilização sem enfrentar a manutenção dos interesses do capital financeiro e do rentismo mediante o pagamento dos juros da dívida pública brasileira. Essa perspectiva produz a defasagem do salário dos funcionários públicos em relação à inflação e na privatização das estatais como solução final para os problemas não apenas fiscais, mas também administrativos (mais eficiência e menos corrupção) do Estado.
De modo geral, no artigo em questão, tivemos em vista trazer uma leitura do neoliberalismo que foge do lugar-comum do economicismo, tentando assim, mediante as contribuições teóricas de intelectuais como Gramsci e Foucault, pensar o processo de construção de uma hegemonia neoliberal que envolve uma governamentalidade que tem em vista estabelecer as relações mercantis como a forma de sociabilidade e governo de si e dos outros mais racional e eficiente em diversas esferas da vida.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referência bibliográfica
NOGUEIRA, Kleiton Wagner Alves da Silva; SALES JUNIOR, Ronaldo Laurentino de. Governamentalidade e consenso na construção da hegemonia neoliberal: aproximações teóricas. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar, v. 13, n. 2, 2023. Disponível em: https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/1171. Acesso em: 4 mar. 2023.
[1] Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Estado e Luta de Classes na América Latina (PRAXIS) da UFCG. E-mail: kleiton_wagner@hotmail.com
[2] Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Sociologia na Unidade Acadêmica de Ciências Sociais da UFCG. Líder do Devires: Grupo de Intervenção e Pesquisa sobre Corpos, Afectos e Política. E-mail: ronaldo.laurentino@professor.ufcg.edu.br
[3] O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — Brasil (CAPES) — Código de Financiamento 001.
Fonte imagética: Montagem a partir de fotos da International Gramsci Society e Pinderest. Disponíveis em: https://www.internationalgramscisociety.org/about_gramsci/photo_archive/gramsci_1920s.html; https://br.pinterest.com/pin/625930048184702766. Acesso em: 15 mar. 2024.