Joyce Miranda Leão Martins1
22 de julho de 2024
Resenha de: Finchelstein, Federico. Do fascismo ao populismo na História. São Paulo: Almedina, 2019.
O final da década de 2010 colocou em xeque as democracias tais como as conhecemos: em seus postulados de separação dos poderes, de defesa dos direitos individuais, de proteção às minorias e de direito à oposição. Fenômenos como o Movimento Cinco Estrelas (na Itália), o Brexit (no Reino Unido), e as eleições de Donald Trump (Estados Unidos, 2017-2021), Viktor Orbán (Hungria, 2010-), Tayyip Erdoğan (Turquia, 2014-) e Jair Bolsonaro ( Brasil, 2019-2022) acenderam o alerta de que havia algo errado com os regimes liberais. Palavras como populismo e fascismo voltaram a ser tema de debates públicos, fazendo parte desde páginas de jornais até conferências em congressos e dossiês de periódicos acadêmicos.
A facilidade com que fascismo e populismo são evocados, no entanto, não tem a ver com a transparência dos conceitos ou com significados consensuais nas disciplinas das Ciências Humanas. Ao invés disso, é justamente devido à indefinição dos termos que eles são mobilizados para criticar uma série de ações do poder público e de lideranças políticas.
A obra Do fascismo ao populismo na história, do historiador argentino Federico Finchelstein, busca não apenas esclarecer os significados do fascismo, mas também (e talvez esta seja sua maior contribuição) mostrar suas imbricações históricas com o populismo moderno. Para além do prólogo e da introdução, o livro está dividido em três capítulos: 1) O que é o fascismo na história?; 2) O que é o populismo na história?; 3) O populismo entre a democracia e a ditadura. E finaliza com um epílogo, O regresso do populismo.
Os objetivos do trabalho de Finchelstein e sua diferença para estudos anteriores são destacados logo no prólogo: devolver o fascismo e o populismo à sua história mundial; rejeitar a redução dos termos a condições nacionais e regionais; contestar as visões dominantes estadunidenses e eurocêntricas.
O populismo moderno, de acordo com o autor, nasceu no pós-1945, na Argentina, deixando de ser somente uma ideologia ou um estilo de movimento de protesto para transformar-se em regime de poder. Esse argumento insere de forma incontornável a América Latina no centro dos debates sobre o fascismo e o populismo moderno, o qual Finchelstein explica ser herdeiro do regime associado a Mussolini. Na introdução, o/a leitor/a passa a se familiarizar melhor com as diferenças entre os termos, que serão constantemente relembradas ao longo dos capítulos: o populismo se relaciona diretamente com o fascismo em sua recusa à verdade empírica; na compreensão do povo como uma entidade única composta por líder/nação/seguidores; na rejeição à democracia liberal. Contudo, enquanto o fascismo enaltece a ditadura, o populismo se baseia na democracia eleitoral, ainda que rejeite a diversidade democrática.
A metamorfose do fascismo ao populismo se explica a partir da experiência do primeiro e do seu ocaso. Para a melhor compreensão do acontecimento, Finchelstein propõe uma leitura global dos “itinerários históricos” dos fenômenos, buscando evidenciar que ambos são “capítulos diferentes da mesma história transnacional de resistência à moderna democracia constitucional” (p. 35).
Cumprindo o prometido no prólogo e na introdução da obra, o primeiro capítulo busca os vestígios do surgimento do fascismo na história. Embora não surpreenda que como termo e movimento político ele tenha origem na Itália, o autor percebe que as raízes ideológicas do fenômeno são bem mais antigas e fazem parte de uma resposta ao Iluminismo, tendo sido concebido como uma reação às revoluções do século XVIII e da segunda década do século XIX. O fascismo teria surgido, então, como um ataque contrarrevolucionário à liberdade e à igualdade política e com filosofia que atribuía valor absoluto à violência no domínio político.
O fascismo tal como conhecemos hoje emergiu num contexto de guerra total, rejeitando o comunismo soviético, mas incorporando algumas de suas dimensões. De acordo com Finchelstein, quando “essa ideologia da violência se fundiu com o nacionalismo de extrema direita, o imperialismo e as tendências esquerdistas antiparlamentares não marxistas […] surgiu o fascismo como conhecemos hoje” (p. 54).
O segundo capítulo aborda o populismo como uma reformulação do fascismo, que emergiu na Guerra Fria como uma alternativa ao comunismo e ao liberalismo; forma autoritária de democracia que enfraquece o Estado de direito e a separação de poderes sem os abolir completamente. Como resultado de experiências históricas e intercâmbio de ideias entre diferentes partes do mundo, o populismo é, assim como o fascismo, um fenômeno mundial. O peronismo, na Argentina, teria sido a primeira tentativa de democratizar legados antiliberais do fascismo e também o primeiro exemplo do que Finchelstein chamou de populismo moderno. De acordo com o autor: “A Argentina parecia estar pronta para o fascismo, mas o mundo revelou-se demasiado maduro para o mesmo” (p. 188).
A natureza dupla do populismo fez com que ele incorporasse tradições democráticas e ditatoriais; Iluminismo e anti-Iluminismo; representação eleitoral e teologia política. Podendo surgir de diferentes polos do horizonte político, o populismo é mais inclusivo do que o fascismo, mas, tanto à direita como à esquerda, a democracia se afasta de sua versão representativa liberal, pois a funde com uma delegação plena ao líder que, por sua vez, diz ser o próprio povo.
Segundo Finchelstein, podem ser entendidos como tipos de populismos modernos: 1) O populismo clássico, que abrange a segunda fase do varguismo no Brasil, o gaitanismo na Colômbia, o período de José Ibarra no Equador e experiências do pós-guerra na Venezuela, no Peru e na Bolívia; 2) O populismo neoliberal de Carlos Menem (Argentina), Abdalá Bucaram (Equador), Alberto Fujimori (Peru) e Silvio Berlusconi (Itália); 3) O populismo neoclássico de esquerda dos governos Kirchner (Argentina), Hugo Chávez e Nicolás Maduro (Venezuela), Rafael Correa (Equador), Evo Morales (Bolívia), Syriza (Grécia), Podemos (Espanha); 4) O populismo neoclássico de direita e extrema direita, que vai desde a extrema direita peronista, nos anos 1970, até os atuais movimentos e líderes de direita, como Tayyip Erdoğan, na Turquia, e Viktor Orbán, na Hungria. O autor considera esse tipo como “uma nova vaga de populismo para o novo século”. Estão na ordem do dia o racismo, a xenofobia e a misoginia, temas que os populismos clássicos haviam rejeitado.
No terceiro e último capítulo, Finchelstein perpassa as ligações do populismo com os legados ditatoriais e as tradições democráticas, focando em regimes contemporâneos. Reafirma que o parâmetro democrático permanece, quer seu conteúdo aumente ou diminua a participação democrática; crie uma nova classe capitalista ou fortaleça poderes corporativos; combata ou defenda o racismo. Cita como exemplos Perón e Chávez, que, quando se depararam com limites constitucionais, convocaram eleições para rever a Constituição. Se o líder ignora processos democráticos, a, o regime deixa de ser populista e se converte em uma ditadura. Devido à base autoritária e às ressonâncias do fascismo que o populismo carrega, essa é uma possibilidade sempre latente.
Um elemento que associa o autoritarismo populista do século XXI ao passado fascista é a característica misógina de ambos, que colabora para a subordinação das mulheres, o obscurecimento de seus direitos e a consolidação de estereótipos de gênero. No centro do debate atual, está também um instrumento “perfeito” para os populistas: as redes sociais. Finchelstein alerta que “as novas tecnologias não favorecem o debate ou o acesso livre a ideias, mas minimizam significativamente a importância de instituições democráticas fundamentais”. E relembra a afirmação de Umberto Eco de que tanto no fascismo como no “populismo da Internet… os cidadãos não intervêm; são apenas chamados a desempenhar o papel de povo” (p. 264).
No epílogo do livro, é reafirmado que os anseios autoritários são uma constante na história da humanidade. Nesse sentido, nada impede a volta do populismo aos fundamentos do passado. Essa é uma recordação fundamental para que possamos rejeitá-los antes da emergência de regimes que combatam as melhores conquistas da modernidade.
A obra de Finchelstein apresenta relevância não apenas diante do atual contexto, mas também diante de estudos que privilegiam a mesma temática. Fugindo a classificações dos populismos em tipos ideais ou à explicação de sua emergência a partir da análise de determinadas condições localizadas, ele ressalta os processos históricos de tais eventos e a base comum que compartilham: o autoritarismo. Nesse sentido, o autor possibilita a reflexão crítica sobre Ernesto Laclau (2013), conterrâneo seu que enalteceu certo tipo de populismo mais inclusivo e relacionado à esquerda. ao mesmo tempo, lembra-nos da obra de outro importante argentino (ítalo-argentino), o sociólogo Gino Germani (2003), dos primeiros a perceber as conexões entre o fascismo e o populismo.
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Referências bibliográficas
LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
GERMANI, Gino. Autoritarismo, fascismo y populismo nacional. Buenos Aires: Temas, 2003.
- É escritora, doutora em Ciência Política, professora da Universidade Federal de Alagoas, vice-diretora da Associação Brasileira de Ciência Política (Regional Nordeste) e líder do Iaras – Núcleo de estudos de gênero. E-mail: joycesnitram@yahoo.com.br ↩︎
Referência imagética: Almedina Brasil. Do fascismo ao populismo na história, Federico Finchelstein. 2019. Disponível em: <https://www.almedina.com.br/produto/do-fascismo-ao-populismo-na-historia-7755>. Acesso em: 15 maio 2023.