Petrônio Domingues1
Fábio Nogueira de Oliveira2
9 de setembro de 2024
A população da diáspora africana cumpriu um papel basilar na história do capitalismo. Coagido e transportado desumanamente para a América por meio do tráfico transatlântico a partir do século XVI, esse segmento populacional constituiu parte crucial da economia colonial exportadora. Sem a exploração do trabalho escravo de milhões de africanos e africanas no chamado Novo Mundo e o escoamento da riqueza material por eles produzida para a Europa, dificilmente poderiam ter desenvolvido as condições objetivas para o advento, tanto da Revolução Industrial no Velho Continente, quanto do capitalismo como sistema mundial.
Diante desse quadro, os povos negros – escravizados, livres e libertos – elaboraram múltiplas formas de luta pela emancipação, de acordo com os tempos, contextos e correlações de forças. Com efeito, o legado do colonialismo persiste em seus corpos, que amiúde carregam as marcas do racismo e da opressão social. Mas também o legado de suas tradições de lutas persiste, suas resistências e insurgências são parte fundamental da história das ações coletivas pela libertação humana frente ao jugo do sistema capitalista.
Fato é que a formação, o desenvolvimento e a consolidação do capitalismo estiveram intimamente conectados à história da experiência negra na modernidade. Cientes disso, intelectuais marxistas do Caribe levaram a sério o estudo do marcador racial, investigando o papel estrutural (e não só superestrutural) da “raça” e do “racismo” à luz da lógica do sistema capitalista. Eis o tema central de Marxismo negro: Pensamento descolonizador do Caribe anglófono, livro do antropólogo espanhol Daniel Montañez Pico, professor da Universidade Complutense de Madrid, que mergulha nas raízes caribenhas do pensamento marxista, explorando as valiosas contribuições de intelectuais negros do Caribe inglês para o marxismo e a teoria crítica.
Publicada há pouco pela editora Dandara, a obra destaca a história e as principais contribuições de figuras pouco conhecidas do público brasileiro, como Oliver Cox, George Padmore, Lloyd Best, George Beckford, Walter Rodney e Rhoda Reddock. Além disso, ressalta a importância de intelectuais caribenhos como C. L. R. James, Eric Williams e Stuart Hall, que, apesar de suas diferenças e peculiaridades, compartilham a origem caribenha e suas influências no pensamento marxista.
A invenção de um conceito
Todavia, o que é “marxismo negro”? É uma epistemologia que, a partir do materialismo histórico, debruça-se em torno da experiência de vida da população negra. Em linhas gerais, surgiu em resposta ao eurocentrismo do marxismo hegemônico, que tendeu a negligenciar o estudo do racismo, por não ser uma experiência própria da maioria do proletariado na Europa. Essa negligência fez – e ainda faz – o marxismo ver o racismo como uma herança da modernidade ou um instrumento ideológico secundário da exploração econômica capitalista, que será eliminado à medida que a classe operária tome o poder.
Geralmente se argumentava que qualquer marcador que desviasse a centralidade da opressão de classe se contrapunha à luta pela libertação humana, razão pela qual quem se dedicasse a apreender o racismo de forma teórica e organizasse uma luta específica contra ele sofreria admoestação. É daí que nasce o marxismo negro, um esforço em mostrar como tanto na teoria como na práxis a raça e a classe não são marcadores antagônicos, senão complementares e entrelaçados.
Aliás, a articulação de raça e classe é o principal atributo distintivo do marxismo negro. É verdade que os marxistas clássicos já haviam investigado o problema racial, mas o abordaram via de regra como um produto derivado do capitalismo pertencente ao domínio ideológico da superestrutura ou, no limite, uma simples herança da escravidão que viria a ser superada pelo desenvolvimento das forças produtivas e a modernização econômica. O marxismo negro realoca o marcador raça no domínio da estrutura, apreendendo o racismo no centro do problema do capitalismo. Em vez de um produto derivado deste sistema, o racismo é tomado como um princípio organizador da classe social e de toda a economia política. O marxismo negro postula, assim, que as análises sobre se poderia existir um capitalismo sem racismo são a-históricas, pois o capitalismo histórico concretamente existente sempre esteve articulado ao marcador racial desde sua gênese.
Segundo Montañez Pico, o marxismo negro é uma “calibalização” do marxismo, ou seja, é uma reapropriação dos postulados do materialismo histórico de acordo com o contexto e as questões relacionadas à experiência negra. No caso do Caribe Anglófono, essa epistemologia realça que o pensamento crítico e as lutas revolucionárias da região são próprias e originais, embora se expressem em termos ocidentais. Assim, no marxismo negro, “é a teoria marxista que se adapta e transforma para analisar a história e a experiências de vida da população negra, e não o contrário, tomando o ‘negro’ um significado epistemológico que vai além da cor da pessoa que teoriza” (PICO, 2024, p. 33).
Conforme pondera Ramón Grosfoguel, “o que define os marxismos negros não é a cor da pele do autor, senão as teorias que nascem do pensamento crítico que se produz a partir da tentativa de teorizar a articulação entre dominação racial e exploração de classe a partir da experiência vivida de corpos negros em um mundo branco. Se é marxista negro não pela cor da pele, mas pela perspectiva epistêmica a partir da qual se pensa” (GROSFOGUEL, 2018, p. 19).
Marxismo negro versus Tradição radical negra
O termo “marxismo negro” foi utilizado pela primeira vez pelo cientista político afro-estadunidense Cedric Robinson, em 1983, em seu livro Marxismo negro: a criação da Tradição Radical Negra. Robinson empreendeu ali uma crítica visceral ao marxismo, concebendo-o como uma perspectiva intrínseca e epistemologicamente eurocêntrica, incapaz de elucidar as condições de opressão dos povos negros ou de responder a seus desafios políticos. O autor considera que o marxismo advém de uma matriz de pensamento forjada na experiência sócio-histórica da civilização europeia e só pode explicar e responder a certos problemas, dilemas e desafios desse contexto.
Robinson invoca, assim, que a população negra crie sua própria teoria revolucionária, a partir de suas experiências sócio-históricas, tradições de luta; de seus saberes, imaginários e manancial civilizatório, ou seja, a partir do que o autor denomina de “tradição radical negra”. Se o marxismo é o que se arvora a teoria revolucionária no mundo, os povos negros teriam que instituir seu próprio marxismo, sua própria teoria revolucionária.
Na concepção de Montañez Pico, a proposta de Robinson é idealista e nitidamente antimarxista, na medida em que nega a validez universal do marxismo e promove a fragmentação política. Ainda que respalde as críticas do cientista político afro-estadunidense à conotação eurocêntrica do marxismo, assim como a constatação do descuido analítico sobre a questão racial, Montañez Pico avalia que o conceito de “tradição radical negra” seja idealista3. Sua compreensão de “marxismo negro”, portanto, é bastante divergente da de Robinson. “Por marxismo negro”, assinala o pesquisador espanhol, entende-se “as adaptações e interpretações da teoria marxista a partir da realidade sócio-histórica dos povos negros. Trata-se de análises marxistas sobre a questão negra e a questão racial. Em nenhum caso negamos a validade do marxismo nem sua utilidade analítica e política para os povos negros, muito pelo contrário” (PICO, 2024, p. 49).
Desse modo, marxismo negro é uma proposta conceitual que reinventa o arcabouço teórico e instrumental analítico marxistas a partir da experiência histórico-social das pessoas classificadas e racializadas como “negras” no sistema-mundo capitalista. Consiste, antes, numa aposta epistemológica que aprimora e revitaliza o marxismo, sem negar sua validade lato sensu ou ser “apenas” seu componente extemporâneo.
Montañez Pico demonstra que o Caribe, vivendo entre diferentes imperialismos (inglês, francês e espanhol), destacou-se como um centro de produção e renovação da teoria marxista, onde se urdiu temas que antecipam perspectivas pós-coloniais e decoloniais e se formulou conceitos fundamentais, como “sistema mundo”, “capitalismo racial”, “economia de plantation”, “estudos culturais” e a interseccionalidade entre gênero, raça e classe.
Esses conceitos, forjados pelos autores mencionados, tornaram-se uma fonte inestimável de estudo, pesquisa e ação para aqueles/as interessados/as na história do Caribe e nas possibilidades teóricas e políticas da teoria marxista pensada desde o Sul Global. Na contramão da teoria marxista brasileira que, no geral, deu de ombros para a centralidade da raça na formação econômico-social do capitalismo dependente brasileiro – com exceção de autores como Clóvis Moura, Florestan Fernandes e Lélia González – o marxismo negro retoma o caráter histórico da classe que, no caso brasileiro, principalmente, não é inteligível sem “raça” e “gênero”.
Dando vida ou enegrecendo o marxismo?
Desafiando o eurocentrismo predominante no mundo acadêmico, o livro Marxismo negro revela a riqueza e a diversidade do pensamento descolonizador do Caribe anglófono e oferece uma perspectiva genuína e cardinal para compreender a interseção entre a teoria marxista, a luta antirracista e a experiência caribenha com inegáveis contribuições à renovação da teoria/práxis marxista entre nós brasileiros.
Montañez Pico assevera que o marxismo negro tem sido interpretado a partir de correntes teórico-políticas distintas, por isso enfrenta ao menos dois grandes desafios no seio dos movimentos emancipatórios. Por um lado, tem a tarefa de descolonizar a própria tradição marxista clássica, denunciando seu eurocentrismo e suas pretensões homogeneizadoras. Por outro, tem que se contrapor ao abandono da perspectiva de classe e a tendência particularista exacerbada dos movimentos negros liberais.
Ante os desafios dessa natureza, advertia Aimé Césaire, não quero me “perder num universalismo descarnado”, que dilui o particular no universal; nem me enterrar no “particularismo estreito”, que promove uma “segregação aprisionada no particular”. A seu ver, a melhor alternativa é esposar sínteses, em que o “universal seja depositário de todos os particularismos, aprofundamento e coexistência de todos os particulares” (CÉSAIRE, 2006, p. 84).
Isso significa que não se trata de um marxismo contracultural, mas de se valer deste método analítico para, a partir das condições histórico-sociais concretas, interpretar e transformar a realidade. Dessa maneira, faz todo sentido pensar que o marxismo não é universal em si, mas uma teoria que se universaliza na medida em que é traduzida nos contextos específicos de produção da consciência e do saber/fazer da práxis revolucionária.
Marxismo negro é um livro original e candente, que em alguns aspectos coloca em xeque paradigmas consagrados e provoca instigantes reflexões em torno da tradição marxista, da luta anticolonial, dos embates contra o racismo e das insurgências pela libertação dos povos afrodescendentes. Se o marxismo negro demanda uma descolonização da interpretação hegemônica da matriz de pensamento que o gestou, seus aportes fazem parte de uma tradição muito mais ampla que poderíamos denominar “marxismos do Sul Global”, que são ferramentas críticas que avançam na “direção de uma compreensão mais integral do capitalismo como sistema econômico, político e social dominante e profundamente prejudicial em todo o mundo, que precisa fortemente de transformação” (PICO, 2024, p. 45).
Para finalizar, vale uma reflexão de José Carlos Mariátegui: o socialismo é criação histórica – “temos que dar vida, com nossa própria realidade, em nossa própria linguagem” (MARIÁTEGUI, 2005, p. 120) – ou não será socialismo, prerrogativa que também estendemos à teoria marxista: ou esta é criação consciente a partir das condições histórico-sociais concretas e, portanto, afirma-se como negra no léxico da modernidade para soldar-se às mentes e aos corações de milhões de vítimas do racismo, que é inerente à reprodução do Sistema capitalista, ou será apenas um conjunto de ditames descarnados e incapazes de fazer frente ao próprio sistema.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
- Doutor em História (USP), professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: pjdomingues@yahoo.com.br ↩︎
- Doutor em Sociologia (USP), professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). E-mail: fnogueira@uneb.br ↩︎
- O termo “tradição radical negra” também é questionado pelo sociólogo Paul Gilroy: “embora a força do termo de Robinson seja óbvia, ele ora é esclarecedor, ora enganoso. Isto porque pode sugerir que os elementos radicais dessa tradição é que são os traços dominantes (algo que as posições complexas e mutáveis de Du Bois podem ser utilizadas para contestar) e porque a ideia de tradição pode soar demasiado fechada, final e antiética à experiência subalterna da modernidade que tem condicionado em parte o desenvolvimento dessas formas culturais” (GILROY, 2001, p. 241). Para uma crítica mais antiga ao conceito de “tradição radical negra”, ver August Nimtz Jr. (1984). ↩︎
Referências bibliográficas
CÉSAIRE, Aimé. Carta a Maurice Thorez. In:___. Discurso sobre el colonialismo. Madrid: Akal, 2006 [1956].
GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001.
GROSFOGUEL, Ramón. ¿Negros marxistas o marxismos negros?: una mirada descolonial. Tabula Rasa, Bogotá, n. 28, 2018, p. 11-22.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Por um socialismo indo-americano: ensaios escolhidos. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005.
PICO, Daniel Montañez. Marxismo negro: pensamento descolonizador do Caribe anglófono. São Paulo: Dandara, 2024.
NIMTZ JR, August H. Marxism and the Black Struggle: The ‘Class vs. Race’ Debate Revisited. Journal of African Marxists. London, n. 7, p. 75-89., March, 1984.
ROBINSON, Cedric James. Marxismo negro: a criação da Tradição Radical Negra. São Paulo: Perspectiva, 2023 [1983].
Referência imagética: Samuel “querido de Deus” defende-se, atacando com a cabeça, do aú que lhe atira o estivador Maré (Fotografia de Édison Carneiro). Disponível em <https://bndigital.bn.gov.br/acervodigital>. Acesso em 05 ago 2024.