Jonathan Mendo1
13 de setembro de 2024
Este texto compõe a série especial sobre Ciclo de Oficinas de Formação 2024 – Eleições em São Paulo: Construindo a Agenda de uma Cidade no Sul Global. Leia os outros texto aqui.
As recentes catástrofes ambientais, como as enchentes do Rio Grande Sul e as queimadas no interior de São Paulo, têm empurrado a questão climática para o centro do debate político envolvendo as eleições municipais de 2024. Isto poderia ser analisado como algo positivo, já que as mudanças do clima têm demandado cada vez mais uma ação coordenada do poder público para a mitigação e a adaptação dos seus efeitos sobre nossas vidas. Mas a verdade é que essas questões já eram urgentes muito antes dessas catástrofes, alertadas por especialistas e acadêmicos estudiosos da questão e infelizmente negligenciada pelo poder público em âmbito regional, nacional e global.
A questão climática se relaciona com outros dois temas muito caros para a agenda política ligada aos direitos humanos e à justiça social: a questão das desigualdades e do déficit habitacional. Hoje não é mais possível pensar nesses três problemas em separado, tamanho a forma como eles estão entrelaçados. Para debater essas questões e de que maneira o desafio habitacional em São Paulo se relaciona e se articula com a questão climática e a busca pela justiça social, o Desjus e o NDAC, ambos do Cebrap, em parceria com a Fundação Tide Setubal, receberam, no dia 29 de julho, os professores da USP e especialistas em Urbanismo e Planejamento Urbano Nabil Bonduki e Laura Valente, com mediação da jornalista Débora Freitas da CNN. Estes proporcionaram um debate de alto nível intelectual a respeito dos diagnósticos e prognósticos que envolvem o problema habitacional da cidade de São Paulo e de que maneira essa questão está profundamente articulada com as mudanças climáticas e a luta contra as desigualdades.
Laura Valente começou sua fala pontuando os desafios ambientais que o mundo está enfrentando e de que maneira a atividade humana, desde a revolução industrial, está impactando de maneira profunda o nosso meio ambiente. O que caracteriza o período chamado de antropoceno, que é a designação popularizada em 2000 pelo químico holandês Paul Crutzen para denominar uma nova época geológica caracterizada pelo impacto do homem na Terra. O planeta estaria vivendo um esgotamento de seus recursos finitos provocados pelo aquecimento global, por populações concentradas em grandes cidades, pela degradação dos meios naturais e pela morte da biodiversidade.
Importante pontuar uma distinção fundamental que a urbanista fez ao rebater o argumento dos negacionistas de que as mudanças climáticas são um processo natural do planeta. Laura Valente não negou esse fato, mas salientou que as mudanças climáticas estão acontecendo em uma velocidade sem precedentes na história da humanidade, sendo o aumento da temperatura média do planeta e o processo não natural do efeito estufa evidências contundentes do processo acelerado de deterioração do clima provocado pela ação humana. São todos desafios ambientais contemporâneos que exigem uma articulação global, já que os seus efeitos se espalham pelos quatro cantos do mundo, muitas vezes de maneira assimétrica e injusta, prejudicando sobretudo os países menos desenvolvidos, que, no fim das contas, foram os que menos contribuíram para o aquecimento global.
A urbanista afirmou também que cerca de 70% das emissões de gases são provenientes do setor energético, o que se articula diretamente com desafios urbanos ligados ao setor de mobilidade e a um melhor adensamento das populações perto de redes de transportes públicos, como metrô e trem, questões demandadas também pelo crescimento demográfico da população que pressionam a questão de sustentabilidade. Outro ponto importante a ser destacado na fala de Laura é de que essas mudanças climáticas são provenientes de hábitos de consumo de riquezas e não propriamente de hábitos de subsistência. Isso demanda uma reflexão sobre nosso estilo de vida e de que maneira ele impacta nas condições de sustentabilidade do planeta. Assim como acontece em escala global, as pessoas que estão mais sofrendo com as mudanças climáticas no âmbito doméstico são aquelas que menos contribuíram com o aquecimento, sobretudo as mais pobres que consomem ao nível da subsistência.
Laura Valente salientou que todos esses desafios ambientais só podem ser enfrentados via ação institucional do Estado, que representa o melhor instrumento de ação coletiva que temos ao nosso alcance. A urbanista apontou as diversas mobilizações políticas que ocorreram em torno da questão climática e do meio ambiente desde 1992, com a primeira convenção do clima ocorrida no Rio de Janeiro, subsidiada com informações científicas do IPCC – Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. Ela também apresentou algumas iniciativas políticas pelo mundo que visam mitigar a questão da mudança climática, como por exemplo infraestruturas verde e azul construídas em Singapura, e os jardins de chuva construídos em alguns pontos da cidade de São Paulo. No entanto, pontuou que, em São Paulo, essas medidas ainda são muito tímidas e que é necessária uma atuação muito maior do poder público em medidas de mitigação e adaptação da mudança climática, o que demanda soluções coletivas e não individuais para o enfrentamento dessas questões climáticas urgentes.
Nabil Bonduki articulou em sua fala as questões dos problemas climáticos e os desafios que envolvem o problema histórico da cidade de São Paulo de déficit habitacional. Para ele, políticas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas envolvem políticas de habitação e mobilidade que respondam diretamente aos desafios ambientais, atacando ao mesmo tempo os problemas já conhecidos da falta de habitação e das desigualdades sociais. Ele criticou a inação do Estado, que costuma agir apenas diante de desastres ambientais, e afirmou que a pauta do déficit de habitação é negligenciada na cidade de São Paulo.
Esta opinião foi compartilhada pela jornalista Débora Freitas, que afirmou que a imprensa também não dá a devida importância para essa questão. Esse seria o velho problema de inação de nossa classe política, muitas vezes preocupada com medidas de curto prazo que se convertem em votos imediatos. Inclusive, o problema da mudança climática e a lenta resposta do poder público em âmbito mundial a essa questão fariam parte dessa mesma lógica de pouco apreço por medidas de longo prazo que garantam um futuro sustentável e seguro, o que, por sua vez, se relaciona com questões envolvendo a relação entre justiça e democracia na resolução desses problemas.
Bonduki apresentou algumas questões bem relevantes envolvendo o problema do déficit habitacional e novas demandas futuras que surgirão devido à mudança climática. O problema das pessoas que moram nas margens da cidade, em áreas acidentadas e de risco, são para ele resultado da falta de alternativa habitacional causada pelas desigualdades sociais e históricas na cidade e no país. O desafio habitacional passa também pela construção de políticas de realocação de pessoas dessas áreas de risco e não permitindo que se formem novas moradias nesses terrenos acidentados. Esse é um desafio político imenso, em suas palavras, pois o déficit habitacional acumulado já é enorme, a partir da existência também dos problemas da coabitação e de habitação precária que se juntam a essa questão das moradias de risco. Ainda, temos a questão de demandas futuras de habitação provocadas pelo aumento demográfico, por movimentos migratórios e reposição de estoques habitacionais. Todos estes desafios pressionam as políticas habitacionais em direção a medidas de adensamento inteligente da população em menos territórios, a fim de preservar áreas mais permeáveis e criar condições sustentáveis de remanejamento da população. Isto significa investimentos sociais e econômicos por parte do Estado para a resolução do déficit habitacional, que, como vimos, se articula diretamente com questões de mitigação e adaptação dos problemas climáticos.
Nabil apontou ainda que essas políticas de adensamento da população perto de sistemas de transporte público, a transferência de populações que moram em assentamentos precários, o problema de que parte da população que emprega mais de 30% de seus rendimentos em aluguel – o que representa um desafio para a questão da desigualdade social – são todas questões que devem mobilizar o poder público a fim de construir condições de sustentabilidade urbana no que diz respeito aos temas da mobilidade, clima, redução das desigualdades sociais e diminuição do déficit habitacional. Para Bonduki, tais medidas devem ser feitas independentemente da ocorrência tragédias e mesmo que elas causem desconforto político, já que muitas delas costumam encontrar resistência por parte da população, que necessita viver o dia a dia buscando o atendimento de suas necessidades mais básicas, sem muito tempo e condições de pensar questões mais a longo prazo, essas sim de responsabilidade do poder público. Afirmou também que esse desgaste político é inevitável em um primeiro momento, mas que depois as pessoas se acostumam a essas novas condições, dando o exemplo de políticas públicas passadas.
Essas questões de democracia, pensadas em conjunto com a questão climática, foram tocadas em uma pergunta da pesquisadora Raissa Wihby Ventura, que questionou como essas mudanças estruturais, propostas por determinadas políticas públicas, em um contexto de crise democrática, podem encontrar resistência da vontade popular. A pesquisadora questionou de que maneira a eficácia de uma medida de resolução do problema pode encontrar entraves no próprio processo democrático. Outra questão interessante colocada pela pesquisadora é do perigo do que ela chamou de “colonialismo verde”, já que a questão climática tem uma dimensão local e global, sobretudo de países que complementarem seus ciclos de desenvolvimento e são os maiores responsáveis históricos pelas emissões, mas que se isentam da responsabilidade Isso traz para esse debate a dimensão da injustiça climática, que deve ser tratada de maneira normativa dentro da teoria política.
Bonduki respondeu que é comum em democracias que medidas que precisam ser implementadas não encontrem respaldo popular. Todavia, é parte também da democracia que os governos promovam o debate público em nome do convencimento da opinião pública em favor de determinada medida, e que a universidade tem esse papel nessa comunicação. Esse debate é interessante, pois coloca a questão climática no centro de um debate teórico clássico da teoria política, que são as tensões envolvendo democracia, justiça e liberalismo.
A pesquisadora Mônica de Oliveira perguntou sobre quais são as políticas que envolvem a mitigação da questão climática em São Paulo, que corre risco de ter um aumento de 6 graus na temperatura média do estado até 2050. Bonduki respondeu que é necessário revisar o plano diretor, estabelecer uma relação mais saudável com o setor privado e criar um plano de habitação. Respondendo também a uma pergunta sobre a questão das favelas e como ela tem sido tratada nas eleições municipais, o urbanista apontou que é uma problemática de longo prazo, de cerca 20 anos, e que é uma situação complexa que envolve políticas de participação e negociação com as populações locais, oferecendo a elas também alternativas viáveis para que não voltem a essas áreas de risco.
As questões colocadas no seminário pelos pesquisadores envolvendo os problemas climáticos e do déficit habitacional em São Paulo foram importantes para percebermos como ambos estão profundamente articulados com a questão da justiça social e das desigualdades, problemas urgentes e históricos que deveriam pautar a ação pública. O déficit habitacional é uma das suas faces mais trágicas, por todo o drama humano que envolve as pessoas que não têm moradia ou moram em situações extremamente precárias. A preservação do planeta de maneira sustentável passa diretamente por políticas públicas que criem zonas de proteção ambiental que estejam livres de construções irregulares e insalubres, atacando ao mesmo tempo a questão da mitigação e adaptação da mudança climática e também da justiça social.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
- Doutorando em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: mendonews@hotmail.com ↩︎
Referência imagética: Cartaz de divulgação da primeira oficina realizada, “Os Desafios da Habitação em São Paulo”.