Gabriel Pinho Brochado1
25 de outubro de 2024
Este texto compõe a série especial sobre o Ciclo de Oficinas de Formação 2024 – Eleições em São Paulo: Construindo a Agenda de uma Cidade no Sul Global. Leia os outros textos aqui.
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No dia 1º de outubro de 2024, o Desjus (CEBRAP), em parceria com a Fundação Tide Setúbal e com o Núcleo de Democracia e Ação Coletiva (NDAC-CEBRAP), realizou o evento “Participação Social por uma Cidade mais Democrática: Desenhos e Desafios”, recebendo os pesquisadores e professores José Szwako (IESP-UERJ) e Carolina Requena (CEM-USP) para discutir o modelo participativo, sua história, desenhos e desafios na cidade de São Paulo. A mediação ficou a cargo do professor Adrian Lavalle (DCP-USP/CEBRAP).
O processo histórico de institucionalização da participação social no Brasil
Como mencionado por Adrian Lavalle, a história do modelo participativo no Brasil é pouco territorializada. A fim de demonstrar a evolução desse modelo, José Szwako fez um resgate histórico da participação social no país, apresentando seu processo de institucionalização e sua evolução desde o início da transição democrática até o contexto atual. Assim, apresentou quatro momentos importantes que marcaram a transformação da participação social nos últimos 40 anos.
Esse ponto chave, que se inicia na década de 70 com o início da transição democrática, quando o governo militar prometeu uma abertura “lenta, gradual e segura” do regime, tem como destaque a formação de conselhos populares (ou conselhos comunitários). O ideal promovido era o de “participação popular”, almejando uma transformação política que democratizasse os espaços da vida e política local. Eram formas de organização que tinham como objetivo transformar a política a partir da participação popular nesses espaços, sem olhar diretamente para a estrutura do Estado.
A palavra de ordem “poder popular” representava, naquele momento, duas dimensões: o direito de votar, decidir e escolher quem governa, mas também indicava uma politização dos conselhos populares. Szwako, para ilustrar a dinâmica que os conselhos adquirem ao servir como interlocutores legítimos das prefeituras, recuperou uma pergunta feita por uma liderança de bairro nos anos 80: “Não estaríamos, assim, efetivamente atrelando o movimento ao Estado?”.
Lavalle complementou a análise histórica ao observar que, no início do processo de transição democrática, a participação não era um tema exclusivo de um único partido político, mas sim a construção de partidos herdeiros do processo de mobilização do período. Ele sublinhou como a institucionalização da participação no Brasil foi um movimento mais amplo, abrangendo governos anteriores ao do PT, como o de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que foi responsável pela participação nos conselhos de saúde, assistência, criança e adolescência.
A cogestão e a “escuta forte” como método de Governo
Szwako lembrou, ainda, que enquanto no processo constituinte da década de 80 a adjetivação para a participação foi “cidadã”, nos anos 90 a ideia de participação alcança outro formato. O modelo que emergiu nesse momento foi o de “cogestão”. A aposta dos movimentos sociais, então, passou a ser a divisão da gestão pública com os governos locais. Essa radicalização do modelo participativo alcançou outro patamar com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2002. Foi nesse momento que a participação social chegou ao plano federal sob a expressão “escuta forte”.
Szwako reforça a percepção de um processo robusto de institucionalização que vem desde a redemocratização. Enquanto em um primeiro momento a institucionalização envolvia o estabelecimento de regras, procedimentos e critérios, sendo vista como um espaço participativo distinto da estrutura do Estado, em um segundo momento, ela passa a compor a retórica do governo, incorporando-se em suas estratégias para ampliar os espaços de participação social.
O palestrante expôs que, embora a proposta de cogestão tenha se tornado parte da retórica governamental, não se observou uma transformação efetiva no Estado que incorporasse o modelo participativo. Dessa forma, a participação social não trouxe resultados significativos aos movimentos sociais. Ao mesmo tempo, esses movimentos não demonstraram interesse em sair dos conselhos, levantando questões importantes sobre o que realmente estava acontecendo dentro desses espaços. Por que os conselhos não se esvaziavam se eles não entregavam aquilo que era prometido? A explicação apresentada por Szwako é que conselhos fornecem recursos informacionais e relacionais aos movimentos sociais; ou seja, atores integram e permanecem nos conselhos devido às vantagens e recursos que adquirem ao participar deles.
Outro momento importante na evolução do modelo participativo, mencionado por Szwako, foi o lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos III (PNDH), que incorpora e cita mais de 50 vezes a palavra “participe” e suas variações (participativo, participativa, participacionista etc.). Foi um documento orientado pelo modelo participativo. Assim, a despeito dos seus limites, a institucionalização do modelo participativo demonstrou uma tendência de controle reflexivo do Estado com uma ideia de accountability interno, além de incorporar funções dentro do círculo de construção de políticas públicas.
O conservadorismo e a disputa pelos espaços de participação social
Finalizando a sua palestra, Szwako destacou a ascensão do conservadorismo no país, a inovação que combinou a mobilização de rua com o ativismo digital e os desafios enfrentados no modelo participativo. Como mencionado pelo professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), atores da direita conservadora sempre estiveram dentro da disputa nos espaços de participação social. A novidade está em como o bolsonarismo mudou as estratégias desse grupo mesclando repertórios institucionais com ferramentas extrainstitucionais (tradicionalmente mobilizadas pela esquerda).
A inovação, portanto, viria do ativismo digital, a manipulação e articulação de recursos das plataformas digitais para propagar desinformação e negacionismo. Esses são os desafios que, na visão de Szwako, estão postos hoje para pensar o modelo participativo.
A participação social na mobilidade urbana de São Paulo
Após essa reconstrução histórica, Carolina Requena direcionou o debate para uma análise crítica das políticas de mobilidade urbana nas eleições paulistas. A professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) enfatizou que a mobilidade urbana é uma área de política pública dominada por decisões técnicas e com baixa participação social, reforçando desigualdades sociais e econômicas.
Requena explicou que a mobilidade urbana é uma área central ao se discutir a qualidade de vida dos cidadãos, especialmente para as pessoas que vivem nas periferias e longe do centro da cidade, demandando longos deslocamentos. Adicionalmente, ela reforçou que a emergência climática é uma camada já antiga nesse debate, sendo inclusive a razão pela qual foi instituído o rodízio de automóveis em São Paulo ainda nos anos 90.
A crise climática e a tecnocratização da mobilidade urbana
Ao destacar como a crise climática ainda não encontrou respostas adequadas nas políticas de mobilidade, Requena apresentou que a política de mobilidade possui uma governança dominada por agentes técnicos, pautados pela lógica de acomodação das demandas. São decisões, portanto, que não contam com a participação social, reservadas exclusivamente a corpos técnicos. Ou seja, mesmo sendo uma política que impacta centralmente a vida dos cidadãos, sobretudo os moradores da periferia, não há uma política de participação social.
Embora existam compromissos internacionais, como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que são essencialmente acordos de agenda de combate à pobreza, à desigualdade e à mudança global do clima, Requena menciona que as políticas implementadas em São Paulo têm tido pouco impacto prático. Olhando para a situação da mobilidade urbana, a professora percebe que há, na verdade, um sentido inverso: reforço das desigualdades, hierarquia consolidada do uso da cidade e emissão irrefreável do dióxido de carbono.
Mesmo quando pensamos em ações populares na mobilidade urbana, Requena observa que elas compreendem três dimensões integrantes da política de mobilidade: tarifa, insuficiência da oferta e injustiça distributiva. Ao resgatar o histórico dos movimentos sociais de ação direta, porém, ela identifica que a tarifa é a dimensão central de reivindicação. Dados apresentados pela professora mostram um peso desproporcional que o transporte público tem nos orçamentos familiares, representando aproximadamente 18% dos gastos. Ainda, uma pesquisa realizada em 2019 demonstrou que o valor da tarifa é tido como razão para a desistência de atividades essenciais na vida do cidadão: 50% desistem de visitar família e amigos; 45% desistem de atividades de lazer; 40% desistem de consultas médicas ou exames; 37% deixam de procurar emprego; e 24% faltam à escola ou universidade.
A sua análise, portanto, ofereceu uma dimensão prática dos atuais problemas enfrentados por São Paulo e pelos grandes centros urbanos do país. A ausência de participação social na formulação dessas políticas expressa a exclusão popular nas tomadas de decisão e como essa dinâmica contribui para a perpetuação das desigualdades. As manifestações de rua que ficaram conhecidas como Jornadas de Junho de 2013, por exemplo, foram o epicentro de uma série de protestos construídos ao longo dos anos 2000, mas que não tiveram acomodação na formulação das políticas públicas. As demandas populares, portanto, sempre ficaram de fora da arena de construção das políticas de mobilidade.
Desse modo, a participação social pensada nas políticas de mobilidade urbana é, na verdade, um “não dado”. O desafio está, assim, em viabilizar um modelo de governança que abra espaço à participação social. Para tanto, é importante rever a dominância técnica desses locais, abrindo espaço para a sociedade civil.
Uma agenda de democratização da cidade
O debate sobre a democratização da cidade revelou a complexidade e os desafios enfrentados para promover a participação social. As questões urbanas contemporâneas demandam um envolvimento mais significativo dos movimentos sociais e da sociedade civil nas decisões políticas, rompendo com a lógica da burocracia e tecnocratização que ainda opera nos espaços de formulação de políticas públicas. A questão da mobilidade urbana na cidade de São Paulo, trazida por Requena em sua palestra, exemplifica como as políticas públicas têm o condão de perpetuar desigualdades e injustiças.
Em síntese, as palestras de José Szwako e Carolina Requena proporcionaram uma visão abrangente sobre a institucionalização da participação social nos últimos 40 anos. Entretanto, ficou evidente como o atual modelo ainda carece de um diálogo mais aberto e inclusivo com a comunidade, um projeto que permita que cidadãos influenciem o planejamento urbano e construam cidades mais acessíveis e justas.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
- Doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: gabrielpinho@usp.br ↩︎
Referência imagética: Cartaz de divulgação da oficina de formação “Participação Social por uma Cidade mais Democrática: Desenhos e Desafios”.