Letícia Figueira Moutinho Kulaitis1
São inúmeros os exemplos recentes que demonstram como a violência política de gênero impacta profundamente a trajetória de mulheres que ocuparam ou ocupam posições de destaque no cenário político brasileiro2. Este fenômeno incide como um obstáculo significativo ao exercício pleno da representação política por mulheres, contribuindo para o enfraquecimento dos sistemas democráticos.
Espaço predominantemente masculino, o campo político no Brasil apresenta-se como “[…] lugar do privilégio masculino cis heteronormativo e branco, um lugar reservado na política formal/estatal” (Matos, 2022, p. 210). Ou seja, embora tenha autonomia para constituir suas regras e dinâmicas, o campo político é enraizado em um contexto social mais amplo. Os agentes que nele interagem e buscam acumular capital político reproduzem esquemas de percepção, de pensamento e de ação constituídos, por sua vez, em uma estrutura social atravessada pelo patriarcalismo e pelo racismo.
A violência política de gênero, neste contexto, pode ser considerada como instrumento de obstrução de acúmulo de capital político, pois é uma
[…] forma de controle e disciplinamento do acesso e permanência das mulheres no campo político parlamentar (das mulheres negras e indígenas e, enfim, de todas as formas de pertencimento social que trazem marcas que não são masculinas, brancas e cis heteronormativas) […] (Matos, 2022, p. 201).
Sem igualdade de gênero, a democracia não pode garantir a igualdade de participação. A violência política de gênero, exacerbada em contextos neoconservadores, torna-se uma barreira para a participação das mulheres na política (Biroli, 2020). Ao tomarmos a violência política de gênero como problema sociológico, tornamos explícita sua operacionalização como estratégia ortodoxa de manutenção do status quo no campo político e podemos caracterizar sua realização como entrave à participação de mulheres na vida política e à promoção da agenda da igualdade de gênero.
Sabe-se que, em perspectiva bourdieusiana, no campo, a doxa é o conjunto de pressupostos que são, ao mesmo tempo, cognitivos e avaliativos, cuja aceitação é fundamental para a pertença a este espaço social estruturado e relativamente autônomo. No campo político, observa-se que a ortodoxia ou visão predominante é de que a política é uma atividade de domínio masculino.
Sendo assim, a existência de mulheres parlamentares no campo político é percebida como um questionamento ou desafio de suas estruturas tradicionais:
Todos aqueles engajados no campo, defensores da ortodoxia ou da heterodoxia, partilham a adesão tácita à mesma doxa que torna possível a concorrência entre eles e lhes impõe seu limite (o herético continua sendo um crente que prega o retorno às formas mais puras de fé); ela impede de fato o questionamento dos princípios da crença, que ameaçaria a própria existência do campo. Os participantes não têm nada a responder quanto às questões sobre as razões da pertinência, do engajamento visceral no jogo, e os princípios que podem ser invocados nesse caso não passam de racionalizações post festum destinadas a justificar, tanto para si como para os outros, um investimento injustificável (BOURDIEU, 2001, p. 124).
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Entretanto, é necessário rememorar que o campo organiza-se como espaço de lutas e revoluções simbólicas pela constituição de novos instrumentos de percepção. Portanto, a luta política é, em essência, uma luta cognitiva pelo poder de impor a visão legítima do mundo social. Isso envolve a acumulação de capital simbólico, como notoriedade e respeitabilidade, que confere autoridade para definir o conhecimento legítimo sobre o sentido do mundo social (BOURDIEU, 2001, p. 226).
Ao abordar a violência política de gênero como um problema sociológico, a pesquisa que realizei visou contribuir para o debate sobre o fenômeno, esclarecer sua utilização como estratégia “ortodoxa” de manutenção do status quo no campo político e caracterizar sua atuação como um obstáculo à participação das mulheres na vida política e à promoção da agenda de igualdade de gênero.
Para isso, a pesquisa foi dividida em três etapas. A primeira abordou os avanços legislativos que buscaram, segundo Biroli (2020, p. 143), “generificar” o regime democrático brasileiro, em contraste com a posição subalternizada ocupada pelas mulheres no campo político como recém-chegadas e, por fim, a sub-representação feminina nos espaços democráticos de poder e decisão. Na segunda etapa analisei como a violência política de gênero impactou, com significativa influência do campo jornalístico, a trajetória da primeira mulher a exercer o cargo de presidenta da República, desde a campanha eleitoral até o golpe que a destituiu. Enfim, a terceira etapa apresenta histórias de violência política de gênero que ilustram e evidenciam os efeitos produzidos nas trajetórias sociais das mulheres que ingressaram no campo político.
As histórias de violência política de gênero exploram a trajetória de oito mulheres – Dilma Rousseff, Marielle Franco, Manuela D’Ávila, Érika Hilton, Áurea Carolina, Bruna Rodrigues, Daiana Santos e Benedita da Silva – ao longo de um período que começa com a Assembleia Constituinte no final da década de 1980 e se estende até 2022. Essas histórias foram selecionadas a partir da leitura dos relatos biográficos presentes na obra “Sempre foi sobre nós”, organizada por Manuela D’Ávila e publicada em 2022. As trajetórias foram escolhidas pela diversidade de violências que exemplificam e pelos diferentes momentos em que tais violências se manifestaram.
No contexto brasileiro, a ruptura do domínio masculino sobre o exercício do poder político foi recente em tempo sócio-histórico. Da conquista do direito ao voto feminino, em 1932, às mais recentes propostas de reserva de vagas de candidaturas por gênero e de estímulo à participação de mulheres candidatas na propaganda eleitoral, evidencia-se a pressão social por “generificar as democracias ainda que esse tinha sido igualmente um período [entre 1970 e os anos 2000] de reações” (Biroli, 2020, p. 143).
Não obstante, o acesso a posições formais na estrutura de poder não significa que se esteja, automaticamente, em posição de igualdade em relação a outros agentes que lá se encontram. No campo político, as mulheres são reconhecidas como agentes recém-chegadas. Na disputa pelo capital político, os homens adotam estratégias tradicionais para manter o status quo que os favorece, assegurando sua posição dominante. A posição ocupada pelas mulheres é, portanto, marginal e marcada pela subalternidade, cabendo a elas, como estratégia alternativa, a subversão do estado de coisas vigente (PETERS, 2020).
Após disputar sete vezes cargos públicos, Manuela D’Ávila destacou que, ao enfrentarem um processo eleitoral, as mulheres têm suas vidas privadas invadidas pela violência desde o início de suas campanhas:
É como se a nós, mulheres, fosse imposto, para seguirmos na vida pública, ter uma vida como a cigarra imortalizada por Mercedes Sosa, cantando ao sol depois de um ano embaixo da terra, como sobreviventes de uma guerra que não decidimos travar. Nós optamos pela vida pública, não por uma prova de resistência física e emocional sobre nossa vida privada (D’Ávila, 2022a, p. 11).
A violência política de gênero é, portanto, legitimada por sua naturalização como parte do processo eleitoral. Essa naturalização torna-se evidente ao observar que uma parte significativa da violência política sofrida pelas mulheres durante as eleições é institucionalizada, ocorrendo na relação entre mulheres e partidos políticos. Nesse contexto, os partidos dificultam a formalização de candidaturas femininas, forçam as mulheres a se candidatar a vagas sem chances reais de vitória ou as convocam para papéis secundários em chapas lideradas por candidatos homens (ONU Mulheres, 2021).
A sub-representação das mulheres nos cargos do Executivo e Legislativo, juntamente com a naturalização da violência política de gênero, revela que a democracia brasileira perde sua capacidade de representatividade e inclusão devido à imposição simbólica violenta do campo político como um espaço predominantemente masculino.
É importante destacar que os efeitos da violência política de gênero não são vivenciados de maneira uniforme por todas as mulheres parlamentares. Existem opressões que se interseccionam, e, dessa forma, mulheres negras, indígenas e pessoas LGBTQIAP+ que participam ativamente da atividade política sofrem múltiplas discriminações:
Se de fato fôssemos menos capazes, se realmente não entendêssemos nada de política, se não tivéssemos nada para contribuir com o debate social, certamente não haveria motivo para tanto pavor e incômodo. Mas é justamente o contrário. É justamente pelo fato de saberem que somos capazes de discutir o orçamento das cidades, dos estados e do país que podemos falar sobre saúde, cultura, educação ou qualquer outro tema relevante e que impacte a vida das pessoas, é por isso que eles ficam em pânico e querem nos tirar, a qualquer custo, da vida política. Trata-se, evidentemente, de uma recusa em dividir o poder. Com exceção das antigas e de algumas contemporâneas sociedades matriarcais, os homens estruturam um mundo deles e para eles, nos quais devemos ser coadjuvantes num roteiro escrito por eles. Nem preciso dizer o quanto isso é delirante. E que nossa presença na política institucional atrapalha essa fantasia (Hilton, 2022, p. 19).
Sob uma perspectiva interseccional, desigualdades de poder, racismo, sexismo e classismo se entrelaçam e impactam as vidas de mulheres negras que, como Marielle Franco, desafiam o campo político e representam outras mulheres igualmente pobres e racializadas.
A construção de um breve panorama sobre a operacionalização da violência política de gênero como estratégia ortodoxa de manutenção do status quo no campo político evidencia os seguintes efeitos produzidos por esse fenômeno no processo democrático: as violências física, moral, psicológica e sexual, além das ameaças e fake news, ameaçam e reduzem a participação das mulheres e das pessoas LGBTQIAP+ no campo político e os partidos políticos dificultam as candidaturas femininas impondo obstáculos adicionais.
O fortalecimento das instituições que promovam a igualdade de gênero e a resistência das mulheres é essencial para combater essa violência. Por sua vez, o exercício da atividade política pelas mulheres pode promover novas práticas e sistemas de crenças resultando na ampliação da diversidade de pensamento e de perspectivas no campo e desafiando as normas estabelecidas, constituindo-se, portanto, como potencial estratégia de ruptura com a ortodoxia.
As estratégias alternativas, que desafiam o domínio masculino e questionam a violência política de gênero como “norma” no campo político, como aquelas empregadas por Áurea Carolina, Anielle Franco, Benedita da Silva, Bruna Rodrigues, Daiana Santos, Dilma Rousseff, Erika Hilton, Manuela D’Ávila e Marielle Franco, terão como efeito o reconhecimento de novos corpos políticos, novas práticas e novos sistemas de crenças que ocuparão o campo político brasileiro.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
Referências bibliográficas
BIROLI, Flávia. Gênero, valores familiares e democracia. In: BIROLI, Flávia; VIGGIONE, Juan Marco; MACHADO, Maria das Dores. Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 135-187.
BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
D´ÁVILA, Manuela (org.). Sempre foi sobre nós: relatos da violência política de gênero no Brasil. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2022.
HILTON, Érika. Introdução a esta edição. In: D’ÁVILA, Manuela (org.). Sempre foi sobre nós: relatos da violência política de gênero no Brasil. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2022. p. 17-22.
MATOS, Marlise. Para saber mais: a violência sexista, racista e interseccional: mapeando conceitos da violência política contra as mulheres. In: D’ÁVILA, Manuela (org.). Sempre foi sobre nós: relatos da violência política de gênero no Brasil. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2022. p. 201-220.
ONU MULHERES. Cartilha de prevenção à violência política contra as mulheres em contextos eleitorais. Brasília, DF: ONU, 2021. Disponível em: https://bit.ly/4aDirDh. Acesso em: 2 jan. 2024.
PETERS, Gabriel. Bourdieu em pílulas (5): introdução à teoria dos campos. Blog do Labemus, [S. l.], 14 maio 2020. Disponível em: https://bit.ly/3FlLg8B. Acesso em: 20 abr. 2022.
- Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR, 2016). Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Londrina (UEL, 2023). E-mail: leticia.kulaitis@gmail.com ↩︎
- Para saber mais sobre histórias de violência de gênero no contexto brasileiro, confira o artigo no qual este texto se baseia: “Os Homens Estruturam um Mundo Deles e para Eles”: A Violência Política de Gênero. Mediações, Londrina, v. 29, n.1, p. 1-20, jan.-abr. 2024. ↩︎
Referência imagética: Senado Federal. Autor: Geraldo Magela. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/49143546@N06/53039327670/>. Acesso em 31 jul. 2024.