Nicolas Bortolatto Garcia Costa[1]
08 de novembro de 2024
Este texto apresenta um resumo expandido do artigo de mesmo título publicado na obra Sociologia & História do Constitucionalismo Brasileiro, organizado por Lucas Fucci Amato e Rodrigo Marchetti Ribeiro. A obra encontra-se disponível aqui.
O incentivo à democratização em diversos países é um fenômeno relativamente recente na história política. Conforme relata Huntington (1991), entre 1974 e 1990, houve um crescimento no número de regimes democráticos ao redor do globo. Entretanto, esse processo, longe de ser linear[2], é resultado de diversas tensões dentro de cada democracia. Assim, apesar de alguns países se democratizarem, líderes autocratas (eleitos via voto popular) também começaram a surgir nesses regimes. Esse fator provoca uma corrosão no modelo democrático vigente, permitindo que o autocrata se aproprie do poder. O modo escolhido contemporaneamente para isso não envolve mais golpes repentinos, como no passado, mas sim, ao assumir o poder, o autocrata promove uma erosão das bases institucionais e realiza a ampliação gradual de seus poderes.
Desta maneira, com diversas estratégias para o autocrata disfarçar suas intenções autoritárias, esses países sofrem uma erosão constitucional (democracy backsliding), podendo desembocar gradualmente em uma autocracia ou ditadura (cf. GINSBURG; HUQ, 2018, p. 43 e ss). Especificamente, dentre diversos processos[3] que provocam uma erosão gradual[4] nos arranjos institucionais democráticos está a tensão entre a ala política e a ala burocrática. As instituições democráticas, possuem, por um lado, agentes burocráticos que ingressam no serviço público via concurso, mas, por outro lado, agentes (normalmente de chefia, mas possivelmente em toda máquina pública) indicados politicamente, que podem mudar a cada eleição. Esse processo é comum em democracias. Porém, com a eleição de autocratas, há uma tentativa de utilização da máquina pública para propósitos pessoais e/ou escusos (como ignorar o dever legal de certas funções para propósitos políticos), gerando uma chamada ordem manifestadamente ilegal. Tal fenômeno contribui severamente para a degradação da democracia.
Um dos exemplos desse processo é o que ocorreu no Ministério do Meio Ambiente (MMA) do Brasil durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Sob a chefia de Ricardo Salles, um político que tem um passado obscuro com ruralistas dotados de uma mentalidade extrativista arcaica, foram promovidas diversas ações no sentido de gerar instabilidade institucional, desmantelamento dos órgãos de fiscalização, e aumento do desmatamento. Afinal, o que de fato ocorreu de maneira mais específica? Dessa maneira, o objetivo deste trabalho é analisar a erosão institucional provocada pelo governo Bolsonaro no MMA e a tensão provocada pela ala política deste governo ao constranger a burocracia com interesses políticos duvidosos.
Como pressuposto para cumprir esse objetivo, cabe ressaltar o que se entende como democracia e burocracia neste trabalho. A democracia é classificada como uma forma de governo composta por três níveis: eleições livres e periódicas com sufrágio universal; direitos básicos como liberdade de expressão, necessários para o processo democrático; e o rule of law ou Estado de Direito (condições da legalidade, tais como generalidade, previsibilidade, etc. GINSBURG; HUQ, 2018, p. 9; 14). Por sua vez, a burocracia é entendida a partir do conceito weberiano clássico, que se caracteriza por um sistema de dominação pautado em uma formalidade que detém racionalidade instrumental (abstrato, previsível, calculável) e orientação para fins de Estado. A concepção de Weber de burocracia se contrapõe à materialidade, que é composta por ações subjetivas e suscetíveis a influências externas à racionalidade formal (BARROS; DINIZ; LOTTA, 2023, p. 157; ARGUELLO, 1997, p. 172; 147-152). O conceito de burocracia é interessante para compreender a erosão do sistema democrático pois as ações do agente político autoritário são arbitrárias, contrariando a lógica racional-formal.
Tendo explicitado estes dois conceitos, cabe ressaltar os casos concretos de democracy backsliding durante o governo Bolsonaro a serem estudados. São eles: (a) militarização e esvaziamento técnico do MMA; (b) assédio institucional feito pelo poder político em relação à área técnica; (c) diminuição de participação popular. Esses casos contribuem para o backsliding de maneira interrelacionada, principalmente em três aspectos: (i) fere-se o rule of law necessário para uma democracia constitucional; (ii) os órgãos políticos provocam uma tensão com a burocracia, gerando apagamento institucional; (iii) há o cerceamento de participação da sociedade civil. Desta maneira, parte-se para a exposição dos casos concretos, seguidos das contribuições para a erosão democrática.
Em primeiro lugar, a militarização do MMA não é um aspecto exclusivo desse órgão, porém tal fenômeno contribuiu para o assédio e desmonte institucional. O nomeado para chefiar a pasta do MMA foi Ricardo Salles, um político que tem ligações com a arcaica Sociedade Rural Brasileira, ex-secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo e condenado (e posteriormente absolvido em segunda instância) por improbidade administrativa ao fraudar o plano de manejo da área de proteção da várzea do Tietê[5]. Em seu mandato, diversos órgãos dentro do MMA foram extintos ou transferidos para outros Ministérios, e os servidores públicos foram substituídos por militares sem competência técnica. Além disso, o MMA e o Ibama sofreram um desmonte institucional, perdendo parte de seus servidores. Diversas chefias foram exoneradas e substituídas por militares sem expertise ambiental.
Em segundo lugar, há o assédio institucional, prática constante no governo Bolsonaro em diversas áreas e, especificamente, no Meio Ambiente. Esse consiste na relação abusiva que a ala política (normalmente em cargos de chefia, que são comissionados e indicados pelo governo eleito) pratica com a burocracia (ala de Estado, com servidores de carreira, que agem diante do cumprimento legal de suas funções). O assédio gera perda da memória institucional, estrangulamento das funções do órgão público afetado, afastamento e perseguição dos servidores e adaptação aos interesses do líder autocrata e seus capachos.
Dentre algumas ações concretas, destacam-se diversos discursos em tom ameaçador de Ricardo Salles e seus asseclas contra servidores públicos (com a possibilidade de instituição de PAD), seguidos de exoneração de cargos de chefia e restrição de participação de servidores em atos ministeriais. Além disso, instituiu-se a chamada “lei da mordaça”. Isto é, retirou-se a possibilidade de os servidores proferirem críticas à ala política (uma vez que eventuais pedidos de manifestações e entrevistas de servidores deveriam ser encaminhados à assessoria de comunicação do MMA, em vez de serem solicitados diretamente pelos servidores). Também, outra ação é a paralisia de fiscalização do órgão, com obstrução do trabalho dos servidores via portarias que retiravam dos quais a discricionariedade dos servidores e submetiam seus atos à autorização do próprio Salles e seus soldadinhos de chumbo. Não obstante, Salles constantemente exonerou servidores que cumpriam seu trabalho de fiscalização, por meio de ameaças, por vezes físicas, e acompanhado de algum assessor seu.
Em terceiro lugar, outra ação praticada no MMA que contribuiu para a erosão democrática foi a eliminação da participação popular no MMA. Os organismos governamentais utilizados para discussão de assuntos ambientais foram ou fechados, ou tiveram a participação popular de servidores públicos removida. Outrossim, alguns projetos governamentais foram implementados sem autorização ou concordância da população, especialmente dos indígenas afetados pela exploração de suas terras.
Assim, tendo analisado os casos concretos ocorridos no MMA, passa-se à análise das contribuições para a degradação democrática no governo Bolsonaro (vide principalmente Salles, no MMA). Uma das contribuições para o backsliding é a violação do rule of law. O rule of law é um princípio usado para distinguir práticas legítimas de ilegítimas em um sistema de normas. Um sistema sem o rule of law seria equivalente àquela frase cunhada por Getúlio Vargas: “Para meus amigos, tudo; para meus inimigos, a lei”. Para o correto funcionamento das instituições, é preciso que elas sejam neutras em seu aspecto formal (GINSBURG; HUQ, 2018, p. 13). Além disso, apenas o aspecto formal não é o único necessário. O rule of law comporta elementos procedimentais de tratamento digno (dignidade), e isso implica tratar os cidadãos como sujeitos capazes de se autodeterminar e agir dentro do espaço político. Por isso Waldron afirma que há cinco aspectos necessários em uma concepção de direito (que respeite o rule of law) para cumprir tal aspiração: cortes, normas gerais e públicas, positividade, orientação para o bem comum e sistematicidade (coerência/integridade dworkiniana) (WALDRON, 2008, p. 18-39).
O rule of law na pasta do Meio Ambiente foi ferido, pois o bloqueio da participação popular não garante normas gerais e públicas. Além disso, o assédio institucional retira a generalidade necessária em atos legais e perpetua diversos comandos sem lastro de positividade. Tais atos remontam à frase anteriormente citada de Getúlio Vargas, gerando formulações legais ilegais que não tratam os cidadãos com dignidade.
Outro ponto a ser ressaltado é a tensão gerada entre a ala política, alinhada aos interesses do autocrata, e a burocracia. A utilização da burocracia pela ala política gera apagamento da expertise institucional acumulada ao longo do tempo e a perda de neutralidade, provocando um crescimento de aspectos materiais (no sentido weberiano) que, por sua vez, aumentam a arbitrariedade no sistema político. No MMA, o efeito disso foi o impedimento dos servidores cumprirem sua função institucional, sendo constantemente ameaçados e impedidos de fazê-la. Ainda, houve um contínuo processo de desmonte institucional que, por vezes, é associado a uma ideologia neoliberal (principalmente de autores como Milton Friedman).
Por último, há o cerceamento da participação civil, que faz com que o nível da democracia decaia, uma vez que há um menor controle na produção das políticas públicas e nas ações governamentais. Isso gera uma distorção das práticas e ações do governo, já que elas ou não são contestadas ou são impedidas.
Portanto, este trabalho procurou argumentar sobre a tensão gerada pelo desmonte institucional realizado no Ministério do Meio Ambiente durante o governo Bolsonaro. Dentre tais ações concretas que provocaram uma erosão qualitativa na democracia brasileira estão a militarização e o desmonte institucional do MMA e de suas políticas públicas, o assédio institucional constante, paralisando as ações dos servidores e o trabalho institucional do ministério, e a restrição da população civil e dos servidores de carreira nos órgãos de participação popular. Tais ações concretas provocaram uma afronta ao rule of law, geraram um apagamento institucional provocado pela perseguição constante dos servidores e, por último, cercearam a participação da sociedade civil.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
Referências Bibliográficas
ARGUELLO, Katie Silene Cáceres. O ícaro da modernidade: Direito e Política em Max Weber. São Paulo: Acadêmica, 1997.
BARROS, Amon; DINIZ, Ana; LOTTA, Gabriela. “Scorched-Earth Politics and the Erasure of Memory by Far-Right Populists”. In: PEREIRA, Anthony (ed. by). Right-wing populism in Latin America and Beyond. New York; London: Routledge, 2023, p. 155-171.
FUKUYAMA, F. O fim da História e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz Z.. How to save a constitutional democracy. Chicago; London: The University of Chicago Press, 2018.
HUNTINGTON, Samuel. The third wave. Democratization in the late twentieth century. Norman; London: University of Oklahoma Press, 1991.
WALDRON, Jeremy. “The concept and the Rule of Law”. New York University School of Law. Public Law & Legal Theory Research Paper Series Working Paper no. 08-50, 2008, p.1-61. Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=1273005>. Ou In: Thoughtfulness and the rule of law. Cambridge, Mass.; London, England: Harvard University Press, 2023. p. 35-74.
[1] Mestrando em Direito pela Universidade de São Paulo (área de concentração Filosofia e Teoria Geral do Direito). Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (Mackenzie). Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Bolsista CAPES. Lattes: <http://lattes.cnpq.br/8211275912919393>. ORCID: <https://orcid.org/0000-0002-0352-2010>. E-mail para contato: nicolasbortolatto@gmail.com; nicolas.costa@usp.br.
[2] Alguns teóricos como Francis Fukuyama pensavam que, após a queda do muro de Berlin, a aliança entre Capital e Democracia seria hegemômica (FUKUYAMA, 1992, p.80).
[3] Outros processos incluem a tomada e aparelhamento de diversos órgãos governamentais, demissão e perseguição da oposição, por exemplo.
[4] “Por backsliding entendemos a erosão incremental de instituições, regras e normas democráticas que são resultados de ações de governos devidamente eleitos, tipicamente governados por um líder autocrata. Embora o backsliding pode acabar em um regime autoritário absoluto, há um número de casos onde houve um retrocesso. A democracia foi consumida por ela mesma.” Tradução nossa.“By backsliding we mean the incremental erosion of democratic institutions, rules and norms that results from the actions of duly elected governments, typically driven by an autocratic leader. While backsliding may stop short of outright authoritarian rule, a number of cases did in fact revert. Democracy was consuming itself.” (HAAGARD; KAUFMAN, 2021, p.1).
[5] https://oeco.org.br/noticias/ricardo-salles-foi-condenado-por-fraude-em-plano-de-manejo/ e https://www.migalhas.com.br/quentes/341241/tj-sp-absolve-ricardo-salles-em-caso-de-improbidade-administrativa.
Fonte imagética: Agência Brasil. Fachada do Ministério do Meio Ambiente. 19 ago. 2020. Fotografia de Marcello Casal Jr./Agência Brasil. Acesso em: 30 out. 2024.