Gustavo Ceneviva Zuccolotto[1]
18 de dezembro de 2024
A ciência política, ao se consolidar enquanto área do saber científico na modernidade, autonomiza-se das categorias que até então embasavam a reflexão sobre a vida em comunidade e a autoridade (arché) nas cidades antigas. Essa reflexão era chamada “filosofia prática”, ciência que integrava os campos da ética e da política. Essa filosofia tinha como conceito nuclear a “ação política”, princípio relacionado tanto à ação (práxis), quanto à natureza política do ser humano, ou seja, enquanto cidadão. Como parte de um movimento maior de legitimação científica, a ciência política, ao longo do século XX, constitui seu objeto próprio de estudo, o campo de disputa pelo exercício legítimo do poder, o Estado moderno, antes tratado nos termos da comunidade política ou da cidade (pólis).
Busco traçar, em linhas gerais, algumas condições que distanciam a ciência política antiga da moderna em sua narrativa teórica, elegendo conceitos críticos que poderiam se inspirar em um ideal de matriz aristotélica mais abrangente e devedor às coisas humanas do que à técnica, ao caráter político-social que ao institucional, à consideração do poder efetivo do acaso, das paixões, das crenças e doutrinas sobre a prática do poder, enfim, à soberania do particular sobre o universal no fazer político. Tais pontos, defendo, caracterizam tanto uma perspectiva descritiva mais realista dos regimes políticos, quanto uma implicação normativa orientada ao bem comum, fundamentada em um ideal de justiça mais humanista, não hegemônico, constitucional, abrangente e sistêmico.
No artigo intitulado “Autonomia da Ciência Política”, o emérito constitucionalista brasileiro, professor Paulo Bonavides, analisa a dificuldade de estabelecer definições precisas e consensuais na ciência política, visto que nessa “tudo ainda é polêmico e movediço, desde o método até o conteúdo, desde o nome até a determinação dos limites dessa província de conhecimento social” (1967, p. 5-6), incluindo o conceito central de “Estado”.[2] Max Weber, autor da clássica definição liberal de Estado com base no princípio do monopólio legítimo da violência, encarna o problema da relação Estado-sociedade na figura do político profissional, aquele que faz da política sua fonte de subsistência material, reproduzindo os vícios eleitorais das democracias de massas.
Sendo o formulador da “ética da responsabilidade”, Weber ainda busca conciliar a capacidade do político de calcular os meios e se adequar às situações particulares sem renunciar ao compromisso que este deve ter com valores – que aqui considero como concepções de “bem”. Deve mesmo, se obrigado, comprometer seus interesses particulares, mas jamais agir contrariamente a esses princípios (Weber, 2015, p. 72). Enquanto o Estado se caracteriza pelo monopólio legítimo do poder, ou seja, por sua alta probabilidade de produzir obediência, o bom político é aquele que não deve obedecer a uma paixão, como o medo ou a busca de prazer, mas apenas ao próprio gênioe razão.[3] Ele será assim vocacionado a defender sua crença no bem, seus valores sobre a melhor vida possível, que, na teoria aristotélica, se identifica com seu próprio desejo natural, o bem intrínseco e final da felicidade (eudaimonía), realização maior de uma vida humana.
Assim como esta, multiplicam-se discussões sobre as instituições e agenciamentos que perpassam a estrutura de poder do Estado, sua “porosidade” e segmentação própria, sua maior ou menor autonomia em relação ao “social” etc. Apesar dos esforços sempre renovados para conferir autonomia à ciência política por meio da definição conceitual, ainda hoje, talvez mais que nunca, vislumbra-se a necessidade de uma concepção teórica que seja capaz de abordar as questões humanas de forma abrangente e integrada, considerando formas alternativas de participação política na totalidade sistêmica implicada na relação Estado-sociedade.[4] Como reconhece Bonavides, a ciência política não pode ser apartada de sua dimensão “doutrinária”, que deve, antes, ser justificada[5]:
A concepção que temos da Ciência Política (…) [é] aquela de fundo aristotélico, relativa no âmago a um estudo de instituições vivas e concretas, sem cairmos, todavia, no empirismo anglo-saxônico, que marginaliza a substância doutrinária das formas políticas. Em verdade, a carência de compreensão dessa substância viria obscurecer o bom entendimento da realidade do poder, em nosso século (1967, p. 6).
No século XX, pensadoras como Hannah Arendt já tentavam restabelecer o lugar da ação política no debate acadêmico. Arendt, por exemplo, trouxe novo fôlego à teoria ao operar com distinções conceituais modernas para compreender a nova realidade que se apresentava diante da experiência totalitária, revelando o futuro autoritário e nebuloso no qual parecia desembocar o tão celebrado “progresso” das sociedades ocidentais.[6] Tais tentativas levaram a diagnósticos e proposições engenhosas, bem como a contradições inescapáveis, risco inerente ao processo teórico. Por meio de Arendt e outros autores, nota-se o reavivamento de debates vinculados à “filosofia política” em diferentes vertentes na segunda metade do século XX, que, em seus desdobramentos próprios, acabaram por problematizar a “ciência legítima” da época.
Apesar da importância do pensamento de Arendt para o reconhecimento de uma nova realidade do poder na contemporaneidade[7], não podemos tomá-lo como modelo da ciência política que buscamos. Mesmo contribuindo para o reavivamento da filosofia prática em nosso tempo, a autora opera sob a lógica tipicamente liberal da separação entre “política” e “sociedade”, ignorada pelo pensamento antigo.[8] Alguns tentaram identificar na distinção entre a “comunidade familiar” e “política” essa mesma diferença, representada por ideias que, mesmo possuindo outras características, são de algum modo mantidas no pensamento moderno, como a de “propriedade”. No entanto, ainda que a “sociedade civil”, entendida como o conjunto das redes familiares, empresariais e de outras associações intermediárias, possua suas funções próprias, ela também está submetida à lei política, pois apesar de sua geração material anterior é posterior a esta enquanto causa final.
O caráter superior (kuriostátou) (Pol. I.1 1252a5) da política e arquitetônico (architetonikês) da ciência política (EN I.2 1094b4-10) implica que o Estado deva, em favor do bem comum, intervir nas associações menores ao ordenar o sistema comunitário como um todo, nas diferentes funções que, por sua anterioridade formal (próteron) (Pol. I.2 1253a25-26), adquirem materialidade e sentido próprio enquanto partes de um mesmo organismo. Essa necessidade de integração e coordenação das diferentes funções do sistema social é da própria natureza da política e da busca pelo bem comum, estando longe de significar “autoritarismo” ou “totalitarismo”, como argumentaram alguns. A felicidade almejada, por sua vez, é “uma atividade da alma conforme a virtude” (EN I.71098a16-17), ou seja, uma ação livre e digna de escolha pelo agente que se realiza na vida em comunidade e reflete o mérito próprio do valor moral, posto que a virtude se torna ao mesmo tempo o melhor produto e produtora do bem comum.[9] Tomando a ação virtuosa como o elo capaz de superar as dissensões modernas entre “Estado” e “sociedade”, “ética” e “política”, “agente” e “estrutura”, compreendemos o encadeamento de um ciclo de mútua determinação entre os direitos individuais e sociais, ou, em termos mais apropriados, o bem do indivíduo e da comunidade que, em última instância, são o mesmo.[10] Esse é o pressuposto teórico básico de inclusão e integração das relações entre os bens humanos que devemos partir ao buscarmos um horizonte normativo para a ciência política (Pol. IV.1 1288b7-9).
O conceito de bem comum (súmpheron koinê) que ressoa na Política como uma qualificação vaga atribuída à finalidade natural da comunidade política, que, em última análise, converge para a felicidade dos cidadãos, perdeu seu sentido forte na modernidade. A visão liberal, por exemplo, entende o bem comum como uma mera “soma de interesses individuais”, presumindo que esses “interesses” sejam autônomos entre si. No entanto, o bem comum não pode se traduzir em uma concepção meramente utilitária, como “visar a máxima felicidade ao máximo de cidadãos”, algo que abriria espaço para a possibilidade de comprometer o interesse de uma parte em favor de outra. Ao contrário, justamente por resultarem no mesmo bem, a finalidade natural do todo não deve ser contraditória à felicidade das partes[11], mas nos leva a pensar no bem de cada uma delas de forma completa, inseridos em um organismo ou sistema, somado, por fim, aos interesses próprios desse sistema que influem sobre o delas sem, contudo, tornarem-se bens na cadeia de razões práticas de um cidadão enquanto agente.[12] Isso porque a comunidade nada mais é do que um conjunto de atividades que atingem certa regularidade, regidas por tradições, sentimentos, crenças e práticas comuns cuja experiência dialógica acaba por formar a identidade dos indivíduos. Essas atividades devem ser pensadas em suas relações múltiplas que acabam por sustentar uma dinâmica própria, um modo particular de buscar o bem pelos seres humanos que partilham de um mesmo território, línguas, cultos, costumes, alianças, relações de amor, por condição, e justiça, por necessidade.[13]
A comunidade política não pode ser concebida apenas como uma espécie de contrato que garanta o “mal menor”, com o único dever de zelar pelos acordos e “direitos mínimos”, garantir a paz interna e evitar que os cidadãos cometam injustiças mútuas. A abrangência da política implica que ela seja o maior instrumento para a felicidade geral, tornando todos os cidadãos responsáveis pela justiça política mediante considerações morais mútuas (Cooper, 1993, p. 314). Se a felicidade não pode ser imposta, posto que o próprio agente deve buscar o bem, também o Estado não pode se eximir de fomentar políticas que a promovam por meio do incentivo à justiça política, postura que vai além da mera preservação da ordem e da paz. Ao mesmo tempo, em uma concepção que até poderia lembrar uma posição liberal, mas que na verdade parece visar outros fins que não a “salvaguarda do indivíduo”, Aristóteles afirma que serão melhores as leis capazes de “não atrair ressentimentos para fazer o bem” (EN X.9 1180a24-25). Isso não implica, no entanto, que o legislador se abstenha de intervir onde deve tendo em vista o bem comum, mas que vise primeiramente fomentar bons hábitos através da educação do que a coerção e o medo.
Nesse sentido, a autoridade política é legítima apenas quando os cidadãos governados são igualmente tratados na condição de “livres”, sem autoritarismo, o qual resulta do abuso do poder e de seu uso para “favorecimento” da parte governante em detrimento do comum. Essa autoridade deve observar o todo, pensando o bem de forma abrangente e interligada, pois tem em vista a “máxima felicidade dos cidadãos”. Assim, a finalidade de um não está desvinculada da de outro, tal como a das minorias não estão da das maiorias e vice-versa; do mesmo modo se dá em relação à existência mesma do regime político que sustenta a unidade de todos os vínculos comunitários. Ainda que essa relação causal seja complexa, podendo estar mais ou menos sujeita a diferentes mediações, elas devem ser entendidas como uma categoria do bem na vida política, sendo a felicidade própria de cada cidadão igualmente considerada na racionalização sempre renovada do bem comum.
Se, portanto, cabe à ética investigar a felicidade ou a melhor vida possível, a questão norteadora da ciência política será o melhor regime possível, ou seja, aquele mais capaz de realizar o bem comum para um determinado povo. Aristóteles afirma que, para isso, não basta conceber o melhor regime em absoluto, como uma combinação de ideias abstratas, mas justamente o melhor regime que seja mais comum à maior parte das cidades[14] e, nesse sentido, útil ao legislador que almeja o bem comum, tal como a ética é útil para quem busca o bem humano. Assim, a ciência política deverá analisar tanto os princípios naturais da comunidade política, de aspecto normativo, quanto seu aspecto descritivo: as funções particulares das relações de autoridade, as classes dominantes, a extensão da cidadania, os usos do poder, suas intenções, métodos, formas de obediência e resistência, as regularidades e peculiaridades das ações políticas, o meio em que se dão etc. Desse modo, caberá ao legislador conhecer essa ciência e levar em conta os diversos aspectos que constituem a experiência humana que tem como referência, dos costumes dos cidadãos ao substrato material da cidade que serão integrados em vista da finalidade natural.[15]
Considerando essa concepção abrangente de ciência política, Aristóteles adverte sobre a dificuldade (aporía) de estabelecer no que ela consiste e, ao mesmo tempo, da necessidade de embasar as relações de igualdade e desigualdade em termos universais (Pol. III.12 1282b21-22). Esse embaraço nos leva, assim, a diversas possibilidades de caminho, pois a igualdade será concebida de diferentes formas, contanto que, em termos políticos, promovam igualmente a liberdade de todos. Assim, liberdade e igualdade são conceitos que se determinam mutuamente, regulados por uma compreensão ampla da justiça política – como nomeia o próprio Aristóteles, haplôs dikaîon, ou seja, absoluta ou sem qualificações – que deve fazer de cada cidadão efetivamente livre, capaz de servir o seu próprio desejo de felicidade pelo bem comum por meio da alternância entre obedecer a lei – tomada como virtude básica do cidadão – e, se possível, participar na autoridade política.[16] Com isso, poderá nutrir as atividades intrínsecas ligadas ao ócio, como a arte, a política e a filosofia, condição maior da liberdade, posto que incondicionado pela necessidade material. Deste modo, a liberdade e, portanto, a felicidade, tornam-se possíveis apenas pela existência da justiça política dentro da unidade constitucional de um sistema caracterizado pela cooperação e suficiência máxima de bens (Pol. I.2 1252b27-30).
Espero assim ter sustentado, por meio de conceitos oriundos da filosofia prática aristotélica “traduzidos” para o nosso tempo, um sentido forte para o “interesse público” que aqui tomo como equivalente à ideia de bem comum. Somente ao evidenciar o papel natural que a autoridade política, hoje representada pelo Estado moderno, cumpre no desenvolvimento e promoção do bem humano completo, poderemos defender um sentido forte e verdadeiro, nos termos mais radicalmente humanistas – considerando o desenvolvimento pleno das capacidades naturais juntamente a função particular exercida no interior de um sistema particular de cultura -, do interesse público em contraposição a ideologias inumanas que afetam a política e, consequentemente, a felicidade dos cidadãos.
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Bibliografia
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[1] Mestre em Ciência Política, bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: gustavocene@gmail.com
[2] Em sua obra “Ciência Política”, ainda afirma que “até mesmo a expressão Estado, ao redor da qual se levanta vastíssima e respeitável literatura já centenária, trazendo o selo de contribuição monumental de afamados pensadores e filósofos, não pôde forrar-se ao círculo vicioso de incertezas e objeções, quanto à determinação exata do significado de que se reveste” (BONAVIDES, 2000, p. 36).
[3] A dimensão política, portanto, é aquela em que a palavra (lógos) deve ser “a chave de toda autoridade (…) o meio de comando e de domínio sobre outrem”. (VERNANT, 2002, p. 53).
[4] Como conclui Bonavides, em seu artigo “Autonomia da Ciência Política”, “Na Ciência Política de nosso século, o que há agora de mais urgente não é a tarefa simplesmente pesquisadora a que se votam sobretudo os especialistas anglo-americanos, mas o trabalho de síntese e unificação, em tempo já de fazer e a que se mostram algo relutantes e indiferentes, senão hostis, inumeráveis cientistas americanos, perdidos na fragmentação da pesquisa e impotentes por isso mesmo para oferecer uma concepção global, que se reclama, e cuja imperiosidade urge reconhecer. Descurá-Ia significaria perder o ensejo de emprestar à nossa matéria foros científicos incontrastáveis, à altura do nome de que antecipadamente – e não pretensiosamente como chegam alguns a afirmar – se auto-investiu, dando a si mesma um crédito de legitimidade, cuja confirmação todos os estudiosos aguardam já com manifesta impaciência.” (1967, p. 12).
[5] “Se não professa o dogma político, nem abraça com calor religioso artigos de fé invioláveis, nem por isso o cientista político há de furtar-se, em matéria institucional, à definição coerente de uma posição doutrinária, que venha marcar, explicar e justificar cada passo de sua obra” (BONAVIDES, 1967, p. 7).
[6] Em oposição às concepções teóricas da ciência política moderna e da filosofia analítica anglo-saxônica, que descartava a possibilidade de uma ética fundada no conhecimento científico, há, por volta dos anos 1960 na Alemanha, aquilo que Enrico Berti chamará de um “renascimento da filosofia prática”, representado por nomes como Hannah Arendt, Leo Strauss e Eric Voegelin (BERTI, 1997, p. 225).
[7] No caso, o “totalitarismo”, forma de dominação que tem como princípio a organização das massas após o colapso da sociedade de classes. Sobre isso, ver As Origens do Totalitarismo (2013).
[8] A distinção entre a esfera social e política é teorizada no capítulo segundo de A Condição Humana (2007).
[9] “a comunidade política existe graças às boas ações, e não a simples vida em comum.” (Pol. III.9 1281a3-4).
[10] “Aristóteles se recusa em escolher entre estruturas políticas e o caráter individual, ou, colocando de outro modo, entre política e ética. Ele insiste, ao invés disso, em ambos. Aristóteles é uma fonte especialmente prolífica em virtude do seu entendimento único de atividade – a qual inclui os afazeres cotidianos juntamente a prática e administração da propriedade, justiça e lei – e ao papel chave que ele atribui à atividade, energéia, na formação do caráter individual e das estruturas políticas” (FRANK, 2005, p.3, tradução nossa). Ver EN I.3 1095a15-17, Pol. III.6 1278b23-24 e VII.2 1324a5-8.
[11] Dado que os cidadãos são as “partes” da comunidade política. Pol. III.1 1274b39-40.
[12] Pol. VII.9 1329a19. Miller consagra a divisão entre interpretações mais “holísticas” e “individualistas” do bem comum aristotélico, situando-se, ele mesmo, como um defensor da visão “individualista moderada”. No entanto, questionamos se essa distinção moderna seria mesmo válida para pensar o conceito que, conforme o próprio Aristóteles, se integra ao bem individual no bem humano. Sobre isso ver MILLER, 1995, p. 201-204.
[13] “em toda comunidade parece haver alguma forma de justiça e de amizade” (EN VIII.9 1159b25-26).
[14] “[é] evidente que o melhor regime será forçosamente aquele cuja ordenação possibilite a qualquer cidadão realizar as melhores ações e viver feliz.” (Pol.VII.2 1324a23-25).
[15] Conforme observa Nussbaum (1987, p. 49), o aristotelismo enfatiza, ao contrário da maior parte das éticas helenistas que também se debruçaram sobre o problema do autogoverno, a dificuldade de controle e satisfação dos desejos corporais, as condições materiais e institucionais na constituição do próprio desejo e pensamento humano.
[16] Considerando a definição ampla de “cidadão” como aquela própria das democracias. Pol. III.1 1275a22-23.
Referência imagética: Wikimedia Commons. Athènes: les Caryatides sur l’Acropole. Fotografia de Harrieta171, 21/01/06. Disponível <aqui>. Acesso em: 15 dez. 202