Quem Estaria por Trás de um Golpe em 8 de Janeiro de 2023 e do Assassinato de Lula, Alexandre de Moraes e Alckmin: Bolsonaro ou os Militares?
Entrevista com Piero Leirner: Professor Titular do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de São Carlos-UFSCar. Organizador com Celso Castro do volume Antropologia dos Militares: reflexões sobre pesquisa de campo, ed. FGV, 2009, e autor do O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida: militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica, ed., Alameda, 2020.
Entrevistador – Ronaldo Tadeu de Souza: Pós-Doutor pelo Departamento de Ciência Política da USP e Pesquisador do Cedec. Membro do Comitê Editorial do Dicionário Marxista das Américas e do Conselho Editorial da Práxis Literária Editora.
1) Boletim Lua Nova-Cedec:
Você é um dos principais pesquisadores críticos dos militares no Brasil. Com base em seus estudos, quem realmente estaria por trás de um possível golpe em 8 de janeiro de 2023 e do assassinato de Lula, Alexandre de Moraes e Alckmin: Bolsonaro ou os militares?
Piero Leirner:
Inicialmente, quero agradecer por esta conversa! E já deixar registrado que discordo do adjetivo “principal”, mas certamente simpatizo com o “crítico”, que tomo pelo sentido analítico, associado a uma posição experimental, ou “experiencial” própria de quem pretende tratar a ação política recente dos militares a partir de um viés etnográfico. Uso essa noção de ação política propositalmente, por dois motivos: o primeiro diz respeito ao fato de que aquilo que podemos conceber como “pensamento militar”, sua cosmologia, conceitos, léxico, doutrina, é algo que visa a conversão instantânea de ideias em ação. O segundo motivo, que procurarei desenvolver mais ao longo dessa conversa, é porque esta ação em sentido amplo é na política, se infiltra nela e produz uma simbiose dissimulada. E isso tem tudo a ver com, e como, esse golpe pode ser analisado. É claro que se estamos falando nesse fundamento, digamos prático, daquilo que militares elaboram, precisamos levar bem a sério o fato de que encontrar mensagens, rascunhos, rabiscos, planos de um golpe, assassinatos, insurgência etc. As coisas não estavam lá à toa, isso deveria se converter em algo. Mas o que é esse algo é um ponto complicado.
Eu não tenho muita dúvida que golpes e conspirações são “estruturais” na mentalidade dos militares. Estão normatizados e normalizados em sua rotina, inculcados como feitos gloriosos, mitológicos e salvacionistas nas academias e escolas, mas também em ordens do dia e na sociabilidade da assim chamada “família militar”. Porém, no meu entendimento, tudo isso só pode ser concebido como um desdobramento, ou até mesmo uma função, da guerra por outros meios. Eu tendo um pouco a resistir à interpretação de que essas coisas só acontecem por lacunas ou demandas exteriores. Golpes e conspirações tomam essa forma entre nossos militares porque eles sempre se direcionaram para perceber as ameaças “do mundo” mais como domésticas do que como exteriores. Nesse ponto há duas confusões ou hibridismos em seu pensamento: em primeiro lugar eles transmutam aquilo que imaginam como algo engendrado no exterior para uma ameaça “interna”. Por exemplo, o PT como um braço do “Movimento Comunista Internacional”, os Yanomami como proxys de ONGs estrangeiras, essas mesmas proxys de potências que cobiçam nosso território, e por aí vai. Assim se justifica a ideia de que esse “inimigo interno” é algo híbrido, contaminado pelo exterior, e assim dissociado daquilo que é um “nacional purificado”, por assim dizer. E o que é esse “nacional”, por sua vez? No final das contas, é uma projeção deles mesmos. Isso está no interior desta segunda confusão, que é a ideia de que toda essa parafernália ameaça a Instituição Militar, e a partir daí ameaça o Estado e a Nação. Eles entendem que fundaram o Estado e a Nação, e não são o resultado desses. A partir disso, podemos dizer que sempre está no horizonte deles algum nível de ameaça.
Esse é um ponto de partida para entender o processo como um todo, do golpe a Bolsonaro. A questão é: qual é a estratégia e quais são as táticas que eles encontram para dar conta disso? Então este é um ponto central para a gente entender em que nível de “golpe” eles estão pensando, agora entre aspas pois já tomo como categoria nativa. Se voltarmos para esses dois princípios contidos nas confusões ou hibridismos acima, a gente tem uma linha a seguir: os militares sempre pensam, em primeiro lugar, na sua autopreservação. Tudo, mas absolutamente tudo que vi e ouvi em quase 35 anos pesquisando (com) eles têm essa assinatura. Se começarmos daí, aí nosso entendimento sobre o 8 de janeiro pode levar a um caminho heterodoxo.
Do meu ponto de vista – e vou falar de modo muito sintético (a versão estendida desta história está em um livro que acabei de escrever, e vou tentar publicar) –, eles adotaram uma solução “dupla” para sua ação política a partir de fins de 2020, quando por uma série de motivos o consórcio que eles haviam estabelecido com o Judiciário para pavimentar o caminho de Bolsonaro teve uma fratura. Não é exatamente uma briga com o Judiciário como se emulou tantas e tantas vezes, numa espécie de telecatch (como bem o definiu meu parceiro de crítica, Romulus Maya), mas é a abertura de uma divergência que ocorreu a partir do momento em que o ex-Presidente e sua entourage se tornaram insuportáveis para o establishment do STF e este reabilitou Lula. É um dos fatos mais notáveis esse, pois em 2018 foi o STF que agiu como Infantaria do projeto militar de tomada do Palácio e, com base em uma fraude – o processo e a consequente a prisão de Lula –, garantiu que Bolsonaro corresse livre para faturar as eleições. Que me desculpem os colegas, mas o Brasil só “dobrou à direita” depois que interditaram a via à esquerda. Uma vez que esse caminho abriu vicinais que incomodaram os interditores, eles resolveram abrir o atalho novamente, criando dois jeitos de se chegar a 2022.
As razões dessa divergência de 2020 são várias, envolvem conflitos internos no STF (com círculos de atração e repulsa à órbita da Lava-Jato) e as nomeações de Bolsonaro para o tribunal. Porém, ao contrário do que se passou para a imprensa, no teatro de operações a partir do “vazamento” da reunião do dia 22 de abril de 2020 pelo STF e consequente acionamento do “modo golpista” de Bolsonaro, passando a imagem de que militares estavam sendo fisgados por ele nesse processo, o Comando da Instituição Militar decidiu abrir uma “pinça” e trabalhar em duas frentes, fazendo um “hedge”. A frente que ganhasse dali para frente garantiria a sua autopreservação; a que perdesse transferiria para a que ganhou a imagem de houve “resistência”, valorizando a vitória da outra. Note que esse é um movimento que ocorre de maneira dissimulada, como se houvesse uma ala golpista e outra legalista. Foi fácil emplacar essa versão pois isso já está, de longa data, no imprint de nosso imaginário.
Mas a cadeia de comando continuava operando como um bloco que convergia para o Um, o Comandante. E, um tempo depois, o teatro ganha contornos bem definidos, com o episódio da “demissão dos comandantes militares” do final de março de 2021, fazendo todo mundo comprar a versão de que o “modo golpista” de Bolsonaro agora estaria produzindo cooptação de militares, enquanto a “Instituição de Estado” resistiria como pudesse. Quem conhece regulamento militar, modo de agir militar, categorias e conceitos militares, contudo, viu ali duas coisas: em primeiro, que a Instituição fazia jogo duplo o tempo todo; em segundo, que essa jogada, dissimulada, era a verdadeira natureza do golpe que se estava elaborando: um “golpe de vista”, onde uma das pontas dessa “pinça” perderia, passando a sensação de que a outra atuou contra. Como vimos, Bolsonaro perdeu, e os militares passaram a ventilar para fora a versão de que o golpe só não ocorreu porque eles próprios não embarcaram nele. Alguma “vitória” já estava garantida de antemão, portanto. O que não nos exime de explicar, afinal, o que estava acontecendo com aqueles – poucos, bem poucos – que perderam; podemos encarar como “baixas de guerra”. Vamos ter o princípio da autopreservação em primeiro lugar. O que interessa sempre é a cadeia de comando. Se você quer começar a entender os militares, pense na hierarquia. Se esta começar a ter problemas, pode ter certeza que as coisas estão comprometidas, no duplo sentido da palavra.
O que a gente viu depois que tudo foi aparecendo no pós 8/1 foi que a cadeia de comando estava absolutamente ciente de tudo que acontecia. Ninguém foi pego desavisado. Isso para mim é o recibo de que a divisão ali foi um teatro de operações. O que podemos ter como “elemento surpresa” está no fato de que aquele núcleo kamikaze parecia estar levando a sério a possibilidade de que um ato de “choque e pavor” desencadearia um efeito dominó. Se isso ocorreu, foi porque alguém acima deles no comando sinalizou que isso ocorreria. Jogaram eles, como uma típica companhia de ação e comandos, numa operação de tipo “cabeça de ponte”, desembarque suicida na linha inimiga. Isso foi sendo costurado por um bom tempo, não se resume a novembro de 2022 a janeiro de 2023. Quem foram os outros atores mobilizados? A turba insurgente que se galvanizou nos quartéis e acreditou que dali, ao tomar o Palácio, haveria um efeito dominó. Não houve esse efeito porque nunca haveria, o Comando já havia decidido qual seria a perna vencedora há muito tempo: a que ganhasse as eleições. Reitero: para ela ser vencedora com muita verossimilhança, seria necessário que houvesse alguém do outro lado tentando o golpe. Senão eles não teriam se firmado no papel dos que resistiam a algo. Por fim, os que hoje estão presos ainda estão numa posição confortável: em Organizações Militares, sem nenhum controle para fazer o jogo dos “resistentes”, agora atuando politicamente. Só se deu mal mesmo o Mané que rezava para pneu[1]. Por essas razões, tendo a chamar o 8/1 de “golpe de vista”, sem descartar que quem estava lá de fato queria mais uma vez golpear o Brasil.
2) Boletim Lua Nova-Cedec:
Desde o golpe contra Dilma Rousseff em 2016 até os eventos de 8 de janeiro de 2023, qual foi o papel específico de personagens como Augusto Heleno, Hamilton Mourão, Braga Netto, Eduardo Villas Bôas, Sérgio Etchegoyen e Carlos Alberto Santos Cruz? Há outros nomes menos conhecidos que deveriam ser mencionados?
Piero Leirner:
Essa turma, coerente, conhecedora profunda uns dos outros ali, com trajetórias que se cruzaram inúmeras vezes ao longo da vida, começou a produzir, com certeza a partir de 2014 (embora já tenham me dito que a coisa toda começou a ser desenhada para valer depois de junho de 2013, pela perceção de que ali se abriu uma “janela”), uma ação para tomar o poder político no Brasil. O “evento canônico”, digamos assim, foi o lançamento da candidatura à Presidência de Bolsonaro dentro da Academia Militar das Agulhas Negras em novembro de 2014, logo após a reeleição de Dilma. Esse ato é a linha divisória, porque todo militar sabe que isso só pode ocorrer com a permissão da cadeia de comando. Se ocorresse sem esta permissão, deveria haver punição severa, e não houve. Bolsonaro estava lá, diante dos cadetes e acompanhado de oficiais, dizendo que “jogaria este País à direita”. Quem permitiu? Todos envolvidos naquela situação; o General Tomás Paiva (atual Comandante, na época era o Comandante da AMAN); o General Ueliton Vaz, Comandante do DECEX (Depto de Educação e Cultura do Exército) e General Enzo Peri, Comandante do Exército que deveria ter sido exonerado por conta disso. Como tudo passou tranquilamente, no dia seguinte todos os militares sabiam que estavam numa missão.
O primeiro ponto, então, foi produzir as “condições internas” para que se entendesse que o “projeto Bolsonaro” era um projeto deles. Estes militares que você citou foram, assim, uma espécie de Estado-Maior nessa campanha (a organização militar que nesse nível deles cuidou da estratégia, informação, emprego etc.), que, por razões que dizem respeito ao modo que eles pensam certas categorias nativas, chamei de “guerra híbrida”, numa forma tropicalizada, enfim. Mas eles montaram essa espécie de “Central”, baseados nas suas inter-relações, mas também em elementos que combinados permitiriam algum avanço. Por exemplo, Maynard Santa Rosa e Augusto Heleno, sobretudo este, já tinham feito “test-drives” de insubordinação a Lula e Dilma por conta de demarcações de Terras Indígenas e da Comissão Nacional da Verdade, e deram segurança para a tropa; Villas Bôas foi quem usou sua expertise na montagem do planejamento futuro da Força para, quando assumiu o Comando do Exército em fevereiro de 2015 produzir a blitzkrieg que infiltrou militares em vários terrenos: no Congresso, no Judiciário, nos órgãos de Controle e Tribunais, na FIESP, na imprensa, em empresas (como as investigadas pela Lava-Jato), e por aí vai. De repente começaram a pipocar militares dando palestras, falando em Clubes e Associações e em Rádios e TV. Um que se destacava nesse papel foi Hamilton Mourão. Vários ali tinham muita experiência nesse sentido lá no Rio Grande do Sul. De repente era um festival de palestras de generais no TRF/4, para juízes, procuradores e delegados. Pegue a lista de alunos da ESG (Escola Superior de Guerra) a partir de 2014. Muita gente do Judiciário, polícias, TCU, TCEs, CGU etc. Idem para as medalhas militares.
Logo após o impeachment de Dilma, o primeiro ato de Temer foi restaurar as propriedades do GSI e ainda turbiná-las, para o qual assumiu o Etchegoyen. Ali se montou o comando de informações. Note que um militar lá coordena as informações com os órgãos das 3 Forças, e outros “paisanos”, particularmente polícias, MPF e TRFs. É fácil achar parcerias desses órgãos em vários âmbitos. A ENCCLA (Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Ativos), iniciativa lá de trás do Márcio Thomaz Bastos, foi sendo povoada por militares, especialmente durante o governo Dilma 2. Iniciativas militares, como o SISFRON (Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras) passaram a articular militares com juízes, congressistas, polícias etc. Enfim, esse movimento vem de longe, mas ganhou uma tração gigantesca depois de 2014, se integrando definitivamente no Governo Temer.
É claro que a essas alturas a gente já via o que estava acontecendo no Brasil, e isso corria de forma paralela aos militares. Me parece óbvio que eles não foram os agentes propulsores das manifestações liberal-reacionárias, centradas na ideia de que era preciso “romper com o sistema”. Ainda assim, pouca gente parece ter se atentado para o fato de que ao longo da história republicana sempre foram os militares que produziram soluções de ruptura. Eles sabiam muito bem de duas coisas: do seu papel como “interventores”, e que desde 2013 uma ideologia, meio etérea, da solução “anti-sistema” e/ou “anti-política” se propagava em proporção geométrica. Eles souberam ler a situação, que, é verdade, começou decalcada em figuras como Joaquim Barbosa e Sérgio Moro. Mas historicamente, no Brasil, a “anti-política” sempre veio do campo da “guerra”. Não poderia vir de novo? Produzir a associação dos militares a Bolsonaro me parece uma solução óbvia, dado que ele é militar.
Dito e feito, se infiltraram no Governo Temer e produziram seu fracasso – levando junto o consórcio político que derrubou Dilma, centrado na aliança MDB+PSDB. De que forma? Foram 3 movimentos: a falha de segurança do episódio Joesley Batista; o locaute dos caminhoneiros; e, o principal, a Intervenção no Rio de Janeiro em 2018, que travou tudo que Temer poderia entregar no Congresso. Todas essas “falhas” deveriam, pelo papel institucional, ter sido bloqueadas pelo GSI (e ABIN). Alguém viu a demissão de Etchegoyen? A partir disso, note que até fevereiro de 2018 Bolsonaro era o “piso”. Na hora que o Judiciário toma suas providências e prende Lula, ele passou a ser o “teto”. Isso tudo com a propaganda subliminar da Intervenção rodando de graça em todos os jornais. É nesse ponto que entrou Braga Netto (e Richard Nunes, hoje, junto com Tomás Paiva, um dos fiadores do “legalismo” militar). Segundo ele (Braga Netto) mesmo disse, eles montariam uma “Central de Comando, Controle e Informações que depois serviria de modelo para o Brasil”.
O que eles estavam olhando lá no Rio de Janeiro? Toda, mas absolutamente toda a entourage de Bolsonaro, suas ramificações e conexões. Então eles pegam esse sujeito, com todo seu histrionismo, e a partir de 2014 começam a colar a figura do “antisistema” na figura da “ordem” militar. E, em 2018, ficam mais por dentro do que nunca do que ele e a família faziam e desfaziam em nível local. Com esse cenário, pergunte-se quem controla quem? O que é mais provável? Ainda assim, para que essa ação desse certo, seria (e ainda é) absolutamente necessário passar a imagem de que o controlador seja o controlado. E que, “do nada”, por conta de sua infinita capacidade política, Bolsonaro arrastou os militares para o seu projeto pessoal, e não o contrário. Até para isso adquirir cada vez mais verossimilhança foi essencial a ideia de que militares como Santos Cruz, por exemplo, saíram chutados do Governo por conta da terrível máquina do Gabinete do Ódio, montado por aqueles tresloucados. De resto, como vimos, o Governo foi o que eles queriam mesmo: um desmonte total, a mais completa desorganização da administração, implosão da institucionalidade e transformação da política em um campo de batalha. Quando a política some, dizem por aí que fica a guerra. Eles acreditam seriamente nisso.
Piero Leirner:
3) Boletim Lua Nova-Cedec:
De maneira geral, como os militares veem Jair Bolsonaro? Historicamente, politicamente e intelectualmente, qual é a relação entre ele e as Forças Armadas?
Piero Leirner:
Em parte, acho que o que disse acima responde um pouco. Para complementar e deixar isso bem sublinhado, gostaria de bater na tecla de que ele foi “remanufaturado” por um conjunto de comandantes militares que vislumbrou uma ação política. Isso não significa que militares em geral, a grande maioria da tropa, não acreditasse em Bolsonaro exatamente nos mesmos termos que qualquer “rezador de pneu”, como o “cara que ia combater o sistema”. Como disse, a operação inicial foi passar o recado de que a Instituição endossava aquilo. O resto… Bem, não precisava fazer muito. Bolsonaro foi escolhido por eles exatamente por ser quem era. Esse fenômeno do comediante, do trickster colando na política, já era de conhecimento deles. A Ucrânia é o “grande caso” de estudo sobre guerra híbrida, tem texto e doutrina falando disso que não acaba mais. É óbvio que eles arriscaram a partir de pouco, e talvez se Aécio tivesse faturado em 2014 essa história fosse para a gaveta.
Mas temos que considerar que entre 2015 e 2018 eles entraram em muitas instituições, se infiltraram mesmo. Se encarregaram do “topo”, e uma vez que este ia aderindo, Bolsonaro foi galvanizando a “base”. O que ele era antes de 2014? Um sujeito mal-visto, politicamente limitado a uma condição “suportável” por conta de seu uso em pautas convenientes. Por volta de 2010 passam a admiti-lo novamente na AMAN, ainda que nas cerimônias ficasse meio de “escanteio”. É preciso entender o lugar que essas formaturas e cerimônias ocupam no imaginário militar. Não tem parâmetro de comparação com nada entre nós, civis. Ali é o “fato social total” deles, a “briga de galos balinesa”, para citar um conhecido caso antropológico. É a representação da hierarquia e das linhas de continuidade organizacionais e ideológicas, que se dão na transferência do mana (a projeção da “pessoa”) entre comandantes e comandados. A organização do “palanque”, que conta com Presidentes, Vices, autoridades dos 3 poderes, e por aí vai, é a leitura que eles fazem do “condensado de sociedade brasileira” como reflexo de suas próprias disposições e habitus. Depois de 2014, Bolsonaro passa a ocupar o lugar central nessas cerimônias, cercado pelos Generais 4 estrelas, para todo mundo ver do que se tratava. Em 2018 estavam do lado dele todo o establishment político – isso antes das eleições! Para quem vê isso de fora, sem considerar como as coisas funcionam ali, parece que ele foi “ganhando prestígio”. Para quem conhece a dinâmica do mundo militar, ele foi ganhando “autorização”.
Bem, uma vez Presidente, aí realmente outro problema aparece. É não o deixar sair do controle deles, mas deixá-lo ser o mais “descontrolado” possível para nós, passando intensivamente a ideia de que até eles não conseguiam controlá-lo. Eu tenho a impressão de que esse foi um caminho sendo tateado, com avanços e recuos, como é normal em qualquer operação militar. Penso, por exemplo, que eles calcularam muito mal a repercussão das duas indicações de Bolsonaro para o STF, que geraram uma reação que os obrigou a produzir a tal “pinça” que mencionei acima. Isso é sinal de que eles estavam longe de controlar tudo, não é mesmo? Principalmente, o resultado disso foi que a Central saiu da zona de conforto de um projeto de 8 anos, que foi reduzido a 4. E então ela precisou fazer essa enorme readequação. Ainda assim, “perdendo”, como vimos, não se mexeu com os militares após 1º de janeiro de 2023.
4) Boletim Lua Nova-Cedec:
Nos últimos anos, os militares passaram por mudanças em sua visão de mundo, inserção social e cultura política. Como eles reagiram a fatores como redes sociais, ativismo do Judiciário, crise da esquerda, fortalecimento da direita e a nova configuração do capitalismo neoliberal extrativista?
Piero Leirner:
Podemos falar de tudo isso de forma dupla. De um lado, vamos dizer assim, que se refere aos “militares em geral”, as mudanças para eles poderiam ser pensadas assim como o que mudou para muita gente, especialmente no que diz respeito à infiltração do neoliberalismo em todo tipo de relação social. Isso se deu na caserna em termos ideológicos, e alguma coisa em termos organizacionais, com uma espécie de lógica gerencialista tomando conta de concepções estratégicas e até táticas. Ainda assim, a Instituição consegue ter uma boa eficácia em englobar essas coisas dentro de seu espectro, pelo tipo de controle que a hierarquia e a disciplina dispõem. Foram capturados pelas redes, se tornaram idólatras do empreendedorismo, encamparam o neoliberalismo rentista, mas tudo isso é algo que deva ser seguido como a “ordem perfeita para os paisanos”. Isso não chega lá dentro, por exemplo, abraçando o “neoliberalismo progressista”. Isso acaba sendo filtrado em alguns termos, pois eles temem que isso “paisanise” demais a tropa, especialmente se tiverem que encarar mudanças a partir de sentenças judiciais, especialmente no que se refere mais ao “progressismo” do “neoliberalismo”.
Então eles reagiram em “cismogênese” a todo esse processo, isto é, de forma que se vinculam a ele de forma simétrica, contrária, mas dependente: “nós somos simetricamente opostos aos paisanos”, como se o mundo fosse dividido entre “nós/eles”. Convenhamos que isso só faz sentido dentro da cabeça deles, uma vez que nós, civis, às vezes nem lembramos que eles existem. No máximo eles são “parte do mundo”, mas, eles definitivamente acham que o mundo é uma parte ingrata deles. Esse é um típico processo de “duplo vínculo”, como analisa o grande antropólogo Gregory Bateson (que também elaborou esse outro conceito, o de cismogênese). Esse é um nó problemático no mundo todo, mas aqui tem algo um pouco mais dramático. Se você pegar a mitologia política da maioria dos Estados, vai ver que ela está relacionada a processos de sociogênese da Nação ligados ao “povo” ou a alguma entidade englobante desse nível. Aqui, nos anos 1990, o Exército resolveu inventar que eles fundaram a Nação – e o “povo brasileiro” – em Guararapes de 1648, “juntando as três raças contra o invasor holandês”[2]. Como cosmologia, essa foi a nova face para justificar sua leitura própria de “tutela necessária” desse Brasil que não sabe andar com suas próprias pernas. Então, cada vez que se quer discutir alguma mudança na Instituição militar, eles reagem como se isso colocasse em risco a Nação. E fazem tudo isso dentro de uma Instituição que é muito protegida, tem muitas barreiras e garantias, simbólicas e materiais, de que o mundo paisano não chegará até eles. Isso vai até a filigrana da relação que os militares estabelecem com os civis, quando isso ocorre. Por exemplo, eles podem fazer um mestrado e um doutorado em sociologia numa Universidade Federal ou numa PUC, FGV, etc. que, em 99% dos casos, vai ser inócuo, pois ao voltar para a caserna eles vão reproduzir as mesmas disposições e relações da geração de 1990, essa da de 1970, essa da de 1950 e essa da de 1930. Parece um modelo do Bourdieu funcionando como um disco riscado.
Agora, tem um outro lado, mais problemático, e cujo alcance eu vislumbro só algumas pontas. Estou pensando aqui em como a Instituição Militar, especialmente nos EUA mas também em outros lugares, acabou se plasmando com o setor financeiro e com as big techs, e juntos estão transformando a cara do capitalismo. Ok, não é novidade isso que o Wright Mills já falava lá nos anos 1950, do complexo industrial-midiático-militar, agora repaginado para essas novas super-formas de extração da mais-valia. Isso de certa forma está diretamente relacionado com essa sobrecarga imperialista atual que se reflete no “sistema da guerra”, declarada ou ameaçada, real ou virtual. A questão – para a qual obviamente não tenho resposta pronta – é se essa deriva capitalista moldou um militar pós-moderno ou se as inflexões militares foram determinantes nesse capitalismo tecno-rentista-milicológico. Pode ser que sejam os dois se retroalimentando. O que me parece algo nada desprezível é como as “formas elementares de vida militar” foram, a partir dos anos 1950, se impregnando em todos os ramos do capital: da administração ao trabalho, da infraestrutura à ideologia.
Agora, na parte que nos cabe nesse latifúndio, do agro-rentismo brasileiro, temos militares à altura. O que percebi, para voltar ao que eles planejavam com Bolsonaro, era fazer aqui uma “cópia bananeira” do Pentágono e suas estruturas permanentes, o que alguns chamam de um “Estado Profundo”, expressão boa, mas que ficou carimbada de teoria da conspiração. De fato, isso foi algo que pouca gente se atentou: nesses últimos anos os militares se ramificaram em “n” setores; a máquina de segurança/defesa cresceu muito, já tem um peso grande no PIB; e se produziu uma série de dispositivos que garantem presença militar em vários setores “críticos”: infraestrutura, telecomunicações e rede de dados, principalmente. Isso tudo plasmado com o setor financeiro e com uma ação problemática na Amazônia, por exemplo infiltrada na mineração, mostra que o projeto em parte foi bem-sucedido.
5) Boletim Lua Nova-Cedec:
Existem erros do governo Lula na condução com os militares? Se sim, quais são? E qual o real papel de José Múcio nessa dinâmica?
Piero Leirner:
Eu acho que aquilo que poderia ser descrito como uma série de erros do Governo pode também ser tratado como limites. Eu não vou me estender demais nessa questão pois só poderia responder de forma honesta falando coisas impublicáveis. O que posso especular é no sentido de que um Governo só pode fazer aquilo que ele tem força para fazer. E este Governo atualmente é refém de uma situação inacabada. Bolsonaro e o “bolsonarismo” ficaram preservados como um espantalho perfeito, na justa medida para, de um lado, paralisar o Governo; de outro, para permitir que quando ele se mexa, seja apenas andando para a direita. Evidentemente não são só os militares que fazem isso, mas quase “todo mundo”. O mercado e o que aconteceu em dezembro estão aí. E com os militares isso é particularmente sensível, pois tal como eles produziram Bolsonaro, eles o descartaram parcialmente; tal como eles controlaram, eles também podem desatar os nós. Então vejo que embora isso esteja muito camuflado, o Governo ainda está na mão deles (e do STF).
Não foi coincidência que a única área que não teve “transição” foi a deles. Pois, nesse caso, eles são o “fiel da balança” que de fato pode dar mais problemas do que parece. A gente não tem ideia do nível de controle de informações, ao vivo e guardadas, que eles têm. Você já percebeu que todos os processos judiciais [e políticos] que eles estão envolvidos dizem respeito apenas ao 8/1? Quando há muito mais coisas (por exemplo, a “gestão” da pandemia)? Por que isso? Talvez porque eles próprios tenham algum nível de controle sobre os fatos do “golpe”? Nesse sentido, é bom ressaltar que este golpe foi, e é, uma ação controlada por eles. Por isso mesmo, quando Lula fica nesse samba de uma nota só, dizendo que sua função foi salvar o Brasil da catástrofe bolsonarista e do golpismo, acaba por atuar como parceiro deles. Resta saber se faz isso na condição de refém ou de amigo. Suas motivações estão além da minha compreensão, ainda que tenha lá algumas suspeitas. Por isso, quando dizem que Múcio é um general à paisana (aliás, acho que ele mesmo disse isso), um representante dos militares no Governo, não vejo exatamente assim. Acho que ele está mais para uma espécie de simbiose de Lula e Militares. E Múcio é isso, o sujeito que saiu do PFL de Pernambuco, já tinha sido do Governo Lula 1, Deputado, aí, importante dizer, Ministro do TCU, cargo que tem acesso a potenciais pedras no sapato de muita gente. Foi então para o lugar certo, segurar e cruzar seu amplo estoque de informações.
6) Boletim Lua Nova-Cedec:
Poderia especular sobre o seguinte: se houvesse um golpe militar hoje, qual seria sua dinâmica? Tanques nas ruas? Prisão de lideranças de esquerda? Fechamento do Congresso? Troca dos ministros do STF? Ou o modelo de golpe militar no século XXI seria diferente?
Piero Leirner:
Eu acho que há várias possibilidades, embora esse tipo de “golpe clássico” fique pairando no nosso imaginário com certa persistência, acho essa uma das menores. Vamos primeiro ao passado. Nos anos 1990, quando comecei minhas pesquisas, os militares com quem conversava (em sua maioria generais e coronéis) eram bem consensuais quanto ao que consideravam os ônus do regime militar: baixa reciprocidade dos EUA em relação ao alinhamento automático e perda de seu prestígio social. Porém, eles continuavam achando que os civis eram um bando de incompetentes para tocar um governo, e ali começaram a considerar a hipótese de criar meios de influência e articulação de “elites” para produzir um “projeto para o Brasil”. Não é à toa que estavam começando a ler Gramsci, que entrou nas escolas militares pelas mãos do Oliveiros Ferreira. Isso está descrito no meu mestrado, de 1995, publicado em 1997[3]. Saltando para 2014, o que vimos? A efetuação dessa pretensão de hegemonia através de um “laranja” (para usar um termo que todo mundo entende), o próprio Bolsonaro.
Como vimos acima, minha hipótese é que eles produziram um hedge, um jogo duplo, para garantir sua própria preservação. O custo dessas manobras é definitivamente menor do que o de administrar tanques, estados de sítio, etc. Quem teve a experiência que teve com Bolsonaro não precisa correr riscos desnecessários, sobretudo porque Bolsonaro continua, como espantalho, rendendo dividendos. Já debati com colegas que acharam que a imagem dos militares é, e foi, enormemente prejudicada por Bolsonaro e pelo que houve a partir dele. É verdade. Mas uma Instituição permanente sobrevive às crises de imagem. Ela não é como um partido político, que pode se arruinar sem volta. Então esse é um ponto que casa com muitas das versões sobre o que se entende como “guerra híbrida”, que assumem a ideia de uma mistura de tipos de guerra sempre operando no sentido de não deixar claro quem são os agentes determinantes do processo. Por isso tem interpretações que dizem que elas são apenas atualizações de guerras por procuração, que existem há muito tempo. Porém, em tese esse híbrido também pode remeter à mistura entre elementos informacionais e bélicos, entre usos de atores civis e instituições para fins de paralisar o inimigo e ações disruptivas com violência empregada.
No caso dos militares daqui eles compraram uma versão da OTAN de que a guerra híbrida seria em essência uma doutrina russa, utilizada na Ucrânia e na Georgia, ao se utilizar agentes civis misturados com militares em várias posições, às vezes contrárias umas às outras, para gerar um ambiente de caos controlado. Acontece que essa também é a teoria russa sobre a guerra híbrida feita, segundo eles, pelos EUA. E aqui, os militares também fizeram isso se utilizando de Bolsonaro, mas acusando o PT de fazê-lo. E conseguiram fazer isso com o custo do emprego de meios violentos de forma dissimulada na Intervenção no Rio de Janeiro de 2018 e no controle dos caminhoneiros. Depois, claro, o 8/1 teve a violência que teve, de um “choque e pavor” informacional, sobretudo. E aí os militares conseguiram sair do jeito que entraram, mesmo permitindo a gestação de todos os meios no seu território, o QG. Nessa confusão, se a gente passar a régua, entre mortos e feridos desde 2013, quem se manteve exatamente na posição, sem precisar avançar ou recuar? Militares e cúpulas do Judiciário. Barbarizaram e permaneceram intocados. Em um cenário desses não me parece vantajoso sair dos quartéis com tanques etc.
Tem mais um ponto que me incomoda bastante na história do 8/1. Você reparou que dia 2/1 todo mundo ainda estava em Brasília? Por que adiaram a rebelião por uma semana? Esperaram todo mundo estar de férias? O STF viajar para fazer uma sessão virtual e mandar prender todo mundo? Não ter ninguém no Congresso? Se de fato o “start” fosse dado por um grupo de ação e comandos e forças especiais fossem tomar a capital, fechar aeroporto e estradas, prédios, vias, cortar comunicações e produzir uma paralisia, teria que ser com “gente dentro”, não? Aí você pode cobrar o preço que quiser. E isso poderia ser feito, mesmo que fosse para dar errado. O problema é que as coisas foram elaboradas para dar errado com custos muito baixos e lucros fantásticos.
7) Boletim Lua Nova-Cedec:
Qual o papel da mídia corporativa-hegemônica na atuação dos militares?
Piero Leirner
Esse é um dos pontos que acho mais complexos, e mais difíceis de sistematizar. É claro que a gente sempre pode dizer que a mídia está com o establishment, e isso inclui os militares. As linhas editoriais dos jornais sempre navegam nessa direção, de fechar com as cúpulas de qualquer coisa. Mas tem os profissionais que vão atrás de suas matérias, e estão em dinâmicas que os prendem em situações, bem como às vezes têm autonomia para construir suas pautas. Como eu poderia analisar as “n” vezes que os jornalões me entrevistaram se não enxergasse um mínimo de contradição ali? Claro que já passou pela minha cabeça que se estão publicando o que digo, é porque tem algo de errado comigo. Também já passou pela minha cabeça que existe um jogo dos jornais em publicar visões contramajoritárias, passa a sensação de que são “democráticos” na foto, porém no filme, na intensidade de produção de várias notícias numa direção, o que prevalece é a linha editorial.
O que posso dizer é que sempre bati de frente com essa perspectiva de que Bolsonaro saiu do controle e começou a ser o agente principal que cooptou militares para seu “modo golpista”. O ponto não é simplesmente inverter essa equação, mas entender esse “modo dual” em que militares controlam a partir do descontrole de Bolsonaro. Esse esquema de contradições é o que fundamenta todas as outras relações que eles tiveram. E só cheguei a isso porque etnograficamente, analisando as categorias nativas, vi que essa é a situação “de manual”. Não precisa de uma grande engenharia mental para isso; sempre ouço a crítica de que considero os militares inteligentes demais. Não é disso que se trata. A energia mental deles opera de modo algo diverso da nossa, e é preciso ver por que em determinadas situações políticas sua socialidade funciona melhor que a nossa. Essa ideia de que os militares são incapazes e fracos me parece tão problemática quanto aquela que diz que indígenas são infantis e anômicos. No mais, para efeito de comparação em uma linguagem acessível, basta considerar que os militares fizeram com Bolsonaro mais ou menos o que muitos empresários sabem fazer quando querem esconder seus negócios, criam esquemas com laranjas.
O problema é que a imprensa se fixou em um modelo, muitas vezes amparada por colegas das ciências sociais que puxaram análises sobre 1964 para entender 2018, 2022. Aí vem toda aquela parafernália das “alas”, os lembretes de que Heleno era do gabinete de Sylvio Frota, do agenciamento populista de Bolsonaro independente dos militares, e por aí vai. É claro que ideologicamente os militares de 2018 puxaram as velharias de sempre do seu estoque: anticomunismo, contrainsurgência etc. O problema é que eles puderam enlatar tudo isso em um dispositivo de ação bem contemporâneo, com formas de dissimulação testadas em experiências aqui e acolá. Uma delas foi essa relação com a imprensa, é uma coisa incrível. Não precisamos nem entrar nas táticas de cooptação de jornalistas que começam quando eles ainda estão na faculdade, promovendo viagens incríveis pela Amazônia, com direito a festinhas e convescotes que encantam meio mundo (não só jornalistas, mas juízes/as e políticos/as vão em peso nesses programas).
Isso continua depois, ao longo da carreira. Esse foi um ponto estudado pelo General Heleno, que chefiou o CCOMSEX (Centro de Comunicação Social do Exército), e depois amplamente trabalhado pelo General Villas Bôas como “projeto de Força”. Tenho um orientando de doutorado, o Guilherme Lemos, que pesquisou essa ação tratando do caso das demarcações de Terras Indígenas. Mas as coisas vão além. Percebi, e fui alertado muitas vezes pelo Coronel Marcelo Pimentel – um dos únicos nativos que resolveu abrir o jogo publicamente sobre o projeto Bolsonaro ainda em 2018, e por isso pagou um alto preço –, sobre as inúmeras vezes que a imprensa estava passando uma versão “interessada”. Por que isso? Porque os militares estavam no poder e os/as jornalistas precisavam estar conectados às “fontes”. O problema é que essas fontes abusaram do “off”, e muitas vezes produziram versões contraditórias de forma propositalmente combinada. A tática “good cop, bad cop” foi usada e abusada. Isso fez parte de um processo meio clássico de guerra informacional, e os militares foram retratados das mais diversas maneiras.
Porém, sempre prevaleceu a posição de que eles eram atores secundários em relação a Bolsonaro. A versão de que a “Instituição é do Estado, mas os militares bolsonaristas são indivíduos agindo voluntariamente” imperou. E isso não é assim. O Comando autorizava, e depois dizia que não tinha nada a ver com isso. Vimos centenas de vezes informações dissimuladas como essa normalizando na imprensa. No final, pegando o que aconteceu após o 8/1, vimos os Comandantes militares se esquivarem alegando “temer Bolsonaro”. Estão usando esse argumento inclusive para passar a ideia de que os generais que “resistiram” ao golpe não desmantelaram tudo por temer a reação do Ex-Presidente. A PF colocou isso no relatório, e a imprensa comprou 100% do que está ali, sem questionar que, tal como na Lava-Jato, tudo se baseia em material editado. Como o que interessa é “dar o furo”, passam batido pelo fato de que no final das contas o que aconteceu é que o ato disruptivo foi feito num domingo de janeiro pelos laranjas do laranja que já tinha dado no pé.
8) Boletim Lua Nova-Cedec:
Qual sua leitura da bandeira de não-anistia de setores progressistas, mas que não enfrentam a cúpula militar?
Piero Leirner:
A bandeira está super certa, mas como esse enfrentamento poderia se dar? Qual é a força que esses setores têm? Que cartas eles têm na manga para fazer os generais recuarem? Zero. A esquerda está travada na posição de espectadora do STF, esperando as pílulas de felicidade em cada relatório que a PF solta. Parte disso se deve ao fato de que a direita sequestrou toda forma de ação direta, empurrando a esquerda para a posição conservadora de defesa da institucionalidade. Então o dito campo progressista passou a ser o mero espectador das viradas de biruta das Instituições, inclusive sem se importar muito que alguns dos métodos da era da Lava-Jato continuam preservados. Porém, em parte, esse processo era previsível, uma vez que tanto a fraude da prisão do Lula quanto sua re-habilitação foram decisão da cúpula do Judiciário, sem a menor interferência popular. No final, ainda coroada pela frase do próprio, que disse que “acreditava na Justiça”. Viramos o barco 180 graus e esquecemos que atrás de nós o maremoto continua.
9) Boletim Lua Nova-Cedec:
Como analisa as atuais pesquisas sobre os militares nas universidades brasileiras? O que tem de interessante e novo?
Piero Leirner:
Muita coisa. Estou vendo várias pesquisas interessantes, várias colocando elementos novos sobre a ditadura, educação militar, gênero, novas formas de guerra e, claro, sobre guerras culturais (e bolsonarismo aqui) e como isso repercute entre militares de várias formas, econômicas, religiosas, familiares e ideológicas de um modo geral. Continuamos aqui com uma predominância na Ciência Política e áreas afins, sem dúvida. Mesmo assim, o campo de estudos sobre militares é super pequeno. Acho estranho até, dado o quanto esse “objeto” interferiu na nossa existência. Na universidade, pelo que vejo e pelo que ouço de colegas, o tema praticamente não atrai novos/as estudantes. Aqui na UFSCar, se eu perguntar na classe que estou dando aula neste semestre (2º ano da graduação em Ciências Sociais), acho que ninguém sequer sabe o que pesquiso. Na antropologia, como costumava brincar com meu amigo Celso Castro (que me precedeu na antropologia dos militares), continua dando para fazer o Congresso Mundial de Antropologia dos Militares dentro de um Fusca.
10) Boletim Lua Nova-Cedec:
Qual é a sua agenda de pesquisa atualmente?
Piero Leirner:
Continuar “seguindo o nativo”. E, como já venho há alguns anos olhando, fico particularmente interessado em como os militares estão se apropriando das ciências sociais, especialmente da antropologia. Lá fora isso foi bem intenso na minha área, aqui veio por simbiose com a doutrina estadunidense. O que aqui me intriga, e que merece uma pesquisa mais atenta, é uma quantidade razoável de militares que estão fazendo mestrados e doutorados em Ciência Política e RI. A instrumentalização que eles fazem disso dá um bom estudo.
[1] Um ótimo livro sobre o assunto foi publicado recentemente: Pedro Arantes, Fernando Frias e Maria Luiza Meneses, 8/1: a rebelião dos Manés. Sâo Paulo: Hedra. 2024.
[2] Ver Celso Castro, A Invenção do Exército Brasileiro, Rio de Janeiro: Zahar. 2002.
[3] Meia-Volta, Volver: um estudo antropológico sobre a hierarquia militar. Rio de Janeiro: FGV/Fapesp. 1997.