Állicka Cardoso S. Belisário[1]
Sarah de Araujo Almeida[2]
17 de fevereiro de 2025
Introdução
No século XIX, e ao longo de todo o século XX, o tema da formação e consolidação do capitalismo esteve em evidência, sendo apresentado e discutido por grandes nomes das ciências humanas, como Karl Marx, Friedrich Engels, Rosa Luxemburgo, Karl Polanyi, entre outros. A crítica ao capitalismo é historicamente associada às contribuições de Karl Marx, cuja análise materialista das relações de produção, exploração do trabalho e acumulação de riqueza revolucionou o entendimento das dinâmicas econômicas e sociais modernas.
No entanto, diversos teóricos e teóricas identificaram limitações no marxismo clássico, principalmente no que se refere à compreensão das opressões de raça e gênero no interior da lógica capitalista. Entre esses teóricos, Cedric Robinson, Silvia Federici e Angela Davis destacam-se por suas contribuições que expandem e aprofundam o legado marxista ao
dialogarem com suas ideias, mas também ao introduzirem novas dimensões que ressaltam as complexas intersecções entre raça, gênero e classe na formação e perpetuação do capitalismo.
O diálogo entre esses autores e o marxismo não é uma simples extensão do pensamento de Marx, mas uma crítica contundente a certas insuficiências na abordagem original. Cedric Robinson, por exemplo, desenvolve a teoria do capitalismo racial, argumentando que o capitalismo nunca foi um sistema puramente econômico, mas sempre esteve imbricado com hierarquias raciais.
O autor desafia os marxistas clássicos ao sugerir que o racismo precede e molda o capitalismo, ao invés de ser apenas uma consequência do desenvolvimento do sistema capitalista. Silvia Federici, por sua vez, revisita a teoria da acumulação primitiva de Marx, ampliando-a para incluir o controle sobre os corpos das mulheres, particularmente em relação ao trabalho reprodutivo, como uma dimensão essencial para a transição ao capitalismo. Ela demonstra como a violência patriarcal, por meio da caça às bruxas e da subjugação das mulheres, foi crucial para o surgimento das sociedades capitalistas.
Angela Davis também dialoga criticamente com o marxismo ao incorporar uma análise interseccional que considera as dinâmicas simultâneas de opressão de raça, gênero e classe. Em suas obras, Davis explora as contradições e exclusões dentro do pensamento marxista ao tratar da experiência das mulheres negras sob o capitalismo. Para ela, qualquer análise que ignore as opressões raciais e de gênero dentro do capitalismo falha em capturar a totalidade do sistema e sua capacidade de se adaptar a múltiplas formas de exploração.
Portanto, Cedric Robinson, Silvia Federici e Angela Davis, ao engajarem com o marxismo, oferecem uma lente interseccional para a crítica ao capitalismo, destacando como as mulheres negras foram centrais tanto na formação do sistema quanto em sua resistência. Suas teorias nos convidam a entender o capitalismo como um sistema intrinsecamente racializado e patriarcal, cuja perpetuação depende da exploração simultânea de classe, raça e gênero. Dessa forma, ao expandirem o escopo do pensamento marxista, esses autores oferecem novas ferramentas para uma compreensão mais completa e complexa das múltiplas opressões que estruturam a sociedade capitalista.
O Controle do Corpo Feminino no Capitalismo: Silvia Federici e a Relação entre Gênero, Capitalismo e Reprodução Social
O capitalismo emergente precisava controlar as capacidades reprodutivas das mulheres para garantir a sobrevivência da força de trabalho e a expansão econômica. A crítica de Silvia Federeci ao conceito marxista de acumulação primitiva nos leva a repensar o papel da violência contra as mulheres na consolidação do capitalismo.
A autora argumenta que, enquanto Marx se concentrou na expropriação de terras e na criação de um mercado de trabalho assalariado, ele ignorou como a expropriação dos corpos femininos e a repressão da autonomia reprodutiva foram centrais para esse processo. Ao iluminar essa dimensão patriarcal do capitalismo, Federici expande a análise marxista ao demonstrar que a exploração de gênero não é uma consequência do sistema, mas uma condição necessária para sua perpetuação. A dominação sobre os corpos das mulheres, especialmente das mulheres negras, foi e continua a ser essencial para a manutenção do sistema capitalista global. Essa perspectiva é fundamental para entender como o capitalismo explora não apenas o trabalho produtivo, mas também o trabalho reprodutivo, muitas vezes sem remuneração ou reconhecimento.
A caça às bruxas, que ocorreu nos séculos XVI e XVII, foi uma das principais ferramentas utilizadas para subjugar as mulheres e garantir a reprodução social sob o capitalismo. Federici analisa como as mulheres eram vistas como mercadorias reprodutivas bestializadas, pelo não recebimento de salário nos períodos pré-capitalista e capitalista, construindo um imagético demoníaco em torno da figura feminina ao simbolizar inúmeras formas de punição e instrumentalização do seu papel. Silvia Federici olha para as mudanças ocorridas na vida das mulheres que até então tinham sido bem pouco analisadas no processo histórico, o que representa o desinteresse pela história, bem como a invisibilidade e diminuição de grupos inferiorizados.
Federici comenta que a existência de um movimento político de caça às bruxas afetou profundamente as relações de trabalho produtivo, reprodutivo e um novo panorama sobre o feminino e o masculino, (Federici, 2023). Por meio dessa campanha de terror, o capitalismo impôs um novo regime patriarcal que subordina as mulheres ao trabalho reprodutivo não remunerado. As mulheres foram relegadas ao papel de cuidadoras e reprodutoras da força de trabalho, garantindo assim que o sistema capitalista pudesse crescer sem a necessidade de
pagar por esse trabalho. Nesse sentido, o êxodo rural significou para as mulheres uma profunda desintegração da vida coletiva, uma vez que eram mais suscetíveis ao estado de perigo promovido pelo processo de urbanização e a violência masculina. Excluídas da possibilidade de se desenvolver no mercado e impedidas de qualquer protagonismo em outros serviços, restou serem retiradas de ocupações monetárias e empurradas para os serviços domésticos naturalizados ao seu sexo.
A construção de uma nova ordem patriarcal que faz do âmbito doméstico um ambiente feminino significou uma relação de dependência direta ao marido, privando as mulheres de liberdade, tal modelo assalariado passou a banalizar as hierarquias raciais e sexuais para dividir mulheres e desvalorizar o trabalho feminino. Com a desintegração da vida no campo e a complexidade da nova composição de vida política permitiu a legalização do estupro envolvendo mulheres de classe baixa.
Ademais a prática tornou-se consentida pelos municípios europeus gerando um ambiente misógino afetando grande parte das mulheres independente de suas classes. Ao ter sua reputação atingida neste período, muitas mulheres acabavam recorrendo a prostituição, com isso o surgimento e crescimento exacerbado de prostíbulos tornaram-se uma forma de sobrevivência que facilmente foi aceita em toda europa como remédio útil (FREDERIC, 2023), no controle dos levantes sociais e na proteção da vida familiar sendo uttilizada no século XVI como argumento pelo clero para condena-lás e matá-las com vexame e crueldade.
Na crista desta onda, nota-se como a expulsão dos camponeses da terra, a constituição de uma guerra pela noção “nós/eles”, os ataques sexistas às mulheres são aspectos fundantes que estão no âmago do capitalismo. A tentativa de torná-las meros ventres, e precisar disso para acumular trabalho e riqueza é um dos significados do poder do capitalismo que se alimenta e desenvolve sob racismo e misoginia. O mesmo promete uma missão que é incapaz de cumprir: a liberdade. Portanto, ele se utiliza dos sujeitos em diversas formas de expropriação e violência para alcançar seu sucesso. Federici também introduz o conceito de reprodução social, que envolve o trabalho necessário para manter a vida humana, como o cuidado com os filhos, a alimentação e a manutenção da saúde.
Sob o capitalismo, esse trabalho foi naturalizado e invisibilizado, especialmente no caso das mulheres negras, cujo trabalho de cuidado muitas vezes beneficiava diretamente as classes dominantes. A obra de Federici nos mostra que a opressão de gênero e a exploração racial não são elementos acidentais do capitalismo, mas sim pilares centrais de sua formação e expansão.
A migração forçada das mulheres para ambientes domésticos nucleares e restritivos foi um viço que engoliu os seus direitos e as privou da vida social coletiva. As falsas narrativas em torno da prostituição e a degradação de direitos das mulheres, afeta a luta pela independência feminina ao restringir as mulheres. Portanto, o capitalismo presenteou a sociedade com uma divisão de tarefas por sexo e nas relações de trabalho que dividiu os homens e as mulheres, criando uma relação de poder respaudada em aspectos que à época se definiu como vícios e virtudes femininos (Federici, 2023) que redefiniram a trajetória ideológica dos gêneros e alocou uma política sexual distorcida.
Silvia Federici observa que, enquanto as mulheres europeias foram sujeitas à caça às bruxas e à subordinação patriarcal, as mulheres negras escravizadas nas colônias enfrentaram
uma exploração ainda mais brutal. Na escravidão, as mulheres negras eram forçadas a trabalhar nas plantações ao mesmo tempo em que continuavam sendo responsáveis pela reprodução da força de trabalho. Elas não apenas sustentam economicamente o sistema, mas também biologicamente, sendo tratadas como “bens móveis” cujo valor estava vinculado à sua capacidade de gerar filhos. A autora escreve: “As mulheres escravizadas eram duplamente produtivas: como trabalhadoras e como reprodutoras” (Federici, 2023, pág 154).
Com essa publicação tão importante, Silvia Federici aponta para América Latina, evidenciando a presença dos afrodescendentes e indígenas que permitiram um aprofundamento nas perspectivas feministas e decoloniais. A autora compreende que o fenômeno de caça às bruxas ainda se apresenta na contemporaneidade pelo encarceramento em massa das mulheres negras deturpadas pelo Estado e as violências obstétricas. Silvia Federici sustenta que a colonização está em posição subalterna em relação à caça às bruxas, uma vez que foi somente por meio dessa caça às mulheres inocentes que o capitalismo surgiu e desenvolveu-se. Dessa maneira, a autora provoca como o controle social nos saberes medicinais e de métodos contraceptivos que outrora eram transmitidos por gerações passam a ser sugados na caça às bruxas, não somente ao usurpar o conhecimento mas também nos efeitos de exercícios laborais colocando-as como não trabalhadoras, impedidas de empregos que eram comuns como a fabricação de cerveja, realização de partos, padeiras, açougueiras, para serem levadas apenas aos trabalhos domésticos ou menos produtivos do ponto de vista do capital (FEDERIC, 2023).
A Formação do Capitalismo e Suas Raízes Racializadas e Patriarcais: Cedric Robinson e a Teoria do Capitalismo Racial
O capitalismo foi racial desde o seu início, um sistema que cresceu a partir da exploração de populações racializadas, especialmente negras, para alimentar a acumulação de capital no Ocidente. A teoria do capitalismo racial, apresentada na obra de Cedric Robinson (1983), propõe que a escravidão, assim como o colonialismo e o racismo não foram incidentais ao desenvolvimento do capitalismo, mas centrais para sua formação. As mulheres negras, como resultado, enfrentaram uma dupla opressão — enquanto trabalhadoras exploradas e enquanto corpos racializados e femininos — sujeitas a uma violência estrutural que garantiu a manutenção da hierarquia racial e econômica.
A escravidão transatlântica não foi apenas uma manobra econômica, mas também um sistema racializado que consolidou a supremacia branca e a subjugação de corpos negros. Ao focar nas mulheres negras, essa perspectiva revela como as dinâmicas do capitalismo racial têm impactos duradouros que continuam a moldar as desigualdades contemporâneas.
Em sua obra intitulada “Marxismo Negro: a criação da tradição racial negra”, publicada originalmente em 1983 e traduzida em 2023, Robinson apresenta uma inversão na estrutura de uma determinada intelectualidade negra, que altera o cenário de resistência racial e revisita o histórico de lutas negras e suas particularidades.
Robinson tece críticas ao marxismo clássico, principalmente por não dar a devida atenção ao papel da raça na formação das sociedades capitalistas. Ele argumenta que a classe trabalhadora europeia nunca foi uma entidade homogênea, batendo de frente com a concepção universalista da figura do trabalhador, pois as diferenças raciais e culturais sempre moldaram as relações de poder. Segundo ele, “o desenvolvimento do capitalismo foi, em todas as suas formas, dependente de relações de dominação racial” (Robinson, 1983, pág 123). O colonialismo e o tráfico transatlântico de escravos foram fundamentais para o surgimento do capitalismo moderno, e a exploração de corpos negros foi a pedra angular desse sistema.
No que diz respeito às mulheres negras, a obra de Robinson é essencial para entender esse processo de racialização e opressão. Durante o período colonial, as mulheres negras não apenas trabalharam nas plantações como também desempenharam um papel vital na reprodução da força de trabalho escravizada. Elas eram vistas como “máquinas de reprodução”, sendo forçadas a gerar filhos que, por sua vez, se tornavam mão de obra gratuita para os senhores de escravos. A escravidão das mulheres negras representava uma intersecção entre opressão racial, de gênero e de classe. Para Robinson, a escravização de africanos, incluindo as mulheres, não foi um subproduto do capitalismo, mas um aspecto estrutural da acumulação capitalista.
A ideia de que o capitalismo é racializado também implica que as formas de resistência, especialmente as das mulheres negras, são radicais e profundas. Robinson destaca a tradição radical negra, que inclui a resistência das mulheres negras escravizadas, como um contraponto à dominação capitalista. Essas mulheres resistiram não apenas à exploração econômica, mas também ao controle sobre seus corpos e sua capacidade de reprodução.
Angela Davis e a Interseccionalidade de Raça, Gênero e Classe
Angela Davis, em seu livro “Mulheres, Raça e Classe”, argumenta que as mulheres negras sempre ocuparam uma posição única na estrutura capitalista, sendo oprimidas
simultaneamente por sua raça, gênero e classe. Para Davis, o capitalismo, desde o seu início, explorou as mulheres negras de maneiras específicas e intensificadas, o que tornou suas experiências singulares em relação tanto às dos homens negros quanto às das mulheres brancas.
No entanto, Davis também destaca o papel crucial das mulheres negras na resistência ao capitalismo racial e patriarcal. Desde as revoltas de escravos até o movimento pelos direitos civis, as mulheres negras têm sido figuras centrais nas lutas contra a opressão. Elas desafiam não apenas o racismo estrutural, mas também o patriarcado dentro dos próprios movimentos de esquerda. Davis observa que muitas vezes os movimentos feministas tradicionais ignoram as experiências das mulheres negras, ao focar apenas nas questões de gênero, sem considerar as dimensões raciais e de classe.
Davis defende uma abordagem interseccional para a luta contra o capitalismo, afirmando que “a libertação das mulheres negras é crucial para a libertação de todos os oprimidos” (Davis, 1981). Essa intersecção de raça, gênero e classe nos mostra que o capitalismo não pode ser desmantelado sem que se leve em conta todas as formas de opressão que ele sustenta.
A Formação do Capitalismo a partir da Perspectiva das Mulheres Negras
A partir das obras de Cedric Robinson e Angela Davis, torna-se claro que o capitalismo foi formado e sustentado pela exploração das mulheres negras, e não apenas através do trabalho produtivo, mas também do controle sobre seus corpos e capacidades reprodutivas. A ideia de que o capitalismo racializou e subordinou as mulheres negras é um ponto crucial nas análises desses autores.
A força de heterogeneidade que aprisiona as mulheres nesse sistema é debatido nos trabalhos de Silvia Federici, assim como nos de Angela Davis, portanto este é um ponto de vista e análise comum entre as autoras, para pensar nos antagonismos socialmente observados. De forma ambivalente, Davis faz um movimento de questionamento ao debate feministra branco europeu, colocando em xeque a inexistência de direitos da mulher negra. Para Davis há uma inquietude na relação entre a libertação dos negros e a libertação das mulheres, uma vez que nem mesmo a teoria feminista conseguiu compreender por completo os desdobramentos da divisão social do trabalho; e Federici admite não se engajar neste debate, embora o incorpore superficialmente em seus escritos.
Tendo o trabalho de Davis como base e guia analítico, torna-se clara a limitação da compreensão das explorações vivenciadas por mulheres negras, em obras feministas anteriores e contemporâneas, sobretudo no que diz respeito a processos colonizatórios. O que, por sua vez, restringe parte das obras a cerca desse tema, à um debate feminista exclusivamente branco, desconsiderando por completo a perspectiva de mulheres historicamente racializadas. Desse modo, mesmo com óticas e panoramas distintos, Davis e Federici, compreendem a submissão das mulheres como objeto de extensão do poder masculino, o devir mulher tornar-se intocável e portanto um alvo de conquista, agora a mulher, o servo e o escravo são vistos como extensão dos homens e estão a seu serviço e trabalho.
A noção de reprodução social apresentada por Silvia Federici, produz certas controvérsias dentro do próprio movimento de libertação das mulheres. Davis não só concorda com Federici neste aspecto, mas complementa o debate ao trazer o pacto racial como modelo velado de dupla opressão sobre as mulheres negras com ideologias determinadas de não reconhecimento.
É contra intuitivo pensar estas duas obras e autoras de forma conjunta, considerando que, de primeira vista, a falta de uma menção clara dos efeitos do capitalismo sobre corpos femininos racializados no trabalho de Frederici, acaba por afastar as autoras ideologicamente, contudo, a crítica à teoria marxista às aproxima, apresentando um panorama ainda mais complexo e profundo dos efeitos do capitalismo para mulheres. As análises de Davis sobre interseccionalidade ampliam ainda mais essa compreensão, ao mostrar que a luta contra o capitalismo deve ser interseccional, abordando simultaneamente as opressões de raça, gênero e classe.
O conceito de capitalismo racial de Robinson revela que a raça não foi um elemento secundário, mas sim uma lógica central da exploração capitalista, moldando as relações de poder desde a origem do sistema. As mulheres negras, por serem racializadas e de gênero feminino, experimentaram uma exploração específica que as colocou no centro das dinâmicas de produção e reprodução.
Esses autores, juntos, fornecem uma lente crucial para entender como o capitalismo se formou e como as mulheres negras têm sido tanto oprimidas quanto agentes de resistência dentro desse sistema. Através de suas perspectivas, é possível conceber o capitalismo não apenas como um sistema econômico, mas como um regime de poder que racializa, subordina e explora corpos, especialmente os corpos das mulheres negras.
Conclusão
A análise das obras de Robinson, Federici e Davis sobre a formação do capitalismo a partir da perspectiva das mulheres negras nos oferece uma compreensão profundamente crítica e interseccional desse sistema econômico. Esses pensadores, ao expandirem os limites do marxismo tradicional, revelam como as dinâmicas de raça e gênero foram fundamentais para o desenvolvimento e perpetuação do capitalismo, desde suas origens até suas manifestações contemporâneas.
Federici, acrescenta a dimensão de gênero ao demonstrar como a caça às bruxas na perseguição e violação dos direitos das mulheres, e em particular o controle sobre o corpo e o trabalho reprodutivo feminino, foi crucial para o surgimento do capitalismo. Sua análise da caça às bruxas na Europa e da imposição de novas formas de controle patriarcal destaca que a exploração das mulheres foi fundamental para a acumulação primitiva.
Robinson, por sua vez, ao elaborar a teoria do capitalismo racial, mostra que este sistema nunca foi racialmente neutro. Pelo contrário, as hierarquias raciais foram centrais para sua formação, com a escravização de africanos e o colonialismo sendo componentes estruturais da acumulação de capital. Sua contribuição nos faz perceber que raça e classe não podem ser separadas em uma análise crítica do capitalismo, sendo necessário entender o papel da racialização como intrínseco ao funcionamento e expansão desse sistema.
Davis, em sua análise interseccional, articula raça, gênero e classe para mostrar como as mulheres negras, tanto nas Américas quanto na África, foram duplamente exploradas e oprimidas, desempenhando papeis cruciais no desenvolvimento econômico capitalista. Sua obra destaca a resiliência e a resistência das mulheres negras diante de múltiplas formas de exploração, revelando a capacidade de articulação entre lutas antirracistas, feministas e anticapitalistas.
Ao longo deste trabalho, ficou claro que o capitalismo não pode ser analisado isoladamente da história da exploração racial e de gênero. O sistema capitalista, desde suas origens, não apenas se apoiou na exploração de trabalhadores, mas também se beneficiou de maneira significativa da opressão de mulheres e de populações racializadas. As contribuições de Robinson, Federici e Davis nos mostram que a luta contra o capitalismo deve necessariamente incluir a luta contra o racismo e o patriarcado, reconhecendo que todas essas formas de opressão estão interligadas e se reforçam mutuamente.
Assim, a análise desses autores nos oferece uma lente poderosa para entender não apenas a história do capitalismo, mas também os desafios contemporâneos que ele apresenta, especialmente para as mulheres negras. Compreender essa interseção é fundamental para qualquer projeto de emancipação que busque justiça social, racial e de gênero. Em última instância, ao expandirem as categorias marxistas tradicionais, esses pensadores nos fornecem novas ferramentas teóricas e práticas para imaginar e lutar por uma sociedade mais justa e igualitária, livre das opressões que sustentam o capitalismo global.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
Referências:
DAVIS, Ângela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo. 2016 VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora.2020
DAVIS, A. Women and Capitalism: Dialectics of Oppression and Liberation. In: JAMES, J; SHARPLEY-WHITING, T.D. (Org.). The Black Feminist Reader. Malden; Oxford: Blackwell Publishers, 2000. Pp. 146-182
ZELIZER, Viviana A. “O significado social do dinheiro”. In: MARQUES, Rafael; PEIXOTO, João (Org.). A Nova Sociologia Econômica: Uma Antologia. Oeiras: Celta Editora. 2003.
ZELIZER, Viviana. Dinheiro, Poder e Sexo. Cadernos Pagu, 32: 135-157. 2009 ROBINSON, Cedric. Marxismo Negro: a criação da tradição radical negra. Ed. Perspectiva,
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante. 2023
[1] Graduada em Ciências Sociais com ênfase em Antropologia e Política pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Realizou Iniciação Científica nas áreas da Antropologia Rural e Antropologia Política, com financiamento FAPESP. Desde 2023, integra o Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflitos e Socialidades PPGAS-UFSCAR/PPGAS-USP. E o projeto temático FAPESP: Artes e Semânticas da Criação e da Memória.
[2] Graduanda em Ciências Sociais com ênfase em Antropologia e Política pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Realiza pesquisas sobre o processo de politização de instituições religiosas evangélicas em Taboão da Serra- SP durante o período de 2016-18. Desde de 2023 faz parte do GPPPC- Grupo de Pesquisa Política e Pensamento Crítico/DCP-USP, suas áreas de interesse são: Antropologia Política, Antropologia da Religião, Novas Direitas e Pensamento Político Brasileiro.
Referência imagética: colagem feita a partir de imagens de Silvia Federici (Revista Marie Claire), Cedric Robinson (History of Philosophy) e Angela Davis (University Santa Cruz). Disponíveis, respectivamente, em:
Acesso em: 10 de Fevereiro de 2025.