Jacob Carlos Lima1
26 de março de 2025
No artigo “Sobre empreendedorismo e cultura do trabalho”, argumento que, da mesma forma que tivemos no Brasil, a partir de 1930, a construção de uma cultura do assalariamento marcada pela forte presença estatal na regulação das relações capital-trabalho, a partir da década de 1990, tivemos o início do desmonte dessa regulação e da cultura que a acompanhou. O trabalho formal, manifesto na relação salarial, tornou-se sinônimo de cidadania e de acesso a direitos sociais. A carteira profissional virou símbolo de bom comportamento, de pessoa de bem, do trabalhador. O ideário de um futuro estado de bem estar social, foi substituído pelo neoliberalismo, no qual o mercado é visto como elemento regulador das relações sociais e os direitos sociais, como custos a serem eliminados.
Num primeiro momento, caracterizo a construção de uma sociedade salarial incompleta, restrita a um grupo de trabalhadores mais qualificados organizados, vinculados ao Estado e a grandes e médias empresas. Nesse contexto, a atuação estatal na fiscalização do Ministério do Trabalho, na cultura e na educação , através do MEC, serviu como forma de incutir uma cultura do trabalho assalariado até então inexistente no Brasil.
Num segundo momento, há o desmonte progressivo dessa estrutura, ou pelo menos tentativas de desmonte, a partir de políticas de difusão do ideário empreendedor, políticas de terceirização empresariais e de políticas sociais do Estado, processo ainda em andamento. A proposta foi analisar essa mudança como um processo, no qual uma nova cultura vai se impondo.
A formação da cultura do assalariamento tem sido bem estudada nas ciências sociais brasileiras, destacando majoritariamente o caráter precarizante, tendo como referência o trabalho. Mas existe uma farta produção em disciplinas conexas como Economia, Administração Psicologia, destacando seus aspectos utilitários e mesmo subjetivos a serem incutidos no indivíduo, ora de forma critica, ora em sua positividade.
O empreendedorismo não é um conceito novo. Nas ciências sociais as referências são sempre Weber e Schumpeter. O primeiro analisou o caráter inovador do empresário e os elementos subjetivos e disposicionais presentes na cultura protestante que levaram o indivíduo a trabalhar duro e enriquecer por agradar a Deus, tendo como referência a sociedade norte-americana. Em outros termos, elementos culturais têm forte poder de determinação, recusando o determinismo econômico. O segundo distinguiu o empresário do empreendedor, e a inexistência de uma relação de continuidade entre eles. O empresário não é necessariamente empreendedor e vice-versa. O empreendedor está em todas as classes sociais com uma disposição de inovar, de ousar, de trazer algo de novo nas atividades que desenvolve, e esses indivíduos seriam responsáveis pelas mudanças sociotécnicas que marcam historicamente o desenvolvimento das sociedades. Pensando a recente revolução soviética, discutia que o socialismo seria o espaço por excelência do empreendedorismo, permitindo aos trabalhadores inovarem livremente e se beneficiarem coletivamente. Tal previsão não deu muito certo, dada a burocratização do regime – que, segundo alguns autores, tornou-se um capitalismo de Estado.
Apenas na década de 1970 que o conceito será retomado num contexto de crise do Estado de bem-estar social e avanço político do neoliberalismo, com as propostas de eliminação da intervenção estatal na economia e na mediação das relações capital-trabalho. Thatcher e Reagan aparecem como arautos da nova ordem, que assumiu grande impulso com o desmonte da União Soviética. Seria o fim da proposta socialista e a vitória do capitalismo. O fim da história. O discurso único se impõe: fora do neoliberalismo não haveria desenvolvimento econômico.
A velocidade das reformas neoliberais se deu mais na periferia do que no centro, assim como o desmonte absoluto dos países que compunham o bloco soviético. Na América Latina, inaugura-se com o caso mais emblemático, no Chile de Pinochet já em 1973, evidenciando a desvinculação do neoliberalismo e da democracia liberal, embora a ideologia dominante os trate como sinônimos. Outros países também tiveram reformas traumáticas, que os levaram a crises e bancarrotas, como a Argentina. No Brasil, a nossa década neoliberal teve início a partir dos governos Collor e FHC, este último promovendo as reformas mais profundas.
Na reforma do Estado brasileiro tivemos as privatizações de empresas, a terceirização das atividades e da mão de obra, a desnacionalização da economia e aumento do desemprego e da informalidade. A década de 1990 foi marcada por forte mobilização sindical, capitaneada pelo PT (Partido dos Trabalhadores), que ajudou a postergar algumas dessas mudanças. Em termos ideológicos, através de políticas estatais e da mídia empresarial, o caminho único do liberalismo tornou-se um mantra difundido intensamente.
Os ataques à CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), vista como ultrapassada, e as tentativas de desregulação do trabalho foram tentadas nessa década, mas encontraram ainda forte oposição. Se a terceirização foi sendo aprovada com limites nas relações de trabalho, teve início uma outra terceirização mais sutil, com a criação de OSs (Organizações Sociais) e ONGs (Organizações Não Governamentais) , que passaram a disputar editais de serviços públicos voltados a serviços sociais. O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), inicialmente órgão de Estado, passou a ser um propagador do empreendedorismo, visto agora como solução à imensa informalidade do trabalho e uma forma de dinamizar o capitalismo. A informalidade foi sendo ressignificada como empreendedorismo (mesmo que dos pobres), e criaram-se programas públicos de incentivo, como os Arranjos Produtivos Locais (APLs), na regularização da informalidade na produção e na comercialização de produtos antes vistos como de baixa qualidade, ou mesmo ilegais, quando piratas. Foram criados cursos de formação empreendedora; diversos prêmios de empreendedores do ano e vários adjetivos foram incorporados ao termo, entre eles o empreendedorismo social.
O empreendedorismo social, voltado para inovação e resolução de situações específicas, virou programa de premiação na mídia, destacando esses empreendedores e a atuação das OSs, muitas delas vinculadas a fundações empresariais e que passaram a assumir cada vez mais, atividades sociais terceirizadas. Na cidade de São Paulo, podemos destacar a progressiva passagem das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) para essas organizações e grupos empresariais, chegando aos dias de hoje; a proposta de que colégios públicos estaduais passem para a gestão de empresas privadas, o que já ocorre em outros estados da federação.
A esse empreendedorismo social foram sendo acoplados vários adjetivos que respondem, em certa medida, ora a demandas efetivas presentes em movimentos sociais, ora a propostas de dinamização de mercado e formação de consumidores: feminino, afro, periférico, favelado popular… Prêmios e destaques foram estabelecidos e constam de programas de ONGs, OS e Fundações privadas e mesmo de políticas públicas.. As periferias e favelas viram lócus de investimentos empresariais, diretos ou indiretos, reproduzindo uma “cultura empreendedora” marcada pelo individualismo, pela inovação e tendo o mercado como saída à pobreza. Soma-se a isso, a expansão das Igrejas evangélicas que fortalecem essa ideologia empreendedora com os cultos dos empresários e adjetivos do gênero, além de intervirem na política de forma conservadora nos costumes e “liberal” na economia.
Pesquisa da Fundação Perseu Abramo publicada em 2017 nas periferias da cidade de São Paulo apontou a aprovação popular de políticas públicas de inclusão social e benefícios, embora os entrevistados considerassem que os benefícios recebidos e seu “bom uso” dependia mais do esforço individual do que propriamente da existência dessas políticas.
A ideia de empreendedorismo social foi incorporada pela esquerda política em suas propostas de economia solidária ainda nos anos 1990, recuperando, em certa medida, a posição inicial de Schumpeter na qual o empreendedorismo teria no socialismo seu tipo ideal: empreendimentos solidários geridos pelos próprios trabalhadores através de associações coletivos e cooperativas. Nessa década destacou-se a organização de cooperativas de reciclagem geralmente com apoio estatal e de empresas que se comprometiam com o programa e tendo o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Reciclados criado em 1991, sua ponta mais visível. Outras cooperativas foram organizadas, seja em fábricas recuperadas, seja na organização de trabalhadores de baixa renda como forma de enfrentar o desemprego. A própria Central Única dos Trabalhadores (CUT) organizou a Unisol, ou Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários, voltada a tais empreendimentos . Os resultados foram diversos, como cooperativas sendo vendidas, outras que passaram a terceirizar para empresas, outras mais exitosas passaram a contratar trabalhadores, além daquelas denunciadas pelo Ministério Público como fraude.
Nos governos populares do PT, foi criada a Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária (SENAES), tornando-a uma política pública de fomento a esses empreendimentos. A criação do Microempreendedor Individual (MEI) como forma de enfrentar a informalidade teve o aspecto simbólico de suprimir o nome do trabalhador informal que inclui dezenas de atividades não reguladas e passar a usar microempreendedor, dando uma valoração à essas atividades.
A expansão das empresas de aplicativo de entregas e transporte, que se definem como empresas de intermediação entre o cliente e o prestador de serviços, destacam o caráter empreendedor da atividade, o “seja seu próprio patrão”, a liberdade que possibilita ao trabalhador fazer sua jornada e trabalhar quando quiser. Com a pandemia, o número de trabalhadores nessas atividades multiplicou-se, assim como as pesquisas acerca das condições de trabalho, da precariedade inerente a uma atividade não regulada, do potencial organizacional desses trabalhadores e seus valores políticos. No geral, embora não se reconheçam necessariamente como empreendedores, esses trabalhadores têm resistido à regulação do trabalho proposta pelo atual governo, questionando a rigidez do trabalho formal (celetista), com seus limites de jornadas e seus baixos salários com descontos para a previdência social. No geral, manifestam a incorporação, em certa medida, de uma “cultura empreendedora”, valorizando o esforço individual e a meritocracia, e questionando os sindicatos. Embora haja esforços de organização sindical, suas manifestações, marcadas por reivindicações de equipamentos de segurança (durante a pandemia), contra políticas das plataformas de remuneração e suas mudanças arbitrárias, resistem a qualquer tentativa de regulação estatal da atividade. Depoimentos de trabalhadores reiteram a “liberdade” como um valor fundamental, mesmo que sejam ilusórias, uma vez que as empresas estabelecem formas variadas de controle, seja pelos próprios aplicativos, seja pela avaliação dos clientes, que podem levar à exclusão dos trabalhadores da plataforma. Politicamente, há uma grande identificação com a direita política e seus discursos nas redes sociais, por onde se informam e que utilizam uma linguagem com forte apelo a uma juventude precária sem perspectivas que não sejam o acesso ao consumo e que caracteriza grande parte desses trabalhadores.
As periferias têm se constituído em espaço privilegiado das experiências empreendedoras, e pesquisas recentes têm discutido que tais modelos não seriam apenas precarizantes, podendo ser entendidos também como forma de sobrevivência e talvez mesmo de resistência. Entretanto, temos uma mudança cultural-ideológica que avança sem encontrar projetos políticos alternativos, o que pode explicar a adesão a essa narrativa. Mais que resistência, temos a falta de opção. As ONGs e OSs atuam onde antes estavam movimentos sociais e uma Igreja Católica progressista até os anos 1990. Não que os movimentos sociais tenham desaparecido, mas estes têm assumido novas formas através de coletivos na área cultural, por exemplo. O espaço da política tem se restringido.
A proposta da sociedade salarial organizou a vida social no Brasil durante o século passado construindo normas, valores, comportamentos pessoais, coletivos e formas de luta entre as classes sociais, enfim uma cultura que marcou politicamente o período. Seu desmonte, um lento processo que já dura 30 anos, exige a compreensão do edifício ideológico em consolidação e as mudanças culturais que tem se fortalecido, favorecendo o crescimento da direita política no Brasil. Embora não seja uma particularidade brasileira, reflete os novos tempos de um capitalismo sem limites e suas manifestações políticas, culturais e ideológicas, no qual o trabalho assume novos significados.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
- Jacob Carlos Lima é professor titular do Departamento de Sociologia da UFSCar e autor dos artigos “Participação, empreendedorismo e autogestão: uma nova cultura do trabalho?”, Revista Sociologias, Porto Alegre, v. 12, n. 25), dez. 2010 (https://www.scielo.br/j/soc/a/8hRj9BY85Ffqc9fpYvbjx9c/abstract/?lang=pt); “O empreendedorismo como discurso justificador do trabalho informal e precário” (com Roberto Veras de Oliveira), Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, v. 11, n. 3, set./dez. 2021 (https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/1062); e “Sobre empreendedorismo e cultura do trabalho”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 39, 2024 (https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/7MsRpT6mdpmYDBpTLcrfNkz/). ↩︎
Legenda: Profissional de aplicativo: empreendedor ou “emprecariado”? (Não penso ser necessário a fonte porque foi montagem feita pela Liciane.