07 de abril de 2025
O Boletim Lua Nova republica a nota traduzida da Comissão da ONU sobre a Síria, publicada originalmente em 25 de março de 2025 e disponível no site da United Nations Human Rights Watch. Junto à nota, confira a entrevista concedida pelo presidente da Comissão, professor Paulo Sérgio Pinheiro, a nossa equipe editorial. Agradecemos ao professor por sua gentil contribuição.
A Comissão de Inquérito da ONU sobre a Síria concluiu sua mais recente missão em Damasco, durante a qual o presidente da Comissão, Paulo Sérgio Pinheiro, e a comissária Hanny Megally se reuniram com o Ministro das Relações Exteriores, Asaad al-Shaibani, que se dispôs a manter a cooperação e a garantir o acesso das equipes da Comissão em todo o país. Eles também encontraram outros representantes das autoridades interinas sírias, vítimas e associações de familiares, organizações de direitos humanos e humanitárias, advogados e membros do corpo diplomático.
“Ficamos satisfeitos em continuar nosso engajamento com as autoridades sírias e em discutir, de forma aberta e transparente, as questões relativas aos direitos humanos”, declarou Pinheiro em comunicado ao término da missão.
Durante diversas visitas in loco nas últimas semanas, a Comissão testemunhou a devastação provocada pelo conflito que se arrasta há 13 anos em Harasta, Douma, Zabadani, Daraya e em outras localidades da região de Rif Damasco.
“Visitamos distritos inteiros arrasados pela guerra e pelo saque perpetrado pelas forças do antigo governo, como, por exemplo, o campo de Yarmouk”, afirmou Pinheiro. “Em meio a essas ruínas devastadas, encontramos sírios que retornaram e que estão tentando restaurar suas antigas casas e vidas – um verdadeiro testemunho de sua força e de suas esperanças por um futuro melhor.”
As trágicas cenas de destruição evidenciam que a situação humanitária e econômica não poderia ser mais crítica. Noventa por cento dos sírios vivem com menos de dois dólares americanos por dia. As sanções setoriais impostas ao antigo governo, em resposta às suas atrocidades em massa, agora impedem que os sírios possam reconstruir seu país.
“Encontramos agentes humanitários que explicaram como as sanções não só dificultam a entrega de ajuda e o investimento, mas também restringem o envio de remessas por sírios ansiosos para reconstruir suas casas e suas vidas”, explicou Megally. “A decisão recente da União Europeia de suspender uma série de sanções é um passo positivo que deve estimular uma nova revisão dessas medidas. Suspender ou acabar com as sanções setoriais é mais urgente do que nunca. O desespero econômico alimenta a violência. Milhões de sírios estão, neste exato momento, sem empregos e sem salários, justamente quando o país busca construir um futuro mais promissor.”
A visita da Comissão ocorreu duas semanas após centenas de civis terem sido mortos e feridos em ataques retaliatórios nas regiões costeiras, os quais a Comissão está atualmente investigando.
Nesse contexto, a Comissão acolheu com satisfação o encontro com a comissão nacional de inquérito independente, estabelecida pelas autoridades interinas para examinar os eventos ocorridos na costa, e trocou experiências sobre as melhores práticas para investigações independentes.
“O compromisso dos membros dessa comissão em garantir a responsabilização e estabelecer a verdade de maneira imparcial e que inspire confiança é reconfortante. Incentivamos o comitê – sem precedentes na Síria – a trabalhar de forma absolutamente transparente e a tornar públicas suas conclusões”, afirmou Megally. “A tarefa deles é crucial para esclarecer os fatos e responsabilizar os culpados. O resultado pode servir tanto como um claro impedimento para a repetição dos acontecimentos quanto como um importante passo na reconstrução da confiança em um Estado que respeite o Estado de Direito.”
A Comissão ouviu, tanto de vítimas quanto de atores da sociedade civil, o receio de que a violência e os deslocamentos continuem, mas também se sentiu encorajada ao tomar conhecimento de iniciativas populares que visam restaurar a harmonia social em diversas cidades e vilarejos. Para pôr fim à violência, a Comissão incentiva as autoridades interinas a apoiar essas iniciativas comunitárias, aproveitando o vasto conhecimento e a expertise da sociedade civil síria.
Além disso, após 14 anos de atrocidades em massa, os sírios clamam por justiça e responsabilização. A Comissão se sentiu encorajada pelo claro compromisso do Ministro das Relações Exteriores, al-Shaibani, e de outros representantes, em construir uma Síria que respeite, proteja e promova os direitos humanos para todos, além de avançar com uma justiça transitória que enfrente o legado da repressão do regime anterior. O Ministro também ressaltou que a busca pelos desaparecidos e a obtenção de justiça e responsabilização para as vítimas serão prioridades. A Comissão está pronta para apoiar integralmente tais esforços.
Diversos interlocutores enfatizaram a necessidade de uma comunicação pública mais frequente sobre os progressos nessas áreas. Alguns manifestaram preocupação de que, apesar das melhorias na coleta de evidências e na preservação dos locais dos crimes, as autoridades ainda podem não estar em posição de assegurar todos os locais relevantes, evidenciando a necessidade de maior solidariedade e apoio, tanto nacional quanto internacional.
Representantes da sociedade civil destacaram seu entusiasmo em contribuir para uma nova Síria. Para facilitar suas ações, ressaltaram a importância de enfrentar desafios como os rigorosos requisitos de registro e a confiscação de bens pelo antigo governo.
Todos os sírios com quem os Comissários conversaram ressaltaram os imensos desafios enfrentados por seu país, mas também destacaram sua determinação.
“Eles demonstraram uma determinação e uma força notáveis, mesmo em meio à destruição de sua terra natal. A comunidade internacional não pode permanecer inerte enquanto os sírios emergem de décadas de repressão – este é o momento para ações concretas que auxiliem, ou ao menos não prejudiquem, a transição na Síria”, afirmou Pinheiro. “Fiquei profundamente comovido com os relatos de todos os sírios que compartilharam suas histórias conosco. Eles merecem todo o apoio possível para construir um futuro de paz e dignidade.”
Contexto:
A Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a República Árabe da Síria foi estabelecida em 22 de agosto de 2011 pelo Conselho de Direitos Humanos, por meio da resolução S-17/1. O mandato da Comissão é investigar todas as supostas violações do direito internacional dos direitos humanos ocorridas na Síria desde março de 2011. O Conselho de Direitos Humanos também incumbiu a Comissão de apurar os fatos e circunstâncias que possam configurar tais violações e os crimes cometidos, e, sempre que possível, identificar os responsáveis, com vistas a garantir que os perpetradores dessas violações – inclusive aqueles que possam constituir crimes contra a humanidade – sejam responsabilizados. O mandato da Comissão tem sido reiteradamente prorrogado, tendo sido estendido, mais recentemente, até 31 de março de 2025.
Mais informações sobre o trabalho da Comissão de Inquérito da ONU sobre a Síria podem ser encontradas aqui.
Os membros especialistas da Comissão foram nomeados pelo Presidente do Conselho de Direitos Humanos da ONU para coletar dados sobre supostas violações dos direitos humanos, reunir informações imparciais e fornecer análises independentes. Esses especialistas atuam de forma voluntária; não são funcionários da ONU e não recebem remuneração por seu trabalho. Embora o Escritório de Direitos Humanos da ONU forneça suporte administrativo, técnico e logístico à Comissão, os especialistas exercem suas funções em caráter individual e são independentes de qualquer governo ou organização, inclusive da ONU. As opiniões e pontos de vista apresentados neste documento são exclusivos do órgão investido de mandato e de seus especialistas, não refletindo necessariamente as posições da ONU.
Entrevista
O professor Paulo Sérgio é formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e tem Doctorat en Sciences Politiques pela Science Po, outorgado pela Universidade de Paris VIII. Desde 2001, é professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da USP, onde também foi um dos fundadores do Núcleo de Estudos da Violência (NEV). Com vasta atuação política, Paulo Sérgio foi Assessor Especial do governo Franco Montoro e ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos do governo de Fernando Henrique Cardoso, ocasião em que, durante oito anos, colaborou na área de direitos humanos. Também foi membro fundador da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos e, igualmente, fundou a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns. Com ampla carreira internacional, ele atuou durante oito anos na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e por trinta anos na Organização das Nações Unidas (ONU). Desde 2011, o professor Paulo Sérgio Pinheiro preside a comissão independente internacional de investigação sobre a Síria da ONU, em Genebra, na Suíça.
- Boletim Lua Nova-CEDEC: Durante a missão, a Comissão constatou a devastação significativa em áreas como Harasta, Douma e o campo de Yarmouk. Quais são, na sua avaliação, os maiores desafios para a reconstrução dessas regiões e para o restabelecimento dos mecanismos institucionais e sociais que garantam o acesso a serviços essenciais e direitos básicos?
Paulo Sérgio Pinheiro: Apesar da longa duração e da intensidade do conflito sírio, iniciado em 2011, a capital Damasco permaneceu relativamente preservada desde 2012. Observa-se a existência de bairros residenciais bem conservados, comparáveis a regiões de alto padrão como Higienópolis, em São Paulo. Os danos em Damasco foram pontuais, afetando apenas alguns edifícios específicos — entre eles, o consulado do Irã e uma edificação desocupada supostamente utilizada como depósito de armamentos, alvo de ataque por parte de Israel.
A realidade nas regiões periféricas da capital, particularmente em Rif-Damasco, contrasta profundamente com esse cenário. Um caso emblemático é o campo de refugiados palestinos de Yarmouk, criado em 1977, que chegou a abrigar aproximadamente 120 mil refugiados. À época, a Síria acolhia cerca de 500 mil palestinos expulsos dos territórios ocupados por Israel. O campo, que se constituiu como um bairro densamente habitado, com edifícios de quatro a seis andares, foi severamente bombardeado e saqueado, resultando na destruição quase total da infraestrutura. Atualmente, restam apenas os esqueletos das construções, em uma paisagem urbana completamente desabitada.
O grau de destruição observado em Yarmouk reflete-se, com variações de intensidade, nas principais cidades sírias, em decorrência dos ataques aéreos conduzidos pelas forças do governo Assad, com apoio da Federação Russa a partir de 2015. Tal apoio foi solicitado oficialmente pelo governo sírio para combater grupos armados não estatais.
No que tange à situação socioeconômica, estima-se que cerca de 90% da população viva abaixo da linha da pobreza, conforme parâmetros do Banco Mundial, que a define como uma renda inferior a US$ 5,50 por dia (aproximadamente R$ 486 mensais per capita). A conjuntura agravou-se ainda mais em razão das sanções econômicas impostas por potências ocidentais, que afetaram gravemente a capacidade do Estado sírio de prover serviços básicos e promover a recuperação econômica e social. Sem um alívio significativo dessas restrições, os recursos necessários à reconstrução permanecem inacessíveis.
- Boletim Lua Nova- CEDEC: A suspensão recente de sanções por parte da União Europeia foi apontada como um passo positivo. Como o senhor avalia o impacto dessa medida no processo de reconstrução econômica e social da Síria, e quais ações adicionais da comunidade internacional seriam necessárias para mitigar a crise humanitária e econômica?
Paulo Sérgio Pinheiro: Em resposta à crise humanitária e com o objetivo de incentivar a retomada da reconstrução, o Conselho da União Europeia decidiu suspender algumas medidas setoriais, notadamente nos setores de energia (petróleo, gás e eletricidade) e transportes. Foram também retiradas cinco entidades da lista de sanções, possibilitando o descongelamento de fundos e a disponibilização de recursos ao Banco Central Sírio. Ademais, foram introduzidas exceções à proibição de relações bancárias entre instituições financeiras sírias e aquelas localizadas em Estados-membros, especialmente no que se refere a transações destinadas a fins humanitários e de reconstrução.
Contudo, os Estados Unidos mantêm restrições rigorosas, incluindo o embargo à exportação de produtos norte-americanos, a proibição de comércio de produtos petrolíferos e severas sanções financeiras. Tais medidas geram um impacto considerável sobre a população, criando uma situação de quase isolamento econômico ao longo dos últimos quatorze anos. As sanções também recaem sobre entidades que atuam na comercialização de bens e na prestação de ajuda humanitária, dificultando ainda mais qualquer perspectiva de recuperação.
Nesse contexto, a Comissão das Nações Unidas sobre a Síria tem reiteradamente solicitado a suspensão das sanções setoriais como medida essencial para viabilizar a reconstrução e aliviar o sofrimento da população civil.
- Boletim Lua Nova-CEDEC: Como a Comissão avalia as iniciativas de apuração dos fatos e crimes cometidos durante a guerra civil e responsabilização dos envolvidos? Em que medida essas ações podem contribuir para assegurar a verdade dos acontecimentos, promover a justiça para as vítimas e preservar a memória?
Paulo Sérgio Pinheiro: Ressalte-se que, após seis décadas de regime autoritário, quatorze anos de guerra e menos de quatro meses de uma nova administração, seria prematuro esperar resultados concretos em processos de responsabilização judicial.Apesar dos desafios, o atual governo sírio tem sinalizado abertura à cooperação com organismos multilaterais. A aceitação da colaboração com a ONU, organizações internacionais da sociedade civil e, em especial, com os três mecanismos estabelecidos pelas Nações Unidas para a responsabilização por violações de direitos humanos — a Comissão de Inquérito, o mecanismo investigativo para apuração de crimes e formulação de ações judiciais, e o mecanismo sobre desaparecimentos forçados — pode ser interpretada como um indicativo promissor de engajamento com uma agenda de justiça de transição. Tais iniciativas, embora incipientes, são auspiciosas diante da gravidade e complexidade do cenário sírio contemporâneo.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova