Andréia Fressatti Cardoso[1]
Neste breve texto, nosso objetivo é abordar a característica da textualidade do campo de estudos do historiador descrito por J. G. A. Pocock em “O Conceito de Linguagem e o Métier d’Historien” (2003a [1989]), e a consequente diferenciação em relação a uma história das mentalités (história das mentalidades). Para tanto, analisamos os argumentos apresentados neste artigo com base no que o autor desenvolve em um segundo texto, “O Estado da Arte” (2003b [1995]), em que ele aborda uma vez mais a atividade do historiador do discurso político. Aqui, destacamos a articulação do discurso e da resposta em texto, que indicam que sua história do discurso é fortemente textual. A nosso ver, este elemento é um dos argumentos para a oposição entre história do discurso e história das mentalidades, e aponta para importância que o autor dá às provas das conclusões do historiador do discurso político.
Antes, porém, são necessários alguns apontamentos sobre como Pocock entende a história do discurso político. Para o autor, ela é uma investigação das interações entre langue e parole, de modo que todo ato de fala, enquanto parole, está inserido em um contexto linguístico que lhe precede e determina (langue), mas que também pode modificar e desafiar a partir das proposições que traz em si. Os textos históricos estão situados nos contextos linguísticos pela construção de vocabulários políticos que estes textos recebem, empregam e modificam em discursos identificáveis, (SHEPPARD, 2016). Neste sentido, o método proposto por Pocock para a teoria política propõe a possibilidade de se rastrear as continuidades e rupturas das linguagens nos debates que foram conduzidos e, para isso, é necessário um elemento que permita a rastreabilidade dos vocabulários, propondo-se testes para que o historiador possa distinguir o que observa de invenções suas (POCOCK, 2003a).
Ao analisarmos as metodologias de autores que se centram no texto, é importante notar que se trata não apenas do que literalmente está escrito, mas também outros elementos que compõem a sua formação, como o contexto da escrita, as intenções do autor e, por vezes, até mesmo a recepção que este recebeu, isto é, sua leitura. Texto também não necessariamente precisa assumir a forma escrita, e muito menos a forma de cânones ou grandes obras de teoria política. Podemos encontrar texto político em panfletos, cartas, imagens e, atualmente, até mesmo em gravações de discursos e as manifestações em redes sociais, como os tweets.
Pocock analisa o texto enquanto performance, colocada pelo ator histórico no contexto linguístico; e parte desta análise inclui as respostas que foram apresentadas ao texto. Temos em Pocock, para além dos elementos contextuais e de intenções do autor, a entrada dos leitores, tanto contemporâneos ao texto quanto aqueles que vão lê-lo depois, mas apenas na medida em que ela se articula enquanto uma resposta ao texto do autor. O leitor é importante enquanto também autor, como um contra-autor, que vai receber, empregar e modificar o primeiro contexto (POCOCK, 2003b). A leitura é, assim, inserida em sua análise na medida em que deixa um rastro material.
O texto é compreendido não apenas como o discurso escrito e publicado – mas, para Pocock, há a necessidade do registro dos textos orais, de modo que, em algum ponto eles precisam ser convertidos para materiais que o historiador do discurso possa rastrear. A questão é, antes, de que a história do discurso é formada por articulações textuais que chegam para o uso do historiador, sobrevivendo a partir de sua inscrição em texto. A consequência da textualidade é, portanto, tanto uma vantagem para o estudo do discurso, quanto uma restrição imposta ao historiador, na medida em que ele se prende ao que chegou na forma de texto.
A própria preferência do autor por “história do discurso político”, em oposição à “história do pensamento político”, ou “história das ideias”, indica, de certo modo, a necessidade de articulação do que foi pensado no formato do texto. Em “O Conceito de Linguagem e o Métier d’Historien”, o autor afirma que “a palavra discurso fornece meu ponto de partida” (2003a, p. 64), acrescentando que o campo do historiador é constituído pelos atos de discurso, enquanto atos de fala e escrita, e os contextos em que eles foram emitidos.
A textualidade ganha importância nos estudos de textos do passado: não apenas trata-se do registro que chega ao uso do historiador, mas é também ele o material que permite que se rastreie as interações entre langue e parole, ou seja, a própria aplicação de seu método. O estudo da história do discurso a partir do texto permite que se verifique as continuidades das linguagens e os estudos do vocabulário empregado nos debates políticos. A vantagem de seu método é explícita do seguinte modo em “O Conceito de Linguagem e o Métier d’Historien”:
A vantagem de se estudar dessa maneira a difusão e a criação de uma linguagem está em que isso possibilita ao historiador mapear o campo do discurso e estudar a ação e a transformação se efetuando nele. A desvantagem está em que isso virtualmente confina o estudo – embora o campo seja tão vasto que esse confinamento nem sempre é percebido – à história do discurso registrado: a uma história de textos, literatura e debates interdisciplinares, na qual a resposta a uma ato de escrita e publicação é constatável somente quando essa resposta é, por sua vez, outro ato de escrita e publicação (POCOCK, 2003a, p. 80).
Este trecho também indica sua desvantagem: o confinamento do estudo aos textos escritos e publicados – tanto os textos dos autores quanto as respostas que ele recebeu por este ato. O interesse da história do discurso político, assim, está nos atos de fala e escrita que se tornaram conhecidos (mesmo que posteriormente, no caso de escritos privados, como diários) e nas respostas que foram articuladas do mesmo modo para eles. Isto permitiria ao historiador o material de sua investigação e as provas das continuidades e rupturas das linguagens dos textos do passado.
Pocock traz para a sua análise a resposta que foi elaborada aos atos de discurso dos autores do passado, sejam seus contemporâneos ou seus estudiosos, mas desde que esta resposta também tenha sido articulada. A reação do leitor deve ser enquanto um contra-autor, isto é, fazer uso de texto para endereçar o conteúdo a partir do que foi colocado pelo autor. Nisto, reconhece-se que o discurso atua sobre pessoas (POCOCK, 2003a, p. 82). Este ponto foi expandido em “O Estado da Arte”, do qual destacamos duas passagens. O primeiro deles destaca as características do texto em ser conhecido e evocar respostas, que também devem ser articuladas e conhecidas:
A história do discurso está interessada nos atos de fala que se tornam conhecidos e que evocam respostas, com elocuções que são modificadas à medida que se tornam perlocuções, conforme a maneira como os receptores respondam a elas, e com respostas que tomam a forma de novos atos de fala e de textos em resposta. O próprio leitor se torna um autor, e é exigido do historiador um complexo do tipo de Rezenptionsgeschichte. (POCOCK, 2003b, p. 43)
Neste trecho, destaca-se principalmente o papel da resposta para o rastreio das linguagens, já que caberia ao historiador também compreender em seu estudo uma “história da recepção” (a citada Rezenptionsgeschichte) dos vocabulários; porém, chama-nos a atenção que contém também uma definição de o que compõe a história do discurso: “atos de fala que se tornam conhecidos e evocam respostas”. Logo, o texto precisa ser registrado (convertendo-se os atos de fala em escrita, ou outro registro que chegue ao historiador e que ele possa provar) e conhecido, a ponto de evocar reações, a serem expressas igualmente de modo registrado e conhecido. A resposta que nunca foi proferida não faz parte do campo de estudos do historiador do discurso político, na medida em que ela não foi articulada como um ato textual.
Desta consequência da forte textualidade da história do discurso, segue também que a maioria dos atores da história escrita pelo historiador do discurso político sejam publicistas (não exclusivamente, mas sim em sua maioria). As linguagens que o historiador aprende podem estar no discurso privado, ou até mesmo nos registros do discurso oral; todavia, em algum ponto eles emergem ao público para sua análise. Disso não se segue que são válidos apenas as grandes obras. Pocock afirma que há uma riqueza nos diários, julgamentos políticos e debates, e que há uma riqueza para a história do discurso nos vestígios da história da linguagem oralmente transmitida, ainda que sejam difíceis de se conseguir (POCOCK, 2003a, p. 80).
O outro trecho de “O Estado da Arte” que gostaríamos de destacar aqui aponta para a força que Pocock atribui às provas daquilo que é a atividade do historiador, chegando a mencionar que se está compelido a ter como campo um conjunto empírico que permita a produção de provas:
É verdade que somos compelidos a trabalhar somente com as provas que sobreviveram para o nosso uso, e, portanto respostas a um texto que nunca foram emitidas, ou foram emitidas apenas no discurso falado e não registrado, são virtualmente impossíveis de se resgatar. E é também verdade que um autor que trabalhou em um meio escrito pode ser visto como alguém trabalhando sobre esse meio, alguém que tentou modificar as coisas que podiam ser ditas e feitas nele […]. A mentalité da silenciosa e desarticulada maioria deve, sem dúvida, ser rastreada e, se possível, resgatada. Ela pode conter importantes informações para os historiadores. Mas a história das mentalités não é o mesmo que a história do discurso. (POCOCK, 2003b, p. 43–44).
A questão das provas, e da necessidade de se resgatar os registros dos atos de discurso são caros a Pocock, daí a importância de sua articulação em texto (em especial o escrito). Porém, ele reconhece que há uma outra história, que investiga os estados de consciência – as mentalidades – que, ainda que influentes na ação dos sujeitos, não são articuladas. No trecho, ele se refere à “mentalité da silenciosa e desarticulada maioria”, que não encontra registro no discurso; uma vez que não foi articulada em texto, não se trata de elemento da história do discurso político.
Traçado aqui o limite de seu método proposto, Pocock também nos aponta para alguns questionamentos. De que modo podemos tratar das contribuições não escritas? Em que medida, é possível inserir na história que se constrói o pensamento que não foi articulado e nem tornado público? É possível pensar em um desafio aos estudos hermenêuticos que inserem a leitura como elemento essencial à análise textual, pois é necessário compreender os elementos constitutivos dessa leitura.
Apesar de ser uma “nobre caçada” e do seu valor para o historiador (POCOCK, 2003a, p. 66), a dificuldade em se fazer uma história das mentalités estaria na sua característica de desarticulação, e a consequente ausência de materiais em que se possam rastrear os vocabulários. Podem haver pensamentos e ideias que não foram emitidos, ou se o foram, não foram articulados textualmente para que o historiador possa seguir seu registro. Ausente a textualidade, a aplicação do método proposto por Pocock não é possível a um estudo das ideias e representações, o que o leva a indicar diferenças entre essa história e a que denomina de história do discurso político.
Vemos também neste trecho que há um meio em que os debates ocorrem, e que os contextos linguísticos que o autor esperava continuar ou desafiar são deste meio. Se ele operou um discurso no meio escrito, ele esperava modificar o que podia ser dito e feito pela escrita. A mentalité estaria fora desse mesmo meio, e ao não emergir no formato de texto, seria um material diferente daquele que busca o historiador do discurso. Ele não consegue aplicar o método defendido sobre ideias desarticuladas que não chegaram a ser proferidas. Ele também encontra dificuldades de realizar seu ofício a partir da ausência de registro.
Portanto, o método descrito por Pocock em ambos os textos discutidos aqui, leva às consequências que ele aponta em “O Conceito de Linguagem e o Métier d’Historien”, em especial à textualidade. Mas este elemento textual é importante para compreender a distinção que ele faz entre história do discurso político e história das mentalités, justificando também o fato de que ele não utiliza os termos “história do pensamento político” e “história das ideias”. Da mesma forma, a textualidade vem acompanhada da necessidade do registro dos atos de discurso, sejam eles orais ou escritos, a fim de que o historiador seja capaz de produzir provas acerca de seus argumentos.
Se a característica das linguagens é sua continuidade e a sua transformação (POCOCK, 2003b, p. 30), o seu registro é importante enquanto material do historiador. Não há uma diferenciação entre os tipos de textos produzidos e que participam do debate político; mas coloca-se a necessidade de que sejam textos, no sentido de atos de discurso, seja oral ou escrito, que se tenha registro e sobre o qual o historiador possa se debruçar. Deste modo, o campo do historiador do discurso político em Pocock são os textos históricos e os contextos linguísticos que eles se inserem, presentes em outros textos, formulados antes ou até mesmo em resposta.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências
POCOCK, J. G. A. O Conceito de Linguagem e o Métier d’Historien. In: POCOCK, J. G. A. (Ed.). . Linguagens do Ideário Político. São Paulo: EDUSP, 2003a. p. 63–82.
POCOCK, J. G. A. Introdução: O Estado da Arte. In: POCOCK, J. G. A. (Ed.). . Linguagens do Ideário Político. São Paulo: EDUSP, 2003b. p. 23–62.
SHEPPARD, K. J. G. A. Pocock as an Intellectual Historian. In: WHATMORE, R.; YOUNG, B. (Eds.). . A Companion to Intellectual History. Oxford: John Wiley & Sons, Ltd, 2016. p. 113–125.
[1] Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), com bolsa FAPESP (processo n. 2020/14387-8), e membro da equipe do Boletim Lua Nova. E-mail: afressatticardoso@gmail.com. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP. A primeira versão deste texto foi apresentada durante a realização da disciplina de Teoria Política Moderna, ministrada pela professora Eunice Ostrensky na Universidade de São Paulo no segundo semestre de 2020. Agradeço à professora pelos comentários e, quaisquer questões que permaneçam, são de inteira responsabilidade da autora.
Fonte Imagética: American Academy of Arts and Sciences. Disponível em < https://www.amacad.org/person/john-pocock>. Acesso em 16 out 2022.