Eduardo Lasmar Prado Lopes1
Mariane Costa Matos2
Robson Vitor Freitas Reis3
12 de julho de 2024
Recentemente, o caso de Julian Assange tem sido novamente objeto de atenção e discussão. Assange, um programador australiano, tornou-se uma figura central na discussão sobre o direito de acesso à informação e à divulgação de documentos confidenciais, muitas vezes em detrimento das políticas de sigilo governamentais. Para nós, os desdobramentos recentes de seu julgamento se mostram uma excelente oportunidade de discutirmos um pouco as controvérsias inerentes ao direito à liberdade de expressão. Nessa perspectiva, o texto busca avaliar o recente caso brasileiro, onde a liberdade de expressão ameaçou a higidez do Estado de direito, para refletir sobre a inescapável necessidade de equilibrar esses direitos fundamentais em uma sociedade democrática.
Assange ficou conhecido pelo projeto WikiLeaks. Fundada em 2006, o objetivo da organização de mídia é a análise e divulgação de dados sensíveis (restritos ou censurados) relacionados a guerras, espionagem ou corrupção. Segundo informa seu website, até 2015, o jornalismo praticado pelo WikiLeaks foi premiado mais de 15 vezes por sua atuação.
Em 2013, Chelsea Manning, então soldada na inteligência do exército dos EUA, foi condenada por vazar arquivos secretos de comunicações diplomáticas do Departamento de Estado. A colaboração entre Manning e Assange ocorreu no ano de 2011; no mesmo ano a primeira foi presa, e no ano seguinte o segundo se refugiou na embaixada do Equador em Londres. O vídeo divulgado pelo WikiLeaks, que marcou a disputa, mostrava um ataque dos EUA à capital do Iraque, Bagdá, revelando ao público um incidente que resultou em vários civis feridos. Além disso, o projeto divulgou outros materiais confidenciais fornecidos por Manning, que revelavam uma ação abusiva do país contra civis durante a guerra do Afeganistão.
Embora tenha ocorrido em períodos próximos, o asilo político de Assange em território equatoriano não estava diretamente relacionado à ação do australiano no que é considerado pelos EUA como o maior vazamento de informações confidenciais de sua história. Em 2010, Assange foi acusado de assédio sexual na Suécia, levando o país a solicitar sua extradição ao Reino Unido, local de sua residência. Visando evitar uma possível extradição, o programador e ativista australiano residiu na embaixada do país latino-americano por 7 anos, até o país retirar o apoio e a polícia britânica o deter, em 2019. A prisão de Assange em Londres, por sua vez, já estava relacionada ao pedido de extradição dos Estados Unidos, que buscava julgá-lo em seu território pelos 18 supostos crimes, previstos na Lei de Espionagem de 1917 (Espionage Act of 1917), que ele teria cometido em sua atuação como jornalista.
Em 2021, os tribunais ingleses chegaram à determinação de que Assange deveria ser extraditado para os EUA. Recentemente o caso entrou mais uma vez em escrutínio público quando os Estados Unidos apontaram as garantias que seriam asseguradas ao australiano no caso de sua extradição. O mundo aguarda o veredicto do Tribunal Superior do Reino Unido, que determinará o desfecho do caso em seu território. Este caso é intrigante e controverso, pois o julgamento de um único indivíduo levanta várias questões complexas para discussão. A liberdade de expressão está em jogo, mas, igualmente, a liberdade de exercício da profissão de jornalista. Além dessas mais explícitas, há uma questão de fundo mais diretamente relacionada às acusações sofridas por ele nos tribunais estadunidenses, conectadas aos ditos atos de espionagem. Nesse contexto, entendemos que esse caso nos proporciona uma excelente oportunidade para debater o equilíbrio entre a liberdade de expressão e situações que possam representar uma ameaça aos Estados Nacionais.
Assim, antes de adentrarmos no caso mais diretamente, é relevante recordar o histórico que envolve as acusações relacionadas aos atos de espionagem nos Estados Unidos. Para isso, recordaremos algumas notórias decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos onde a Lei de Espionagem de 1917 (Espionage Act of 1917) entrou em conflito com a garantia do direito à liberdade de expressão.
No caso Schenck v. United States (1919, 249 U.S. 47), por exemplo, ocorrido durante a Primeira Guerra Mundial, a decisão estabeleceu o teste do “perigo claro e presente” para determinar quando o governo pode restringir a liberdade de expressão. Durante a Primeira Guerra Mundial, o governo federal impôs o recrutamento obrigatório para o serviço militar. A imposição desencadeou ação da oposição do Comitê Executivo do Partido Socialista na Filadélfia, que autorizou o Secretário-Geral Charles Schenck a imprimir e distribuir 15 mil folhetos ao público. Nos folhetos, os socialistas argumentavam que a proibição da Décima Terceira Emenda contra a servidão involuntária tornava o recrutamento inconstitucional e, portanto, não deveria ser obedecido.
No entanto, pouco antes, o Congresso havia aprovado o Ato de Espionagem de 1917, que visava proibir condutas prejudiciais ao esforço de guerra. Schenck foi condenado por violar este ato, mas ele apelou, argumentando que a lei violava a Primeira Emenda da Constituição, que garante a liberdade de expressão. A Suprema Corte dos Estados Unidos, em uma decisão unânime, discordou de sua argumentação e manteve a condenação. O juiz Oliver Wendell Holmes, Jr., na decisão, caracterizou a existência de um “perigo claro e presente”, uma vez que os Estados Unidos estavam em guerra na época. Holmes argumentou que a liberdade de expressão não é absoluta e que, em tempos de guerra, certas restrições são justificadas para proteger a segurança nacional.
Esta foi uma decisão que marcou um ponto crítico na interpretação da Primeira Emenda, demonstrando que, embora a liberdade de expressão seja um direito fundamental, ela pode ser limitada em situações onde haja uma ameaça significativa à segurança e à ordem pública. O dito teste de perigo influenciou muitos casos subsequentes relacionados à liberdade de expressão e continua a ser um marco importante na jurisprudência constitucional dos Estados Unidos.
Outro caso importante a mencionar, que envolve a liberdade de expressão e a Lei de Espionagem, notável pela mudança de posição do Juiz Holmes, é o caso Abrams v. United States (1919, 250 U.S. 616). Em 1918, os Estados Unidos participaram de uma operação militar na Rússia contra a Alemanha após a Revolução Russa ter derrubado o regime czarista. Os imigrantes russos nos EUA interpretaram essa intervenção militar como uma tentativa de minar o novo governo soviético. Em resposta, eles distribuíram panfletos pedindo uma greve geral nas fábricas de munição, o que prejudicaria o esforço de guerra dos Estados Unidos. Devido a essa ação, Jacob Abrams foi acusado de violar a Lei de Espionagem. Apesar da dissidência dos juízes Holmes e Brandeis, Abrams foi condenado pela Suprema Corte dos EUA.
Holmes, aparentemente mudando de posição, escreveu em sua dissidência que, embora o panfleto pedisse a cessação da produção de armas, ele não tinha a intenção necessária de incapacitar ou prejudicar os Estados Unidos no esforço de guerra contra a Alemanha. Segundo Holmes, Abrams se opunha à intervenção dos Estados Unidos na guerra civil russa, e não tinha a intenção específica de obstruir o esforço de guerra relacionado ao conflito com a Alemanha. Este caso é conhecido principalmente porque a dissidência de Holmes introduziu o conceito do “mercado de ideias”. O juiz argumentou que a liberdade de expressão deve ser protegida, mesmo em tempos de guerra, a menos que haja uma clara e iminente ameaça de perigo. Ele acreditava que a verdade surgiria do livre intercâmbio de ideias e que a repressão de opiniões divergentes era mais perigosa do que permitir que elas fossem expressas.
Muito embora as decisões não se distanciem tanto, o contraste destaca a evolução de seu pensamento acerca da liberdade de expressão. Ele passou a defender que a proteção das ideias, mesmo aquelas que desafiam o governo, é essencial para uma sociedade democrática. A dissidência de Holmes em Abrams se tornou uma base importante para futuras interpretações da Primeira Emenda e para a defesa robusta da liberdade de expressão nos Estados Unidos.
Agora, voltemos ao nosso foco inicial, Julian Assange e as acusações que enfrenta com base na Lei de Espionagem de 1917. O caso Assange apresenta um desafio moderno para a aplicação da Lei de Espionagem de 1917, já que é uma acusação de divulgação de documentos confidenciais que poderiam ameaçar a segurança nacional dos EUA. Os eventos históricos citados fornecem precedentes sobre como a Suprema Corte dos EUA lidou com questões envolvendo a referida lei. Em todos esses, a Corte aplicou o teste do “perigo claro e presente” para justificar restrições à liberdade de expressão. No caso de Assange, fica o questionamento: a mesma lógica poderia ou não ser aplicada para determinar se suas ações representaram uma ameaça significativa à segurança nacional, justificando assim as acusações sob a Lei de Espionagem? Existiria “perigo claro e presente” ou seria o caso de seguir as posições dos juízes Holmes e Brandeis no precedente Abrams v. United States?
Sem dúvidas, a hipótese necessariamente coloca em debate a questão dos limites à liberdade de expressão em sentido amplo – mais especificamente, da importância da liberdade de informação – e a ameaça à segurança pública nacional. O assunto não é novo. Em célebre precedente, no New York Times v. United States, a Suprema Corte americana entendeu que “não deve haver censura prévia da liberdade de expressão e dos meios de comunicação, a menos que o poder público comprove que, sem essa medida, haverá um dano direto, imediato e irreparável ao país”.
Na ocasião, os jornais New York Times e, posteriormente, The Washington Post divulgaram documentos secretos do governo dos Estados Unidos sobre a história do planejamento interno da política norte-americana sobre a Guerra do Vietnã. Os documentos foram retirados clandestinamente dos arquivos do governo e entregues aos jornais pelo funcionário do Pentágono Daniel Ellsberg. A Corte decidiu, por 6 a 3, que o governo não superou o ônus argumentativo que pende em favor da liberdade de imprensa. A palavra vaga “segurança” não deveria ser usada contra a liberdade prevista na Primeira Emenda, inclusive porque não se comprovou que a publicação causaria um evento inevitável, direto e imediato que colocasse em perigo a segurança das forças estadunidenses.
É evidente a semelhança com o caso Assange. Não é difícil perceber que o fundador do Wikileaks divulgou informações de interesse público sobre eventos socialmente relevantes. Inegavelmente, a relação dos civis mortos no Afeganistão e no Iraque por militares americanos e as torturas em Guantánamo configuram assuntos de interesse público – tanto para os cidadãos dos EUA, tendo em vista a necessidade de accountability de atos de governo, quanto para os cidadãos do mundo, que possuem o direito à verdade e à história. Trata-se, em nossa concepção, de atos protegidos pela liberdade de expressão, visto não haver um dano direto, imediato e irreparável ao país capaz de se sobrepor ao interesse social na divulgação da informação e na sua inserção no debate público. Sendo assim, podemos afirmar que a condução do processo de extradição de Assange coloca em risco a liberdade de imprensa sob a ótica do efeito resfriador (chilling effect) do discurso.
O parâmetro utilizado pela Suprema Corte é bastante relevante na delimitação da fronteira entre segurança pública e liberdade de expressão. Não é qualquer manifestação da liberdade de expressão que coloca em perigo a segurança de um país, não obstante os governos tenham – às vezes boas, às vezes más – razões para esconder algumas informações e proibir determinadas manifestações. No Brasil, o episódio do 8 de janeiro ilustra bem isso. Apesar de haver um quê de protesto contra o status quo, um dos principais fundamentos de defesa da liberdade de manifestação, não se pode negar que os “manifestantes” defendiam golpe de estado, intervenção militar, e advogavam a existência de uma fraude em um processo eleitoral que ocorreu com lisura. Além disso, muitos eram explicitamente simpatizantes da Ditadura Militar, que, como é de conhecimento geral, privou indivíduos de suas liberdades e até de suas vidas.
Somaram-se à defesa da deposição de um governo democraticamente eleito pelo voto popular a existência de uma minuta de golpe de estado ligada ao ex-Presidente da República e ao alto escalão de seu governo e a invasão e a depredação da sede dos três poderes da República. O quadro revela que as “manifestações” trouxeram um dano direto, imediato e irreparável ao país. Fazendo um paralelo com o teste do “perigo claro e presente” da Suprema Corte Estadunidense, havia um risco real e iminente de rompimento do Estado de Direito brasileiro. O contraste entre os casos demonstra que a tensão entre liberdade de expressão e a segurança nacional passa não só pela relevância da informação para o interesse social em sua divulgação ou manifestação. Mais que isso, a expressão e a manifestação, sejam individuais ou coletivas, não devem resultar em danos diretos, imediatos e irreparáveis ao país, que possam ameaçar a segurança dos demais cidadãos, sua soberania ou o Estado de direito e suas principais instituições.
O direito à expressão vem protagonizando relevantes debates no mundo desde o século passado. No Brasil, o período da redemocratização, após a ditadura civil-militar de 1964-1985, ficou marcado por um significativo aumento das demandas da sociedade civil para que esse direito fundamental fosse cada vez mais garantido no ordenamento jurídico. Apesar de ter frustrado as expectativas da época a respeito da regulamentação da comunicação, a Constituição de 1988 apresentou significativos avanços no que diz respeito à liberdade de expressão e o acesso à informação no país. Ela proíbe expressamente a censura de natureza política, ideológica e artística, garantindo assim que a manifestação do pensamento e a expressão não sejam submetidas a qualquer tipo de restrição.
É sabido que a abordagem da liberdade de expressão na Constituição do Brasil reflete um conflito latente durante o período da Assembleia Nacional Constituinte entre grandes empresas e a sociedade civil. Desse fato podemos deduzir uma resposta para a pouca ou nenhuma menção ao equilíbrio entre liberdade de expressão e segurança nacional. Contudo, ela seria mais especulativa que explicativa. Waldron (2012), ao examinar o caso dos EUA, indica que com a consolidação dos Estados Nacionais a probabilidade de certos grupos de pessoas representarem uma ameaça à segurança desses estados em suas manifestações de oposição ou descontentamento torna-se cada vez menor. Contudo, este mesmo autor afirma que a liberdade de expressão depende de um inevitável espaço de contingência concernente aos equilíbrios de poder existentes nessa sociedade. No caso brasileiro, temos um aparato constitucional construído em um contexto em que o Estado havia excedido seus poderes e uma sociedade que buscava uma garantia que fosse além das censuras habituais do Estado, tendo em vista uma imprensa que havia participado e se beneficiado ativamente dessa ação autoritária.
Diante disso, e analisando o episódio do 8 de janeiro, nos questionamos se não seria oportuno debatermos o equilíbrio entre a liberdade de expressão e a segurança/poder de um Estado. Como afirma Manin (1997), a esfera do debate público é uma das principais ferramentas democráticas dos governos representativos. É por meio dela que os cidadãos podem conhecer melhor seus representantes, assim como acessar seus planos e trabalhos, de modo a reivindicar concordância ou discordância com suas condutas. Contudo, essa liberdade não pode ser confundida com tentativa de abolir o Estado de direito, nem as instituições que o compõem. O parâmetro do perigo claro e iminente de dano é um parâmetro relevante para ajudar as Cortes e as demais instituições nacionais a defender a liberdade de expressão sem colocar em risco a integridade do país.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
Referências bibliográficas
MANIN, Bernard. The principles of representative government. Cambridge University Press, 1997.
WALDRON, Jeremy. The harm in hate speech. Harvard University Press, 2012.
UNITED STATES. Supreme Court. Abrams v. United States, 250 U.S. 616 (1919). Disponível em <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/250/616/case.html>. Acessado em 01 de julho de 2024.
UNITED STATES. Supreme Court. New York Times Co. v. Sullivan, 376 U.S. 254 (1964). Disponível em < https://supreme.justia.com/cases/federal/us/376/254/case.html>. Acessado em 01 de julho de 2024.
UNITED STATES. Supreme Court. Schenck v. United States, 249 U.S. 47 (1919). Disponível em <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/249/47/case.html>. Acessado em 01 de julho de 2024.
- Doutorando em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). Mestre em Direito Público e graduado em Direito pela UERJ. Advogado associado do Martins Cardozo Advogados Associados e da Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ (Clínica UERJ Direitos). Ex-assessor de ministros do STF. Professor da pós-graduação do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Vice-Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Distrito Federal (OAB/DF) e ex-Secretário-Geral Adjunto da mesma instituição. E-mail: eduardo-lasmar@outlook.com ↩︎
- Mestra em ciência política pela UFF (Universidade Federal Fluminense), atualmente doutoranda em ciência política pelo Iesp-Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Email: marianecmatos@gmail.com ↩︎
- Doutorando em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro , Mestre em Direito pela Faculdade de Direito e Ciências do Estado da Universidade Federal de Minas Gerais, Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. Servidor Público Federal no Campus de Varginha da Universidade Federal de Alfenas e Advogado registrado pelo Conselho Seccional de Minas Gerais da Ordem dos Advogados do Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5637267621645000; Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0534-6743; e-mail: robsonvitor@gmail. ↩︎
Fonte imagética: Agência Brasil. Manifestantes pedem a liberdade de Julian Assange, fundador do Wikileaks. 20 fev. 2024. Fotografia de Fernando Frazão/Agência Brasil. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/foto/2024-02/ato-pela-libertacao-de-julian-assange-1708466049>. Acesso em: 26 jun. 2024.