Lucas Petroni[1]
Este texto tem como referência o artigo “Igualdade Como Não Subordinação”, publicado pelo autor no número 117 da Revista Lua Nova
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A filosofia política do final do século XX dedicou seus esforços à confecção rigorosa de uma visão distributiva da igualdade. Ao fazer isso, contudo, ela perdeu a oportunidade de incorporar em suas teorias reivindicações igualitárias tal como articuladas em lutas sociais contra regimes de desigualdade reais. É hora da filosofia política voltar a aprender com a história das lutas igualitárias e seu projeto de construção de uma sociedade de iguais.
Igualdade e distribuição tornaram-se sinônimos no vocabulário da filosofia política contemporânea. Nesse sentido, discutir o valor da igualdade equivaleria a compreender as razões que justificam a igual distribuição de algum bem ou oportunidade social entre indivíduos com reivindicações conflitantes. “Tomo como pressuposto”, assim explicava G. A. Cohen na abertura de um artigo clássico, “que existe um algo em relação ao qual a justiça exige que as pessoas tenham em quantidades iguais”[2]. Uma série de perguntas se seguem, naturalmente, quando aceitamos o pressuposto de Cohen: O quedevemos distribuir – o “algo” – igualmente entre as pessoas? Como devemos medir as distribuições relevantes, por exemplo, com base nas oportunidades abertas à cada pessoa (“igualdade de oportunidades”) ou, diferentemente, em relação ao resultado final de suas interações? Como impedir que as pessoas não se aproveitem, ou “peguem carona”, nos esforços produtivos umas das outras? Não é por outra razão que perguntas como essas definiram a filosofia política desde o final do século XX.
Nota-se, contudo, que ao conceber a igualdade como um valor fundamentalmente distributivo, tornamo-la um valor político anormal em relação aos demais. Diferentemente de outros valores fundamentais, como a liberdade ou a solidariedade, a busca por igualdade caracterizaria um bem formal ou mesmo instrumental: duas pessoas somente são iguais do ponto de vista distributivo se desfrutam de quantidades equitativas de alguma coisa valiosa, como recursos econômicos ou bem-estar, independente da própria igualdade. Não haveria nada de intrinsecamente valioso em equalizar duas pessoas quaisquer no que concerne às suas rendas. O que importa no final das contas é que ninguém tenha suas necessidades ignoradas, ou que todas sejam igualmente responsabilizadas por suas escolhas ou, ainda, que elas não sejam discriminadas arbitrariamente. Dito de outro modo, a igualdade torna-se um meio para que recursos, privilégios, e satisfação de bem-estar sejam corretamente distribuídos entre indivíduos
Se isso é verdade, se a igualdade é apenas um meio instrumental para outras finalidades mais importantes do que ela própria, então duas consequências se seguem. Em primeiro lugar, justificamos, em parte, o ceticismo político sobre o estatuto moral da igualdade na cultura política das democracias contemporâneas. A variedade de discursos anti-igualitários deriva, em última medida, da ideia de que a igualdade não constitui um valor moral intrínseco ou, pelo menos, que a igualdade é logicamente subordinada a outras considerações normativas prioritárias, como a liberdade individual, a satisfação de necessidades e a manutenção de procedimentos meritocráticos. Como argumenta Joseph Raz, um dos filósofos anti-igualitários mais importantes do século XX, o que nos motivaria a rejeitar formas graves de desigualdade social não seria propriamente a desigualdade em si mesma, isto é, a diferença de posição entre as pessoas, seria antes “a fome do faminto, a necessidade do necessitado, o sofrimento do sofredor”[3].
Em segundo lugar, torna-se difícil de explicar por que, afinal, movimentos sociais, que tanta energia dedicam à causa igualitária, não formulam suas reivindicações com base em princípios distributivos. Qual o propósito de lutas igualitárias para esses movimentos? Vejamos, por exemplo, como a Coalização Negra por Direitos concebe a sua luta por igualdade racial no Brasil. “Historicamente”, afirma a plataforma da organização, “seguimos enfrentando o racismo, que estrutura esta sociedade e produz desigualdades que atingem principalmente nossas existências. Durante os quase quatrocentos anos de escravização e desde o início da República, somos alvo de violações de direitos, do racismo anti-negro, da discriminação racial, da violência e do genocídio. Mesmo assim, temos construído, com nossas trajetórias individuais e coletivas, a riqueza deste país”[4].
A primeira coisa que chama a nossa atenção é que a luta por igualdade nesse caso é concebida como uma luta contra mecanismos históricos de subordinação social da população negra. Essa subordinação é realizada com base em formas racializadas de injustiça como a violação de direitos fundamentais, que incluem certamente direitos de bem-estar e de participação distributiva na riqueza social, mas também o assassinato sistemático de corpos negros. A desigualdade relevante nesse caso, isto é, o motivo pelo qual precisamos tornar o Brasil uma sociedade mais igualitária, não é facilmente redutível a um problema de distribuição entre grupos sociais diferentes. Quando a Coalização nos lembra do assassinato de cerca de 406 mil vidas negras nos últimos 10 anos, e que o aumento proporcional das mortes de homens e mulheres negras em um quadro de diminuição global no número de assassinatos no país, ou que a pobreza estrutural afeta desproporcionalmente as populações negras e periféricas, não faria sentido algum tentar traduzir o ideal de igualdade por trás dessas reivindicações como uma proposta alocativa de vulnerabilidade entre grupos raciais – uma distribuição mais “equitativa “de mortes injustas ou de pobreza extrema. O objetivo da coalização é a construção de uma sociedade na qual hierarquias injustas não condenem jovens negros e negras à violência e à exploração. Ainda que, de fato, a disparidade de renda e riqueza seja uma das formas mais patentes e injustas do racismo – e quanto a isso a avaliação de princípios distributivos representa um instrumento crucial – o que há de moralmente relevante em dinâmica distributivamente injustas é aquilo que elas expressam: uma sociedade hierárquica comprometida com a desvalorização das vidas negras.
Outro descompasso entre movimentos igualitários e filosofia política é encontrado nas lutas feministas. A luta pelo direito reprodutivo das mulheres, ou pela despatologização de identidades trans, não são fundamentalmente uma luta pela distribuição equitativa de um algo. De fato, a consideração equitativa de interesses generificados constituiu um meio necessário para garantir os objetivos da luta feminista. O ponto é que, novamente, o que torna a luta feminista um caso central para a teoria igualitária é a sua luta pela abolição de hierarquias de gênero injustas que, dentre outros efeitos, também subordinam economicamente mulheres cis e trans. A luta igualitária feminista é indissociável da ideia, revolucionária em sociedades desiguais, de que ser reconhecida como uma igual em interesses, status e visibilidade exige o desmantelamento de hierarquias sociais injustas. Reivindicação essa formulada de modo preciso na abertura do manifesto feminista do Coletivo Comabahee River: “ser reconhecidas como humanas, niveladoramente humanas [levelly humans], é o bastante”[5].
Finalmente, lembremos da célebre Canção do Fronte Unificado (Einheitsfrontlied) escrita por Bertold Brecht no início do século XX contra a ascensão do fascismo, e que sintetizava os compromissos fundamentais das diferentes correntes socialistas: “E porque o homem [Mensch] é um ser humano/ Ele não gosta de botas no rosto! / Ele não quer ver escravos abaixo dele/ e nem senhores em cima tão pouco”[6]. Isto é, a luta socialista é uma luta por uma sociedade sem subordinados nem subordinadores. Reivindicações igualitárias na esfera produtiva possuem uma dimensão distributiva importante: como devemos distribuir de modo justo os benefícios e os encargos da cooperação social? Entretanto, o ideal moral que orienta a resposta a essa pergunta é a criação coletiva de uma economia que não oprima os mais vulneráveis, não explore a maioria, e não aliene a todas e todos nós.
Seja do ponto de vista da história do igualitarismo, seja do ponto de vista das reivindicações igualitárias articuladas em movimentos sociais, o valor da igualdade é mais bem compreendido como a articulação coletiva de um ideal político abrangente em cujo centro se encontram relações interpessoais entre sujeitos livres, iguais e reciprocamente responsáveis pela criação de uma sociedade justa. Ou seja, um tipo inerentemente social de igualitarismo comprometido com a construção de novas institucionalidades e, no limite, uma ordem social incompatível com formas injustas de hierarquias sociais. Ou ainda, se preferimos, uma concepção de igualdade contra formas socialmente instituídas de subordinação.
O artigo “Igualdade como Não Subordinação” é a minha tentativa de articular essa maneira de compreender o ideal igualitário com base nas ferramentas da filosofia contemporânea. Uma nova agenda de pesquisa orientada por uma visão relacional ou social da igualdade sustenta, em primeiro lugar, que o valor da igualdade deve ser entendido como um ideal responsável por governar relações interpessoais e, em segundo lugar, que o objetivo de teorias igualitárias é co-laborar, ao lado das lutas por igualdade, tendo como objetivo político a construção de uma sociedade de iguais, uma forma de vida social na qual possamos negociar livremente nossas diferenças em pé de igualdade.
Tal como eu a compreendo, a igualdade como não subordinação acarreta duas mudanças importantes em relação ao modo como a filosofia política tem concebido a igualdade. Em primeiro lugar, que concepções igualitárias de justiça precisam ser definidascom base em ideais de relações sociais e não pela justificação de princípios distributivos. Definir com precisão o que significa um ideal de relações não é uma tarefa simples e tampouco podemos pressupor que as múltiplas reivindicações igualitárias concorrentes em uma sociedade sejam facilmente conciliáveis, para não dizer mutuamente realizáveis. Contudo, e em segundo lugar, como argumentam as filosofias igualitárias de Iris Young, Elizabeth Anderson, Sally Haslanger, Michelle Moody-Adams e, em certo sentido, até mesmo a filosofia de John Rawls, é metodologicamente infrutífero teorizar sobre a igualdade sem manter um diálogo, ainda que implícito, com a longa e diversificada história dos movimentos políticos igualitários[7]. Isto é, a filosofia política igualitária depende, tanto do ponto de vista prático como conceitual, da história, dos sucessos e também dos fracassos de ações em concerto contenciosas cujo objetivo principal é identificar, desmantelar e reconstruir formas injustas de subordinação social.
Tal como argumentado no artigo, uma reavaliação relacional da igualdade é sustentada com base em pelo menos três teses substantivas. Em primeiro lugar, como já argumentado, o igualitarismo deve ter como objetivo moral um ideal de relações sociais, de tal modo que considerações distributivas, quando necessárias, sejam avaliadas com base nessas relações e não ao contrário. Uma outra maneira de localizar o espaço de princípios distributivos, cuja qualidade e engenhosidade técnica na filosofia contemporânea são indiscutíveis, é reconhecer que considerações distributivas possuem um papel instrumental importantíssimo na luta igualitária. Basta constatar que sociedades extremamente desiguais possuem piores indicadores de saúde e/ou tendem a ser politicamente instáveis, como um papel valioso em si mesmo, quando o controle sobre recursos econômicos permite a grupos sociais uma participação efetiva na vida social e equitativa na disputa política. Entretanto, mesmo naqueles casos em que a luta por recursos representa um objetivo direto da luta por igualdade – pensemos aqui na luta contra o gap salarial entre homens e mulheres no mercado de trabalho formal ou pela remuneração justa da economia do cuidado – elas não exaurem o sentido da construção de uma sociedade de iguais.
Em segundo lugar, e dado o pluralismo de considerações igualitárias, precisamos adotar como central no igualitarismo um pluralismo de razões contra a desigualdade. Um modo de lidar com esse pluralismo é nos perguntando: quais são as situações, os estados de coisas desiguais, que justificariam reconstruções com base em razões estritamente igualitárias? Seguindo a sugestão de Elizabeth Anderson, podemos identificar pelo menos três tipos de hierarquias sociais diferentes e interrelacionadas: (a) hierarquias de obediência, fundada no exercício não responsivo da autoridade (de jure) ou do poder (de facto) por parte de agências superordenadas, das quais a escravidão, a dominação colonial, e a subordinação de classe representam exemplos extremos; (b) hierarquias de estima, caracterizadas pela estigmatização de identidades, estilos de vida ou modos de apresentação social tidos como naturalmente subalternos, desviantes ou moralmente degradados (pensemos aqui em formas arraigadas de discriminação racial e sexual) e, finalmente (c) hierarquias de consideração de interesses, dinâmicas assimétricas nas quais é atribuído um valor especial, ou predominante, aos interesses de grupos superordenados em processos informais de deliberação social ou no funcionamento normal e esperado de instituições sociais. Exemplos de desconsideração institucional de interesses materiais são encontrados na reprodução da pobreza estrutural e nas sobreposições de vantagens produzidas pela acumulação de riqueza, enquanto silenciamentos e descaracterização de valores e perspectivas em trocas comunicativas ilustram casos epistêmicos de desconsideração de interesses.
Por último, a terceira característica do igualitarismo social diz respeito ao papel de conceitos normativamente densos na pesquisa filosófica. Movimentos sociais igualitários tendem a expressar seus objetivos, queixas, e diagnósticos com base em uma gramática politicamente densa, detentora de uma história particular e inserida em disputas políticas determinadas. Eles empregam, portanto, conceitos avaliativos cuja formulação é inextricável das situações políticas nos quais eles são articulados. Diferentemente de categorias normativamente rarefeitas como “dever”, “coerção”, ou “justiça”, que admitem uma análise neutra em relação às realidades às quais se referem; as noções típicas da luta igualitária, tais como objetificação sexual, morte social, racismo estrutural, alienação social, ou mercadorização de relações, identidades e do meio ambiente, são instanciações teóricas indissociáveis de contextos políticos e históricos concretos.
Ao reposicionar as relações sociais como o objeto privilegiado da igualdade, a nova filosofia política igualitária abre caminho para um modo analiticamente mais lúcido e moralmente mais relevante de enfrentarmos o regime de desigualdades crescentes no qual vivemos. Além disso, ela oferece uma explicação filosófica para uma verdade a muito reconhecida pela história das lutas por igualdade, a saber, que o interpessoal (também)é político[8].
*Este texto não expressa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências
ANDERSON, Elizabeth (1999) “What is The Point of Equality?” In: Ethics 109 (2), p. 287-337.
COHEN, G. A. “On the Currency of Egalitarian Justice.” Ethics 99, no. 4 (1989): 906–44.
HASLANGER, Sally (2012) Resisting Reality: Social Construction and Social Critique. Oxford University Press.
MOODY-ADAMS, Michelle (2022) Making Space for Justice: Social Movements, Collective Imagination and Political Hope. Columbia University Press.
RAWLS, John (1971) A Theory of Justice. Harvard University Press.
YOUNG, Iris (1990) Justice and the Politics of Difference. Princeton University Press.
[1] Escola de Economia de São Paulo (EESP/FGV). Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). E-mail: lucas.petroni@gmail.com
[2] Cohen 1989, p. 906.
[3] Raz 1986, p. 240.
[4] O manifesto pode ser lido no site da organização: https://coalizaonegra.files.wordpress.com/2020/01/plataforma-coalizacc83o-negra-por-direitos.pdf
[5] Combahee River Collective 1997, p. 362, grifo nosso. Uma tradução do manifesto pode ser encontrada em: https://bit.ly/3rvWctx
[6] Tradução própria: https://en.wikipedia.org/wiki/Einheitsfrontlied
[7] Young, 1990, Anderson 1999, Haslanger 2006; Moody-Adams 2022. A inclusão de Rawls nesta lista pode parecer surpreendente, tendo visto sua importância para a visão distributiva da justiça. Contudo, como argumenta sua ex-aluna, Michelle Moody-Adams, a teoria política rawlsiana foi influenciada de modo substantivo pela luta dos movimentos por direitos civis na década de 60 dos EUA. Vale notar também que, com a importante exceção de Young, todas as filósofas mencionadas se concebem, de algum modo, como herdeiras das bases relacionais da filosofia rawlsiana.
[8] O artigo não seria possível sem os comentários e incentivos generosos de Nunzio Ali, Márcio Black, Andréia Cardoso, Guilherme Cardoso, Mônica Oliveira, Sebástian Rudas e Raissa Ventura.
Fonte Imagética: Ato no Palácio da Guanabara, no Rio de Janeiro, 2020 (foto: Reprodução/Instagram/@andre.mantelli).