Guilherme Figueredo Benzaquen[1]
A cada mês, as pesquisas sobre endividamento familiar no Brasil garantem manchetes nos principais jornais por conta de seus números expressivos. Algumas vezes essas notícias são acompanhadas de julgamentos morais e da promoção da “educação financeira”. Porém, parece-me insuficiente procurar a interpretação ou explicação desse processo em propensões individuais, abstraindo o que nelas há de social. Por mais que me pareça simplista, pode até existir um componente de “irresponsabilidade” ou “falta de educação” nesses sujeitos endividados – como apregoa uma parte da literatura sobre “educação financeira”. Mas, se o processo é social, há algo a ser dito para além das acusações morais de que “o pobre compra por impulso” e “gasta com aquilo que não precisa”. Proponho, portanto, uma contribuição na compreensão desse processo e de sua relação com a forma corrente das políticas sociais. Essa contribuição é limitada à análise de como o Estado se insere nesse cenário de relações cada vez mais financeirizadas, ou seja, buscarei apresentar brevemente como o governo Michel Temer promoveu a financeirização da pobreza[2].
Parto do pressuposto de que a definição governamental da pobreza está intrinsecamente relacionada com a gestão dos pobres. Definir é uma forma de regular, pois, ao categorizar, o Estado identifica, classifica, auxilia e monitora uma parcela da população. Lavinas (2010) argumenta que qualquer definição do que é ser pobre tem algo de arbitrário, pois distintos critérios podem ser adotados. Vê-se que, nos debates acadêmicos contemporâneos, há um certo consenso de que a definição da pobreza deve ser realizada a partir de perspectivas multidimensionais. Isto é, a literatura sobre desigualdade social tem argumentado que é insuficiente o critério da renda para estabelecer aqueles pertencentes à categoria do pobre – tal qual é feito nas definições das usuais linhas de pobreza. Porém, como argumenta Lavinas (2010), ainda é a falta de renda que prevalece como catalogação daqueles que podem se tornar beneficiários de programas contra a pobreza.
A esse respeito, insiro-me em uma crescente literatura que vem utilizando o conceito de “financeirização da pobreza” para demarcar uma forma específica de lidar com o fenômeno na contemporaneidade. Mader (2015) e Schwittay (2014) fornecem as bases do modo como o conceito é aqui utilizado ao proporem que atualmente a pobreza é conceitualizada hegemonicamente como a incapacidade de gerir satisfatoriamente as finanças pessoais. Em escala global, a pobreza vem sendo compreendida como uma relação exclusivamente financeira, gerando a criação de novas instituições – também financeiras – para administrar o “pobre”. A pobreza se transforma, assim, na base de novas e crescentes relações de crédito que se tornam cada vez mais abrangentes na vida social. Em síntese, a financeirização da pobreza é entendida como um processo de transformação da pobreza em um problema exclusivamente financeiro que requer apenas soluções financeiras.
Concordo que a redução financeira da pobreza é um problema se tomada como pressuposto analítico, uma vez que negligencia aspectos centrais e não financeiros das desigualdades sociais. Porém defendo que esse é o modo de definição e de gestão da pobreza predominantes no governo Temer.
Para abordar a questão, começo contextualizando o objeto de análise, relembrando que estou falando de um período de crise econômica. O que se verifica é que, até o segundo trimestre de 2017, o Brasil apresentou um quadro de recessão com a taxa de crescimento do PIB em sucessivas quedas. A partir do quarto trimestre de 2017, a economia apresentou um cenário de leve melhora, porém, ainda assim, terminou os anos de 2017 e 2018 com um quadro de estagnação, ou seja, com um crescimento baixo e estável ao redor de 1% ao ano (IBGE, 2020).
É preciso atentar, entretanto, que quando as noções de “crise”, “recessão” e “estagnação” são empregadas para esse momento, não se percebe algo que as taxas de crescimento do PIB escondem: os distintos padrões de crescimento de renda nos estratos econômicos do país. Barbosa, Souza e Soares (2020) identificaram que, entre 2015 e 2018, há um crescimento em favor dos mais ricos, com uma queda na renda real da população mais pobre. As taxas de crescimento do PIB tampouco evidenciam que, para os 5% mais ricos, 2016 já é um ano de recuperação econômica, sendo 2018 um ano de crescimento para a metade mais rica da população. Em sentido contrário, a recessão para os que compõem a base do rendimento segue até 2018: os 10% mais pobres ainda perderam rendimento no último ano do governo Temer.
Esse cenário é ainda mais grave se levarmos em consideração os dados a respeito do mercado de trabalho. A série histórica da taxa de desocupação realizada pelo IBGE (2020) revela que 2016 é o primeiro ano desde 2012 a ultrapassar o índice de 10% de desocupados. Durante todo o governo Temer, a taxa se manteve acima de 11,6%, com um pico (13,7%) no primeiro trimestre de 2017. Naquele ano, a série teve sua maior média anual: 12,7%. O que se percebe é que, ao contrário do apregoado por muitos defensores, a Reforma Trabalhista, que entrou em vigor em novembro de 2017, não significou uma queda na taxa de desocupação. Em 2018, os efeitos da Reforma já poderiam ser identificados, não na diminuição dos desocupados, mas no número recorde de 25,4% de trabalhadores informais na população economicamente ativa.
O panorama geral revela que a população mais pobre lidava com uma prolongada crise e que teve, por um lado, aumento no comprometimento de renda e na inadimplência e, por outro, diminuição do endividamento. “Apesar da queda geral nesse período, a faixa até 1 salário mínimo foi a única que apresentou aumento do comprometimento de renda na comparação entre 2016 e 2017, de 23,6% para 25,2%” (BANCO, 2018a, p. 34). Assim como no comprometimento de renda, a inadimplência também só aumentou na faixa até 1 salário mínimo que passou a ter o maior percentual de inadimplência (6,4%). Foi identificado também que 1,4 milhão de beneficiários do Bolsa Família contraíram empréstimos, em média, dez vezes maiores que seus rendimentos mensais, com uma taxa de inadimplência três vezes maior que a dos não beneficiados (BANCO, 2018b). Isso indica uma menor capacidade e disponibilidade de contrair crédito, porém uma maior dificuldade de honrar o pagamento dos créditos contraídos. Diante disso, como o governo Temer buscou lidar com o problema da pobreza?
Identifiquei que o Estado atuou como um promotor direto da financeirização da pobreza com sua concepção de “cidadania financeira” e como credor, através das instituições públicas do Sistema Nacional de Fomento, da população beneficiária de programas de transferência de renda. Isso aponta para uma articulação entre políticas sociais e financeirização, sendo os programas de transferência de renda uma garantia estatal para a inclusão crescente dos pobres em relações financeiras – algo já presente nos governos petistas.
Para o Banco Central, ser um “cidadão financeiro” pleno incluía quatro condições: inclusão financeira, educação financeira, proteção ao consumidor de serviços financeiros e participação. Essa concepção de cidadania era justificada pela defesa de que a financeirização seria um importante catalisador do desenvolvimento sustentável. Seria uma ação que teria um efeito positivo em vários âmbitos, como “erradicação da pobreza; fome zero e agricultura sustentável; saúde e bem-estar; igualdade de gênero; trabalho digno e crescimento econômico; indústria, inovação e infraestrutura; e educação das desigualdades” (BANCO, 2018b, p. 9). O resultado positivo do endividamento é propagado sem uma problematização daquilo que, como vimos acima, os dados do próprio Banco Central demonstram: o aumento do comprometimento de renda e da inadimplência entre os mais pobres.
Essa concepção de “cidadania financeira” é importante, pois foi central para os incentivos efetivos do governo Temer ao crediário popular. Vejamos um caso exemplar. Em 2017, Temer criou o Plano Progredir, definido como “um plano de ações para gerar emprego e renda e promover a autonomia das pessoas inscritas no Cadastro Único (CadÚnico), ou seja, brasileiros com renda per capita de até meio salário mínimo” (MINISTÉRIO, 2018, p. 9). O Plano desenvolveu uma série de ações visando a inserção dos mais pobres no mercado de trabalho e no mercado financeiro. O objetivo declarado do Plano Progredir era “reduzir a pobreza e as desigualdades sociais por meio da inclusão produtiva de famílias em situação de vulnerabilidade social” (MINISTÉRIO, 2018, p. 9). Dentre as ações do Plano Progredir, é importante destacar a concessão de microcrédito que liberou R$ 3,3 bilhões, em 2017, e R$4 bilhões em 2018.
Novamente estamos diante de uma iniciativa do governo Temer que indica a promoção da financeirização da pobreza como política estatal. Aqui fica claro o aspecto da financeirização da pobreza relativo à necessidade de soluções financeiras para um problema de falta de finanças. O Plano, ao priorizar a concessão de microcrédito para beneficiários do CadÚnico, definiu seu público-alvo a partir da falta de renda e propôs como solução para a situação um empreendedorismo possibilitado por produtos financeiros. O Estado funcionava, então, como um promotor da bancarização de sujeitos que se encontravam antes à margem do sistema financeiro e, também, como um criador de garantias para a contração de créditos, já que eles estavam atrelados a programas estatais de transferência de renda.
Por fim, um traço central da política econômica daquele momento tem relação intrínseca com a gestão da pobreza. O governo Temer e seu “teto dos gastos”, traduzido na Emenda Constitucional 95, adotou a tese da “contração fiscal expansionista” capitaneada pela redução dos gastos correntes e a busca de um protagonismo da iniciativa privada com sucessivas políticas de desregulamentação do mercado. Apesar do curto espaço de tempo que nos separa do momento analisado, já se verifica que a política de austeridade baseada no corte de gastos estatais gerou uma diminuição na qualidade e quantidade de serviços públicos em distintas esferas dos gastos sociais, como educação, saúde, cultura, meio ambiente, moradia, etc. (ROSSI; DWECK; OLIVEIRA, 2018). Vemos, portanto, que no governo Temer houve um processo de fortalecimento da transformação da concepção de qual a função a ser desempenhada pelo Estado em sua relação com a pobreza. Está evidente que, usando os termos de Rolnik (2015), o paradigma do Estado provedor de serviços é gradualmente absorvido e negado pelo paradigma do Estado facilitador do pagamento de serviços privados – algo que novamente aponta para as finanças como mediador central da reprodução da vida na pobreza.
Concluo, desse modo, que o governo Temer ocorreu em um período de aumento da desigualdade de renda com um empobrecimento maior dos que já tinham uma menor renda. Diante desse cenário, identifiquei um Estado que impulsionou a financeirização por cortes nas políticas sociais e por ativamente promover a inclusão financeira das populações empobrecidas. Percebi, assim, que ocorreu uma articulação perversa entre aumento da pobreza, precarização do trabalho, promoção do microcrédito e diminuição do fornecimento de serviços públicos de qualidade.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências bibliográficas
BANCO CENTRAL DO BRASIL. Relatório de Cidadania Financeira. Brasília: Banco Central do Brasil, 2018a.
BANCO CENTRAL DO BRASIL. Relatório de Economia Bancária. Brasília: Banco Central do Brasil, 2018b.
BARBOSA, Rogério; SOUZA, Pedro; SOARES, Serguei. Distribuição de renda nos anos 2010: uma década perdida para desigualdade e pobreza. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada — Ipea, Texto para discussão 2610, 2020.
BENZAQUEN, Guilherme. O estímulo do governo Michel Temer à financeirização da pobreza. Revista de Ciências Sociais, v. 53, n. 2, jul./out., p.399–436, 2022. Disponível em: <http://www.periodicos.ufc.br/revcienso/article/view/71799>. Acesso em: 5 jul. 2022
IBGE. 2020. Séries históricas. Disponível em: www.ibge.gov.br. Acesso em: 12/02/2021.
LAVINAS, Lena. Pobreza: métricas e evolução recente no Brasil e no Nordeste. Cadernos do Desenvolvimento, v. 5, n. 7, p. 126-148, 2010.
MADER, Philip. The Political Economy of Microfinance. Londres: Palgrave Macmillan, 2015.
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL. Plano Progredir: manual do pesquisador. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social, 2018.
ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.
ROSSI, Pedro; DWECK, Esther; OLIVEIRA, Ana Luíza. Economia para Poucos: Impactos Sociais da Austeridade e Alternativas para o Brasil. São Paulo: Editora Autonomia Literária, 2018.
SCHWITTAY, Anke. Making poverty into a financial problem: from global poverty lines to kiva. Journal of International Development, v. 26, n. 4, p. 508-519, 2014.
[1] Pós-doutorando em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em sociologia pela mesma instituição. Contato: benzaquenguilherme@gmail.com
[2] Para uma versão mais detalhada dos argumentos aqui defendidos, ver um artigo publicado recentemente (BENZAQUEN, 2022).
Fonte Imagética:
Eunício participa de lançamento de plano para promover autonomia financeira de famílias de baixa renda, Agência Senado (Créditos: Marcos Brandão/Senado Federal). Disponível em <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/09/26/eunicio-participa-de-lancamento-de-plano-para-promover-autonomia-financeira-de-familias-de-baixa-renda>. Acesso em 16 set 2022.