Carolina Leocadio[1]
Elisa Olsson[2]
(…) descíamos para as Terras do Fim do Mundo, a dois mil quilômetros de Luanda, Janeiro acabava, chovia, e íamos morrer, íamos morrer e chovia, sentado na cabina da camioneta, ao lado do condutor, de boné nos olhos, o vibrar de um cigarro infinito na mão, iniciei a dolorosa aprendizagem da agonia. (pos. 24)
Escrita pelo autor português António Lobo Antunes e publicada em 1979, Os cus de Judas é uma obra de caráter semiautobiográfico, na qual o autor, que serviu como médico militar durante a Guerra Colonial Portuguesa em Angola, relata eventos e experiências baseados na sua própria vivência durante esse período.
No entanto, apesar do aspecto autobiográfico, não se trata de um relato factual dos acontecimentos, pois o escritor utiliza na narrativa elementos de ficção, como a linguagem poética e a construção de personagens fictícios, para explorar e expressar suas reflexões pessoais sobre a guerra, a condição humana e a realidade portuguesa da época. Numa narrativa não linear e fragmentada, Lobo Antunes revela as inquietações existenciais de um ser humano na experiência de uma guerra, misturando-a a suas memórias de infância e juventude na Lisboa salazarista.
O título do livro faz referência aos diversos locais em Angola onde o protagonista fica lotado durante a guerra. Todos, na sua perspectiva, são “cus de Judas”, localidades isoladas e esquecidas.
Ao longo da obra, o narrador relembra suas experiências durante a guerra, descrevendo sua rotina e relatando os horrores do campo de batalha, assim como as memórias e traumas que o perseguem após o fim do conflito. O livro também aborda a relação entre Portugal e suas ex-colônias africanas, lançando críticas à política colonialista do país. Ele descreve uma Angola degradada, em plena guerra colonial, e seus vários aspectos: as inúmeras baixas da guerra (desprezadas pelo Estado), os inocentes (as crianças miseráveis), a distância de casa, a perda dos laços familiares, o medo da morte e, sobretudo, a incompreensão da guerra. Isso fica claro em passagens como: “Malanje [cidade angolana], sabe como é, é hoje o monte de destroços e de ruínas em que a guerra civil a tornou, uma terra irreconhecível pela estúpida violência inútil das bombas, um campo raso de cadáveres, de costelas fumegantes de casas, e de morte” (pos. 117). E também:
Os políticos de Lisboa surgiam-me como fantoches criminosos ou imbecis defendendo interesses que não eram os meus e que cada vez menos o seriam, e preparando simultaneamente a sua própria derrota: os homens sabiam bem que eles e os filhos deles não combatiam, sabiam bem de onde vinha quem na mata apodrecia, tinham morto e visto morrer demais para que o pesadelo se prolongasse muitos anos. (pos. 75)
Os cus de Judas é considerado uma obra-prima da literatura portuguesa contemporânea, vindo a ser o primeiro grande livro sobre a Guerra Colonial Portuguesa em Angola e uma referência histórica. Além de seu valor enquanto arte poética, a obra abriu o Ocidente para uma compreensão maior das guerras de independência na África, denunciando os abusos sofridos e os traumas causados ao continente.
No caso específico narrado no romance, a Guerra Colonial em Angola foi um conflito armado que ocorreu entre 1961 e 1974, durante o período em que o país ainda era colônia portuguesa. Foi uma das três guerras coloniais travadas por Portugal nas suas antigas colônias africanas, juntamente com as ocorridas na Guiné-Bissau e em Moçambique (VISENTINI, RIBEIRO & PEREIRA, 2013).
A paz e os caminhos para a construção da paz em Os cus de Judas
Ao analisarmos o aspecto da paz em Os cus de Judas,usamos como base as três abordagens da paz descritas por Anna Jarstad et al. no artigo Three approaches to Peace (2019). Nota-se no romance que a ideia de paz para o protagonista e narrador quase sempre aparece remetendo à vida antes da guerra, tanto da infância quanto a vida que ele deixou em Portugal ao ir para Angola, como costuma ser comum nos relatos de quem vivenciou um conflito tão violento. Ele deseja acima de tudo escapar daquele contexto de violência, em que as pessoas se matam e é impossível para as populações envolvidas, sejam portugueses, angolanos ou outros, viver uma normalidade. Essa fuga para as lembranças do passado aparece em vários momentos do romance, como no trecho descrevendo um dia de Natal na guerra:
Era, portanto, dia de Natal no Chiúme e nada mudara. Ninguém da família estava ali comigo, a casa do avô, com o seu jardim de estátuas de loiça, o lago de azulejos e a estufa em que a sala de jantar se prolongava, permanecia dolorosamente ancorada em Benfica, atrás do portão cor-de-tijolo e do pátio repleto dos automóveis das visitas, as pessoas, endomingadas, deviam estar a chegar para o almoço, as criadas antigas da minha infância serviam as chávenas da sopa, dentro em breve a avó mandaria um neto chamar o pessoal para lhes distribuir embrulhos moles constelados de estrelas prateadas (meias, roupa de baixo, camisolas, ceroulas), numa pompa lenta de cerimônia Nobel. Sentado na cama, defronte da vastidão verde-amarela da chana e da trovoada a inchar sobre o Quando, lembrei-me das tias velhíssimas nos andares enormes da Alexandre Herculano e da Barata Salgueiro, mergulhados numa eterna penumbra onde cintilavam cálices e bules, tia Mimi, tia Bilu, um senhor doente a babar interjeições numa poltrona, sujeitos idosos que puxavam a risca da orelha para mascarar a calvície e me beliscavam a bochecha com dois dedos distraídos, pianos verticais, o retrato assinado de D. Manuel II, latas de biscoitos com cenas de caça na tampa. O passado, sabe como é, vinha-me à memória como um almoço por digerir nos chega em refluxos azedos à garganta, o tio Elói a dar corda aos relógios de parede, o mar feroz da Praia das Maçãs no Outono esmurrando a muralha, os grossos dedos subitamente delicados do caseiro inventando uma flor. Pulara sem transição da comunhão solene à guerra, pensava eu a abotoar o camuflado, obrigaram-me a confrontar-me com uma morte em que nada havia de comum com a morte asséptica dos hospitais, agonia de desconhecidos que apenas aumentava e reforçava a minha certeza de estar vivo e a minha agradável condição de criatura angélica e eterna, e ofereceram-me a vertigem do meu próprio fim no fim dos que comiam comigo, dormiam comigo, falavam comigo, ocupavam comigo os ninhos das trincheiras durante o tiroteio dos ataques. (pos. 77)
Nesse cenário de guerra, as três abordagens da paz descritas por Jarstad et al. não podem existir, seja a situacional (no sentido de ausência de violência e presença de ordem política), a relacional (em que os atores envolvidos teriam uma relação pacífica, de não dominação e reconhecimento mútuo) ou a ideacional (como a paz deveria ser para todos os atores envolvidos). Aproximando-se da ideia de paz ideacional, obter a paz para o narrador significaria sair daquele local, dos “cus de Judas” onde ele estava sendo obrigado a permanecer e testemunhar atrocidades; seria retornar para a família e encontrar de volta a normalidade de sua vida; e seria acima de tudo o fim daquela guerra e dos poderosos que fizeram com que ela acontecesse:
queria estar a treze mil quilômetros dali, a vigiar o sono da minha filha nos panos do seu berço, queria não ter nascido para assistir àquilo, à idiota e colossal inutilidade daquilo, queria achar-me em Paris a fazer revoluções no café, ou a doutorar-me em Londres e a falar do meu país com a ironia horrivelmente provinciana do Eça, falar na choldra do meu país para amigos ingleses, franceses, suíços, portugueses, que não tinham experimentado no sangue o vivo e pungente medo de morrer, que nunca viram cadáveres destroçados por minas ou por balas. O capitão de óculos moles repetia na minha cabeça A revolução faz-se por dentro, e eu olhava o soldado sem cara a reprimir os vômitos que me cresciam na barriga, e apetecia-me estudar Economia, ou Sociologia, ou a puta que o pariu em Vincennes, aguardar tranquilamente, desdenhando a minha terra, que os assassinados a libertassem, que os chacinados de Angola expulsassem a escória covarde que escravizava a minha terra, e regressar, então competente, grave, sábio, social-democrata, sardônico, transportando na mala dos livros a esperteza fácil da última verdade de papel. (pos. 108)
No entanto, ele reconhece a incapacidade de voltar a como era antes depois de todos aqueles acontecimentos e depois de viver em meio a tanta violência, daí a afirmação de que mesmo a paz ideacional não é real:
Quem veio aqui não consegue voltar o mesmo (…), cada um de nós, os vivos, tem várias pernas a menos, vários braços a menos, vários metros de intestino a menos, quando se amputou a coxa gangrenada ao guerrilheiro do MPLA apanhado no Mussuma os soldados tiraram o retrato com ela num orgulho de troféu, a guerra tornou-nos em bichos, percebe, bichos cruéis e estúpidos ensinados a matar. (pos. 82)
A guerra em Os cus de Judas
Considerando a definição de guerra tradicional segundo a teoria do general prussiano Carl von Clausewitz, elaborada no século XIX e ainda hoje relevante para os estudos e legislações referentes à guerra, o conflito em Angola descrito em Os cus de Judas não se encaixaria em seu modelo de guerra. Isso porque o conflito não seria travado entre Estados soberanos racionais (CLAUSEWITZ, 2003), mas sim causado por grupos independentistas angolanos que iniciaram uma luta armada contra o domínio colonial português, buscando a independência de Angola.
Também contrariando o sentido de guerra clausewitziana, esse conflito foi caracterizado por ataques guerrilheiros, emboscadas, bombardeios, sequestros e outras formas de violência. E tanto as forças portuguesas quanto os movimentos independentistas cometeram atrocidades durante a guerra, inclusive tendo como alvo a população civil. Assim, a guerra narrada em Os cus de Judas se aproximaria mais do olhar defendido por John Keegan em A History of Warfare (1993), segundo o qual não é possível generalizar a experiência da guerra num único modelo, pois ela seria uma atividade cultural e não existiria uma natureza única às guerras, por isso devendo ser compreendida a partir de cada caso concreto.
António Lobo Antunes nos apresenta uma perspectiva da guerra que dialoga muito com a visão liberal de Norman Angell sobre a guerra em A grande ilusão (2002), pois o narrador deixa claro em diversos momentos o quanto ele acredita que aquele conflito não poderia de fato trazer vantagens e riquezas a Portugal, apenas traria perdas e dificuldades – o que de fato se mostrou verdadeiro. Segundo Angell, a guerra gera apenas perdedores por ser demasiado custosa e porque a riqueza pertenceria à população local, não podendo ser transferida, a despeito do Estado que governasse o local. Nessa concepção, a ilusão de Portugal foi pensar que manter o território angolano lhe traria riqueza pela simples posse do território. Sob um prisma mais amplo, foi exatamente isso que causou a guerra, ou seja, a tentativa de dominação e usurpação por parte de Portugal dos recursos daquela região. Essa opressão acabou gerando a revolta da população (que seria a dona, por direito, daqueles recursos).
Para além disso, a guerra de fato se tornou custosa e gerou prejuízos irreversíveis a Portugal, e sobretudo para as populações dos dois países. As operações militares se tornaram cada vez mais dispendiosas e impopulares, gerando críticas e divisões na sociedade portuguesa. A guerra acabou levando ao enfraquecimento do regime salazarista e à consequente Revolução dos Cravos em 1974, movimento militar que resultou na queda do regime e no fim do domínio colonial português (VISENTINI, RIBEIRO & PEREIRA, 2013).
Nesse sentido, o olhar de Angell sobre a guerra se assemelha bastante ao do narrador-personagem da história em Os cus de Judas. Para ele, a guerra é revoltante, dolorosa, incompreensível e imbecil, e acima de tudo inútil. Afirma o narrador: “Em Mangando e Marimbanguengo, vi a miséria e a maldade da guerra, a inutilidade da guerra nos olhos de pássaros feridos dos militares, no seu desencorajamento e no seu abandono” (pos. 107). Todo o livro sustenta essa visão sobre a guerra. Em várias passagens fica clara a impossibilidade de encontrar na guerra um sentido e ele ressalta a inutilidade dela, tal como nos seguintes trechos:
(…) são os guerrilheiros ou Lisboa que nos assassinam, Lisboa, os Americanos, os Russos, os Chineses o caralho da puta que os pariu combinados para nos foderem os cornos em nome de interesses que me escapam, quem me enfiou sem aviso neste cu de Judas (…) quem me decifra o absurdo disso (…). (pos. 27)
Trazíamos vinte e cinco meses de guerra nas tripas, vinte e cinco meses de comer merda, e beber merda, e lutar por merda, e adoecer por merda, em cair por merda, nas tripas, vinte e cinco intermináveis meses dolorosos e ridículos nas tripas Trazíamos vinte e cinco meses de guerra nas tripas, de violência insensata e imbecil nas tripas. (pos. 113)
Considerações finais
Ao longo deste artigo nos propusemos a investigar as ideias de guerra e de paz dentro de Os cus de Judas, de António Lobo Antunes, e esperamos ter conseguido demonstrar através da análise de fragmentos da obra o modo como a visão dos dois conceitos no romance dialoga com os estudos realizados por importantes teóricos e pesquisadores dos temas ciências políticas e relações internacionais.
Os diversos conceitos de guerra e de paz trabalhados a partir das experiências trazidas no romance Os cus dos Judas se revelaram uma interessante ferramenta de análise. Transportá-los e analisá-los a partir da obra poética e ricamente sentimental possibilitou um novo olhar sobre o conflito em Angola, o que levou às aproximações com a visão de Angell sobre a guerra e sua inutilidade, mas também nos fez perceber que o conceito de paz no livro é abrangente e complexo, como o é a natureza humana no seu viver, permeado de subjetividade.
Em última análise, pode-se afirmar que essa inutilidade da guerra, e mais ainda, sua nocividade para todos os envolvidos, acabou se revelando verdadeira tanto para Angola quanto para Portugal. Se Angola conquistou a duras penas a tão desejada autonomia em relação à antiga metrópole, as consequências para a sociedade, a infraestrutura e a economia angolanas se mostraram desastrosas. O mesmo se pode dizer sobre as imensas perdas e o enfraquecimento que Portugal sofreu empreendendo tamanhos esforços e capital para tentar preservar um modelo econômico ultrapassado e não mais desejado pelo mundo das décadas de 1960 e 1970.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
ANGELL, Norman. A grande ilusão. São Paulo: Editora UnB, 2002, p. 21-35.
ANTUNES, António Lobo. Os cus de Judas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007. Edição digital.
CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 75-93.
JARSTAD, A. et al. 2019. Three approaches to peace: A framework for describing and exploring varieties of peace [Working paper]. Umeå Working Papers in Peace and Conflict Studies No. 12, Department of Political Science, Umeå University, Umea, Sweden, 2019.
KEEGAN, John. A History of Warfare. New York: Vintage Books, 1993, p. 1-60.
VISENTINI, Paulo; RIBEIRO, Luiz Dario; PEREIRA, Analúcia. História da África e dos africanos. Rio de Janeiro: Vozes, 2013, p. 99-144.
Referências imagéticas: António Lobo Antunes au Salon du livre de Paris lors d’un tête-à-tête avec Jean d’Ormesson (Mars, 2010/Georges Seguin). Disponível em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Antonio_Lobo_Antunes_20100329_Salon_du_livre_de_Paris_2.jpg>. Acesso em 24 ago 2023.
[1] Bacharel em Letras/Português e Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, graduanda em Relações Internacionais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: carolinaleocadio@gmail.com
[2] Bacharel em Comunicação Social/Relações Públicas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Jornalismo, graduanda em Relações Internacionais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.