Renata Meirelles1
29 de julho de 2024
Resenha sobre o texto: “Notas sobre a atuação da Igreja Católica durante a Ditadura: a formação das Comunidades Eclesiais de Base na região da Baixada Fluminense (1964-1988)”, publicado no n. 121 da Revista Lua Nova.
Como a Igreja Católica agiu em relação aos crimes da Ditadura no Brasil? Como se formaram as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) durante o período da ditadura militar? O que a formação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) tem a ver com a atuação da Igreja Católica em relação à ditadura? Qual a relação das CEBs com os movimentos populares, a exemplo dos movimentos de bairro que floresceram na década de 1980?
A fim de responder a essas perguntas é preciso recuar algumas décadas no tempo para compreender o conjunto mais amplo de transformações pelas quais a Igreja Católica passou após a Segunda Guerra Mundial. Durante o conflito, a Igreja Católica silenciou sobre os crimes nazistas. Em 1958, tem início o pontificado do Papa João XXIII, que representou um momento de mudança para a Santa Sé. As encíclicas Mater et Magistra, a Pacem in Terris, publicadas respectivamente em 1961 e 1963, buscaram reposicionar a Igreja frente à nova configuração geopolítica da Guerra Fria e da emancipação política de novos países nos continentes asiático e africano. O pontificado de Papa João XXIII representou um marco no processo de transformação da Igreja, sobretudo a partir da convocação do Concílio Vaticano II (1962-1965) e, mesmo após sua morte, seu sucessor, Papa Paulo VI, deu prosseguimento às profundas transformações na Igreja por ele iniciadas.
No Concílio, formulou-se a concepção de uma Igreja comunitária, sendo enfatizada a missão social da Igreja, a importância do laicato e o ecumenismo, havendo uma modificação da liturgia para torná-la mais acessível. O Concílio Vaticano II teve impactos significativos na América Latina, sobretudo no Brasil, de modo que muitos teólogos, pastores, padres e leigos, que antes já defendiam uma Igreja voltada aos pobres, tiveram sua atuação legitimada pela cúpula da instituição. Na América Latina, a reunião do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), em Medellín, no ano de 1968, consolidou muitas das orientações do Concílio Vaticano II no sentido de uma Igreja mais próxima e acessível a seus fiéis, tendo impulsionado importantes transformações no continente. As resoluções da Celam visaram estabelecer: conexões entre fé e justiça; a necessidade de mudanças estruturais na América Latina; a ênfase em uma Igreja voltada aos pobres; e a ideia de que a salvação é um processo que tem início na Terra.
Os bispos reunidos em Medellín decidiram transformar as CEBs em uma das prioridades da Igreja latino-americana, pois estas eram vistas como espaços especialmente apropriados para lidar com os pobres. As CEBs eram pequenos grupos compostos, em média, por 15 a 25 participantes, que geralmente se reuniam uma vez por semana para discutir a Bíblia diante de questões contemporâneas. Em suas origens, os objetivos dessas comunidades estiveram relacionados à facilitação da evangelização, ao melhor desenvolvimento da educação religiosa e à promoção de uma participação leiga mais envolvida nas atividades cotidianas das igrejas. As CEBs foram, essencialmente, comunidades destinadas à propagação da fé católica, nas quais emergiram novas formas de catecismo, liturgias, vivência comunitária e teologia. Eram grupos com liderança leiga, mas numa estrutura criada e apoiada pela hierarquia da Igreja Católica.
As CEBs foram originalmente pensadas como um meio de fortalecer a presença da Igreja, em especial nas localidades nas quais havia carência de padres. Desde seu início, estiveram intimamente ligadas à hierarquia da Igreja e foram, em sua maioria, criadas por sacerdotes e freiras. Já no início da década de 1970, as CEBs se consolidaram a partir de lideranças leigas e se tornaram organizações eminentemente populares, apesar de terem estrutura sustentada pela hierarquia da Igreja.
Em sintonia com as inovações introduzidas pelo Concílio Vaticano II, as comunidades nascentes foram incorporando as ideias e as práticas efetivas da participação de cristãos leigos nas atividades de evangelização e de celebração da fé, por meio da organização de conselhos em vários níveis e do compromisso com a realidade social. Aos poucos, os agentes pastorais começaram a promover encontros de comunidades vizinhas para troca de experiências, convivência e fortalecimento de suas comunidades locais. Com isso, a experiência ultrapassou a mera descentralização de paróquias, com o intuito de constituir amplas redes comunitárias.
Na década de 1980, havia registro de cerca de oitenta mil comunidades em todo território brasileiro. O artigo, publicado na edição mais recente da Lua Nova, mostra que as CEBs, na Baixada Fluminense, tornaram-se um dos poucos espaços existentes de promoção de movimentos populares como os movimentos de bairro no âmbito da sociedade civil.
Até a década de 1980, a Igreja Católica tinha como estratégia a promoção das CEBs. Por razões que ainda não são claras, a instituição abandonou o projeto das CEBs, que coincidiu com o início da perda de seus fieis em solo brasileiro. Sem a pretensão de esgotar o assunto ou oferecer respostas simples às questões levantadas, o texto procura lançar luz sobre este momento da história do Brasil, em que essas CEBs impulsionaram movimentos populares e estimularam a participação política de suas comunidades em um momento de forte repressão.
Nas últimas décadas, as CEBs sofreram um declínio em suas atividades, e o Brasil, conhecido por ser um dos países com maior número de católicos do mundo, assistiu à queda do número do número de fiéis da Igreja. Os católicos caíram de 124,9 milhões, em 2000, para 123,2 milhões em 2010. Quais as razões por detrás da queda no número de católicos no Brasil?
Em números absolutos, a queda do número de católicos foi pequena (1,7 milhão)2. Todavia, na medida em que houve um aumento populacional no Brasil entre 2000 a 2010, quando a população subiu de mais de 169 milhões de habitantes para aproximadamente 190,7 milhões de pessoas, proporcionalmente a população de católicos encolheu no Brasil de maneira significativa nesse intervalo de 10 anos: de 73,6% para 64,6% da população brasileira. O número de evangélicos no Brasil, por sua vez, cresceu cerca de 61,5% nesse mesmo intervalo, com 16 milhões de novos fiéis3.
Sem a pretensão de oferecer explicações simplistas para o declínio acentuado da população católica do Brasil, o artigo recém-publicado buscou colocar em perspectiva as diferentes estratégias que o Vaticano recorreu nas últimas décadas para a expansão da fé católica.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
- Doutora em História Social – USP e Professora-substituta em História do Brasil Contemporâneo (DHist – UFRRJ), Seropédica, RJ, Brasil. ↩︎
- Dados dos Censos de 1991, 2000 e 2010. ↩︎
- Rodrigo Viga Gaier. “Número de evangélicos cresce 61% no Brasil, diz IBGE” .https://www.terra.com.br/noticias/brasil/numero-de-evangelicos-cresce-61-no-brasil-diz-ibge,c0addc840f0da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html?utm_source=clipboard Acesso em 9 de maio de 2014. ↩︎
Referência imagética: Papa João XXIII. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?search=papa+joao+XXIII&title=Special:MediaSearch&go=Go&type=image. Acesso em 21 jun 2024.