Boletim n.7 – CIENTISTAS SOCIAIS E O CORONAVÍRUS
Este texto é parte de uma série de boletins sequenciais sobre o coronavírus e Ciências Sociais que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEG), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll).
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Vinícius Müller*
Ao longo da História foram tantos os episódios nos quais sociedades enfrentaram riscos biológicos, que escolher um como exemplo sempre revelará um traço de arbitrariedade. Pois, não só sugere certa preocupação específica de quem está escolhendo, como também revela as bagagens que cada um que se aventura em entender a História carrega. Ou seja, o que define se escolho indicar a Peste Negra europeia ou o impacto das doenças ‘europeias’ em populações nativas da América como parâmetro de uma analogia histórica? Qual é mais pertinente para refletirmos sobre a crise que enfrentamos nestes dias de 2020? Tais escolhas são ampla e certamente sustentadas pelas leituras prévias e experiências profissionais de quem a exerce.
Portanto, o risco é grande, mesmo que deva ser assumido. E, por isso, um dos caminhos talvez seja aquele que apresente a maior chance de mitigação destes riscos, mesmo que sob uma outra ameaça: o de parecer excessivamente conservador, escolhendo um objeto menos aberto à novidade ou, em outras palavras, consagrado. Poderíamos chamar de clássico.
Desta forma, a lembrança imediata quando, por força do ofício, sou questionado a olhar concomitantemente para a História e para a realidade que nos força a desafiar uma nova ameaça biológica, a do COVID-19, a minha primeira referência é o trabalho de Nicolau Sevcenko, A Revolta da Vacina (Cosac Naify, 2010). Publicado em sua primeira edição no ano de 1984, este pequeno livro se mostrou já em minha primeira leitura como fundamental ao entendimento dos limites de uma República que, então em suas experiências iniciais, ainda não incorporara a população em suas esferas decisórias. Principalmente naquelas que indicam a capacidade real de inclusão social; ou seja, não porque, suposta e simplesmente, inclui a população passivamente como receptora das políticas decididas por alguns. Mas sim, aquela que inclui porque coloca a população em posição de decidir.
A revolta, analisada por Sevcenko, ocorreu em 1904 na cidade do Rio de Janeiro, então capital do país. Em resumo, ela ocorreu a partir de uma recusa da população carioca em receber a vacinação contrária à varíola, doença que se tornava epidêmica na cidade. E a resposta do governo do presidente Rodrigues Alves – por ironia do destino, o mesmo que 14 anos depois faleceu devido aos efeitos da gripe espanhola – foi a implantação de uma política de vacinação obrigatória à população da capital. Daí a recusa da população, deflagrada no episódio que ficou conhecido pelo movimento que dá nome ao título da obra de Sevcenko.
Em uma segunda leitura do livro, o que mais me encantava era como, por toda a obra, o que estava em jogo era, além das questões que ganharam minha atenção durante a primeira leitura, a dificuldade enfrentada pelo país em construir um profundo ‘espírito republicano’. Ao contrário, mesmo que formalmente estivéssemos sob um regime republicano desde 1889 a irresponsabilidade dos atores históricos envolvidos com o episódio de 1904 era latente: imprensa, líderes públicos, comerciantes, população afetada pelas decisões do governo. Todos muito convictos de suas posições, mas pouco imbuídos de um ideal republicano que envolve e, na verdade se sustenta, sobre um forte sentimento de responsabilidade pública. Não só por quem detém o poder público, mas por todos os cidadãos. Ou seja, a recusa em se submeter à política de vacinação foi também reflexo da falta de um espírito republicano, e não só, como entendi na primeira vez que li o livro, uma expressão da ‘luta’ entre a população e o governo.
Se a identificação da lacuna aberta pela falta de espírito e responsabilidade republicana caracterizou minha segunda leitura da obra de Sevcenko, não menos importante é perceber o pouco preparo do governo republicano do então presidente Rodrigues Alves, e principalmente do prefeito carioca, Pereira Passos, em lidar com a situação que envolvia a epidemia de varíola, as transformações urbanísticas então em curso na capital federal e as variadas reações dos personagens históricos envolvidos. E, influenciado pela atual crise disparada pela pandemia do COVID-19, minha terceira leitura da mesma obra me revela que tamanho despreparo guarda íntima relação com um conflito entre linguagens diferentes, todas elas presentes no episódio da Revolta da Vacina.
A aposta pelo governo no uso de uma linguagem técnica, representada pelo diretor de Saúde Pública do município do Rio de Janeiro, Oswaldo Cruz, fez do governo uma presa fácil à oposição política. E esta linguagem técnica não envolvia apenas a área da saúde, mas também a área jurídica. Desta forma, à aposta do governo em abusar de uma linguagem técnica e racional que aproximava as linguagens das ciências da saúde e jurídicas, a resposta foi o abuso de uma linguagem política, encharcada de discursos morais, e amplamente usada pela oposição ao governo e pela imprensa da época. Com um imenso impacto sobre a população. Logo nas páginas iniciais, Sevcenko nos revela que:
“mesmo um elemento conservador, culto e bem informado como Rui Barbosa, político de grande envergadura, respeitado pelo público e por seus pares, denotava enorme insegurança quanto às peculiaridades, à qualidade e aos métodos de aplicação da vacina antivariólica, prevista por lei”. (p.22)
Ainda segundo o autor, Rui Barbosa assim se referiu à questão:
“Não tem nome, na categoria dos crimes do poder, a temeridade, a violência, a tirania a que ele se aventura, expondo-se, voluntariamente, obstinadamente, a me envenenar, com a introdução no meu sangue, de um vírus sobre cuja influência existem os mais bem fundamentados receios e que seja condutor da moléstia ou da morte”. (p. 23)
Rui Barbosa, portanto, ampara seu posicionamento em relação à campanha de vacinação em uma junção de argumentos de caráter jurídico (‘crimes do poder’), político (‘tirania a que ele se aventura’), moral (o governo estaria, segundo ele, envenenando-o) e técnico (introdução de um vírus em seu sangue).
Do mesmo modo, mas com sinais invertidos, Oswaldo Cruz, conforme relata Sevcenko, teria reexaminado um cadáver após o médico legista atestar que a causa da morte teria sido uma infecção generalizada causada pela vacina antivariólica. O então diretor da Saúde Pública impugnou o atestado do legista e o acusou de ser positivista e simpatizante do movimento de resistência à vacina obrigatória. Em uma clara manifestação que afrontava, com um discurso técnico, um laudo considerado por Oswaldo Cruz como sendo de natureza política.
Os resultados desta disputa, amparadas em linguagens diferentes e que envolviam discursos técnicos, jurídicos, políticos e morais pôde ser percebido por alguns dados apresentados por Sevcenko: em julho de 1904, cerca de 23 mil pessoas procuraram os postos da Saúde Pública para vacinação. No mês seguinte, ainda segundo o autor, o número caiu para aproximadamente 6 mil. Ao mesmo tempo que o surto de varíola chegava em seu ponto alto, devastando a cidade (p. 23).
Portanto, se minha primeira leitura da obra A Revolta da Vacina revelou as fraturas de um país que se oferece como republicano, mas que pouco se organiza a partir de instituições verdadeiramente inclusivas, a segunda me alertou sobre como estas fraturas podem ser vistas para além de uma simples abordagem da ‘luta’ entre a população e o Estado. Elas se manifestam na dificuldade quase intransponível que os atores históricos variados têm em incorporar os valores republicanos fundamentais. Já a terceira, feita ao calor da crise que o mundo enfrenta neste ano de 2020, revelou mais do que antes: entre as dificuldades para enfrentarmos a crise provocada pela epidemia da varíola em 1904 estava a falta de uma linguagem que se posiciona na defesa, mas que é chamada ao ataque em momentos de crise. E que, ao assim fazer, supera as outras tantas e variadas linguagens, que não obstante reivindicarem com razão sua parcela de legitimidade, podem ser, e muitas vezes de fato são, usadas de modo oportunista. Esta linguagem que unifica é a republicana. Faltam-nos, portanto, uma pedagogia republicana que, em momentos de crise, se sobreponha a todas às outras.
As sucessivas leituras da obra de Sevcenko e as várias camadas que me proporcionaram são reveladoras, certamente, do mérito da obra e não do meu. É para isso que a História nos serve. E a boa produção historiográfica também.
* Vinícius Müller é Doutor em História Econômica (USP), professor do Insper e autor de Educação Básica, Financiamento e Autonomia Regional: Pernambuco, São Paulo e Rio Grande do Sul, 1850-1930 (Alameda, 2018).
Referência imagética: charge de Leonidas Freire (1882 – 1943) intitulada “Guerra Vaccino-Obrigateza!…” publicada em O Malho, nº 111, 29/10/1904.