Rafael Xucuru-Kariri1
Este texto se refere ao trabalho do autor que recebeu o Prêmio Capes de Tese 2024, intitulado “Retomar o Brasil: um estudo das cartas escritas pelos povos indígenas nos últimos 50 anos”.
Comecei a escrever cartas ainda criança, na aldeia de Coroa Vermelha, do povo Pataxó. No café da manhã ou no almoço, na ida ou no retorno da escola, minha casa nunca estava vazia. Líderes Tupinambá, Pataxó Hã-Hã-Hãe e Pataxó discutiam os rumos dos seus movimentos políticos com meus pais, funcionários da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a FUNAI. Como faço parte da primeira geração de indígenas alfabetizados em grande número nas escolas públicas, entre as décadas de 1990 e 2000, era convocado, por minha mãe, a ouvir e passar para a máquina de escrever o resultado das discussões e parte do pensamento indígena sobre a relação que temos com o Estado brasileiro.
Quando ingressei no serviço público federal, trabalhando no Ministério da Educação como Analista de Políticas Sociais, passei de escritor para receptor de muitas dessas correspondências. Lá, recebia solicitações de povos de todo o país sobre aulas e materiais didáticos nas línguas e cosmovisões indígenas, construção de escolas, melhoria de salários para professores, alimentação escolar e outras demandas semelhantes áquelas de qualquer escola brasileira.
Apesar de uma vida entre cartas, só passei a vê-las como tema de pesquisa quando tive acesso aos estudos de Suzane Lima Costa. Desde 2012, esta autora, professora da Universidade Federal da Bahia, elabora questões instigantes sobre a escrita indígena. No artigo O que (ainda) podem as cartas?, ela constatou que os povos indígenas escreveram cartas públicas ao longo de toda a história do Brasil e que essa produção estava aumentando, paradoxalmente, quando a comunicação digital substituiu a produção de epístolas em papel.
Fruto deste encontro, passei a frequentar o Núcleo de Estudos das Produções Autorais Indígenas – NEAI/UFBA, coordenado por Suzane Costa -, e a fazer parte da pesquisa que resultou na construção de um arquivo virtual com mais de mil correspondências escritas por indígenas do século XVI aos dias de hoje, denominado As Cartas dos Povos Indígenas ao Brasil. Lá, é possível encontrar parte da escrita indígena produzida durante vários séculos, assim como os textos mais recentes. Foi a partir desse material que desenvolvi a tese de doutorado intitulada “Retomar o Brasil: um estudo das cartas escritas pelos povos indígenas nos últimos anos”.
Nessa pesquisa, busquei os pedidos, os sentimentos, as reclamações e o pensamento dos autores e autoras de cartas públicas escritas entre 1972 e 2022. A cada documento analisado, perguntava-me em que medida as cartas apresentam o fazer político dos povos indígenas e quais os seus significados enquanto declarações públicas. Na tentativa de compreender o fenômeno da escrita epistolar, busquei caracterizar o arquivo, retomando as perguntas presentes no projeto As Cartas dos Povos Indígenas ao Brasil: quem escreve, para quem são destinadas, sobre o que falam e quando essas cartas foram escritas.
O estudo abrangeu 50 anos de reflexão dos povos indígenas sobre sua relação com o Brasil – institucionalizado em destinatários como Presidentes, órgãos públicos, imprensa e a sociedade brasileira. O país foi e continua a ser chamado para a conversa nos escritos dos Yanomami, Tupinambá, Apinajé e tantos outros povos que buscam documentar suas vidas nessas cartas para afirmar sua existência na comunidade política brasileira.
Nesses 50 anos de escrita, a ideia de justiça foi colocada em discussão a partir da experiência indígena. Ao refletir sobre a regulação de seus territórios, os autores e autoras das cartas justificam o que é justo a se fazer a partir de três principais aspectos: a lei, a ancestralidade e a história de relações com o Brasil. A correta aplicação da lei, que reconhece e garante a proteção aos territórios indígenas, é uma demanda encontrada em todos os anos analisados na pesquisa. Em oposição à indignidade com que muitos governantes tratam os direitos indígenas, os povos defendem as normas em um Estado democrático. Além disso, as terras são indígenas porque são ocupadas ancestralmente, antes mesmo da ideia de um Brasil. Como definir critérios de precedência, como tentam os defensores do Marco Temporal – cuja tese quer eliminar a história ao proclamar como período de definição da posse das terras indígenas o marco de 1988 -, quando os povos e seus ancestrais estão há milhares de anos no continente?
Nas cartas, os povos reafirmam sua presença imemorial no território, sem deixar de relembrar a história das relações com o Brasil. Com base nela, esclarecemos que a atual estrutura fundiária do país foi construída por meio do esbulho, do roubo e de ações ilegítimas perpetradas por pessoas e empresas, inclusive por agentes públicos, que venderam, arrendaram e nos expulsaram de nossas terras. Nós, povos indígenas, somos ciosos arquivistas, historiadores e juristas dos nossos territórios. Defendemos as áreas que ocupamos, registradas em nossas histórias, mas também na história dos não indígenas, com farta documentação e registros orais e escritos sobre nossas vidas e, portanto, sobre o país.
Por meio das cartas, os diferentes povos buscam também retomar o Brasil ao criar um espaço público no qual, apesar da marginalização histórica a eles imposta, afirmam sua presença na sociedade brasileira. A retomada se desprende de seu conceito original, como recuperação das terras roubadas, acumulando concepções mais abrangentes. Trata-se de uma ação coletiva, compartilhada por povos de todo o país, para dizer da necessidade de rever a história, a língua, os territórios e a política, mas a partir de uma perspectiva indígena sobre esses processos. Com isso, talvez, o Brasil possa reconhecer seus traumas, elaborar suas narrativas de formação passada e presente e, assim, criar uma relação mais respeitosa consigo mesmo, com o seu próprio povo.
Os povos escritores estão atentos, denunciando e refletindo sobre o significado do legado colonial e sua (ainda) reverberação nas instituições democráticas atuais. Isso se dá, sobretudo, nas arenas decisórias, nas quais persiste a dificuldade em incluir as demandas apresentadas pelos povos sobre suas terras. Retomar o Brasil pela política é uma defesa indígena para si, mas, como diz o povo Munduruku, é também um chamamento ao país. Este povo termina suas cartas ao Brasil saudando-o com a expressão Sawé, um grito ancestral que diz “viva!” pelo encontro, mas também convoca para a guerra. E, assim, nós continuamos a escrever e nos manifestar, convocando o país para a luta, chamando-o para a vida, para a construção de uma comunidade política merecedora desse nome.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
- Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. Vencedor do Prêmio Capes de Tese na área de Sociologia e do Grande Prêmio Capes de Tese Lélia Gonzalez – Colégio de Humanidades. Professor da Licenciatura Intercultural Indígena da UFBA. E-mail: rafael.silva_19@hotmail.com ↩︎
Fonte imagética: CAPES. Trabalho analisa cartas de povos indígenas endereçadas ao Brasil. 13 nov. 2024. Fotografia do arquivo pessoal do autor. Disponível <aqui>. Acesso em: 9 dez. 2024.