Yasmim Abril M. Reis[1]
11 de dezembro de 2024
A versão integral deste texto foi publicada em formato de artigo na Revista Hoplos. Leia a versão completa aqui.
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Neste texto argumento que o fenômeno do terrorismo não é uma forma exclusiva de expressão política que se restringe à atualidade dos Estados Unidos. As importantes transformações da década de 1990, com o fim da bipolaridade, a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e a ascensão dos Estados Unidos como potência unipolar, marcaram a virada do século. Assim como o evento dos atentados do 11 de setembro de 2001, quando os Estados Unidos direcionaram sua política externa ao combate ao terrorismo internacional.
Apesar disso, o país vivencia uma crise política doméstica em que há reflexos até na presente eleição de 2024, com a saída do atual presidente, Joe Biden, da corrida eleitoral pela substituição da sua vice de chapa democrata, Kamala Harris. Entretanto, o fenômeno Donald Trump permaneceu como a variável dependente da campanha, uma vez que se tornou um ponto crucial na política doméstica norte-americana.
O último governo Trump (2017-2021) foi marcado por uma infinidade de declarações xenofóbicas, repreensíveis e anti-imigratórias. Em 2020, Trump disputou a eleição pleiteando sua reeleição, no entanto, perdeu para seu adversário democrata, Joe Biden. Não foi uma perda fácil ou aceitável para os seus apoiadores que o veneram como um messias profeta salvador da nação norte-americana. É à análise desse contexto que o presente texto se dirige. Para isso, busquei entender de que forma a invasão ao Capitólio se caracteriza como terrorismo doméstico. Assim, o primeiro aspecto importante a ser compreendido é como a literatura conceitua terrorismo, para em seguida entendermos o que é conceitualmente a extrema-direita. Por fim, apresentaremos se há uma relação entre esses dois elementos que culminaram na invasão ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021.
Terrorismo
O termo terror/terrorismo não obteve uma definição conceitual concreta ao longo dos séculos; portanto, é uma palavra que varia em consonância com o contexto e o tempo. A palavra terror tem sua origem no latim, que era a língua oficial do ocidente até o declínio do Império Romano no século V. Assim, ela pode ser entendida como “nossas modernas palavras terror, terrorizar, terrível, terrorismo e dissuasor, são derivadas dos verbos latino terrere, para temer ou causar tremor, e dissuasor, para assustar” (WILKINSON, 1974).
É importante frisar que apesar dos eventos de 11 de setembro nos Estados Unidos, o conceito permanece como “polêmico” (DEMANT, 2010). Nesse sentido, verifica-se uma fragilidade na análise construtiva do que pode ser caracterizado como terrorismo, já que é um termo que sofre variações regionais e temporais. O que não se pode negar é a sua intencionalidade que não é flexionada: a intenção de gerar terror.
Comumente, após o 11 de setembro, há uma construção associativa de terrorismo ao Oriente Médio, muito pelo processo de securitização que os Estados Unidos realizaram para iniciar a Guerra ao Terror. Curiosamente, reconhece-se que após a Guerra Civil norte-americana (1861-1865), surgiu uma onda de terror no país, o que posteriormente se denominou terrorismo doméstico, sobretudo com o início das ações da Ku Klux Klan (KKK).
A KKK emergiu das cinzas da Guerra Civil norte-americana na década de 1860 por meio da lógica da supremacia branca, que tinha como alvo pessoas anteriormente escravizadas, provocando terror sobre esse grupo (LAW, 2009). É nesse contexto que uma onda de terrorismo doméstico e a semente da extrema-direita emergem no Estado norte-americano. É nesse ensejo que a análise do evento de 6 de janeiro surge como importante objeto de análise para compreender a política norte-americana.
Terrorismo de Estado e terrorismo doméstico: qual a diferenciação?
O fenômeno do terrorismo é múltiplo, de diferentes tipologias, a exemplo do terrorismo político, terrorismo de Estado, bioterrorismo e terrorismo doméstico. Como meu objetivo é analisar o evento da invasão do Capitólio nos EUA em 2021, e como este pode ser interpretado como um ato de terrorismo doméstico, é válido estabelecer uma pequena diferenciação entre terrorismo doméstico e o terrorismo de Estado, visto que a atuação interna de gerar medo/terror é tão antiga quanto a prática internacional.
Em linhas amplas, terrorismo de Estado refere-se à provocação do terror pelo próprio Estado ou por agentes ligados diretamente ao Estado ou de outra nação. Já o terrorismo doméstico consiste no terrorismo cometido por indivíduos ou grupos dentro do seu próprio país sem ligação direta com o Estado (SILKE, 2018). Um exemplo de que os Estados Unidos é um país onde o terrorismo doméstico já é uma prática enraizada mostra-se na atuação da Ku Klux Klan, que realizou diversas tentativas de atentados contra a população afro-americana. Outro evento importante e ainda presente na sociedade norte-americana, inclusive na eleição deste ano, é a polarização política da sociedade desde a década de 1960.
Extrema-direita e a sua enraização na sociedade norte-americana
O termo extrema-direita se fundiu conceitualmente no período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Apesar da sua maior propagação após a referida guerra, o que se converge em pensamento sobre esse grupo político é de que “ambos os subgrupos se opõem à democracia liberal do pós-guerra” (PASECHNIK, 2022). Em outras palavras, os grupos supracitados, segundo Pasechnik (2002), referem-se aos diferentes sinônimos existentes para partidos de extrema-direita, direita radical e os antiestablishment. Ironicamente, trata-se do modelo de democracia defendido pelos Estados Unidos.
Para compreender o que se denomina como extrema-direita nos dias de hoje, é pertinente entender as diferentes ondas pelas quais o movimento tem passado. Desse modo, “nas primeiras décadas estes partidos eram descritos como ‘neo-fascistas’, designação que se alterou para ‘extrema-direita’ nos anos 1980 e ‘direita radical’ nos anos 1990″, com alguns autores usando a expressão ‘populismo de extrema-direita’ no início do século XXI, e ‘extrema-direita’ nos anos mais recentes anos” (MUDDLE, 2019). Além disso, as ondas do movimento se dividem em três momentos, sendo a primeira ao fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a segunda onda nas décadas de 1950 e 1960, e a última após a década de 1970 (MUDDLE, 2019).
Os últimos anos foram cruciais para o retorno desse grupo ao cenário político, frente a sucessivas crises e a pandemia da COVID-19. O discurso de ódio e a responsabilização do outro pelo baixo desempenho dos governos, especialmente no âmbito econômico, contribuíram para a retomada das discussões políticas na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil, sendo nos Estados Unidos personificado na imagem de Trump, e, no Brasil, em Jair Bolsonaro, ex-presidente (2019-2022).
O evento da invasão ao Capitólio em 6/1
Os Estados Unidos historicamente é um interessante caso a ser analisado ao que tangencia ao tema do terrorismo, visto que sua trajetória desde a colonização e seu processo social-político de formação perpassa por pessoas que foram escrvizdas e grupos racistas que atuaram com o objetivo de eliminar grupos nativos do país, como os indígineas. De outro modo, “A história do terrorismo nos Estados Unidos é mais antiga do que a fundação do país. Remonta à ocupação pelos colonos que, com ‘atos violentos e criminais’, expulsaram e provocaram a morte de milhares de nativos norte-americanos” (CASTRO, 2021, n. p.). Contudo, o fantasma que assombra os Estados Unidos se constitui pela sua própria contrariedade de que acusam o externo de atacá-los por meio de uma construção narrativa entre o “bem” e o “mal”.
O problema está na raiz do cinismo norte-americano de não condenar a si mesmo pelos atos já praticados. Para a historiadora Baverly Gage (2011, p. 92) “americanos brancos nascidos no país que cometem atos de violência política são frequentemente tratados como indivíduos desorientados”. Com isso, nota-se que há também um antigo problema estrutural do país, associado ao racismo, na medida em que pessoas brancas não são vistas como praticantes de terrorismo, que ironicamente foi o grupo que exterminou nativos norte-americanos, bem como sustentou um sistema escravocrata.
É comum na trajetória norte-americana a preocupação com o outro em vez de consigo mesmo. Não contrariamente, em 2016, surge no cenário político Donald Trump, que tem sido marcado por seu discurso nacionalista, anti-imigração e pela defesa dos cidadãos. Esses aspectos também devem ser questionados, visto que compõem uma visão da defesa dos interesses norte-americanos que é invariavelmente tanto dos democratas quanto dos republicanos. O que distingue Trump na política é a falta de polidez em seus discursos.
O fenômeno que pode ser denominado como Trumpismo atingiu seu ápice em 6 de janeiro de 2021, quando Trump não só perdeu as eleições, mas também questionou sua legitimidade. Diante disso, seus apoiadores extremistas decidiram invadir o Capitólio, cúpula do poder norte-americano, a fim de provocar medo por meio da mudança política.
Desse modo, avalio que a ascensão da extrema-direita nos Estados Unidos pode ser personificada na imagem de Trump. Além disso, o temor se originou dos apoiadores extremistas, o que permite junto à literatura especializada a conclusão de que a invasão ao Capitólio se configura como mais um ato de terrorismo doméstico nos Estados Unidos. Por fim, em meio a tensões eleitorais, mais importante do que o resultado do 5 de novembro é o que acontecerá a partir de janeiro de 2025. Resta-nos questionar se o fantasma de 6 de janeiro voltará a assombrar Washington D.C. no próximo ano.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
Referências Bibliográficas
CASTRO, Isabelle C. Somma de. Terrorismo doméstico nos EUA, uma história repleta de racismo. 2021. Disponível em: https://www.opeu.org.br/2021/01/26/terrorismo-domestico-no-eua-uma-historia-repleta-de-racismo/.
DEMANT, Peter. Terrorismo e globalização: extremização religiosa ou leilão midiático? In: (Org.) HERZ, Mônica. Terrorismo e Relações Internacionais: perspectivas e desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: PUC-Rio: Edições Loyola, 2010. Cap. 12 p. 339-376.
GAGE, Beverly. Terrorism and the American experience: A state of the field. The Journal of American History, v. 98, n. 1, p. 73-94, 2011.
LAW, Randall D. Terrorism: a history. Cambridge: Polity Press, 2009. 363 p.
MUDDLE, Cas. The far right today. Cambridge: Polity, 2019. 212 p.
PASECHNIK, Tatiana. As políticas governamentais de extrema-direita e da direita populista e o seu impacto econômico. 2022. 85 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Negócios Internacionais, Escola de Economia e Gestão, Universidade do Minho, Portugal, 2022
SILKE, Andrew. State Terrorism. In: SILKE, Andrew (ed.). Routledge Handbook of Terrorism and Counterterrorism. Abingdon: Routledge, 2018. Cap. 6. p. 66-73.
WILKINSON, Paul. Political Terrorism. London: Macmillan, 1972. 160 p.
[1] Doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID/ESG), pesquisadora colaboradora no OPEU e vice-líder e assistente de pesquisa voluntária no Laboratório de Simulações e Cenários na linha de pesquisa de Biodefesa e Segurança Alimentar (LSC/EGN). Contato: reisabril@gmail.com
Fonte imagética: Wikimedia Commons. Storming of the United States Capitol 2021. Fotografia de Tyler Merbler, 6 jan. 2021.