Ana Paula Bulgarelli[1]
“(…) o método da história dos conceitos é capaz de superar o círculo vicioso da palavra em direção ao objeto e vice-versa. (…) Em vez disso, estabelece-se uma tensão entre conceitos e fatos, tensão que ora se neutraliza, ora parece novamente irromper à superfície, ora parece ser irremediavelmente insolúvel. É possível registrar continuamente a existência de um hiato entre fatos sociais e o uso linguístico associado a ele.” (KOSELLECK: 2006: 110-11)
Em História dos conceitos e história social (2006), Koselleck chama a atenção do leitor para a tensão existente entre os conceitos e os fatos sociais, refletida também na relação entre a história dos conceitos e a história social. Essa tensão decorreria do fato de que os conceitos não estabelecem uma relação de identidade com os fatos, isto é, não consistem numa mera “tradução linguística” das experiências concretas, como se houvesse uma convergência perfeita entre as palavras e as coisas. Ao contrário, apesar de os conceitos políticos e sociais terem sempre a pretensão de corresponder às estruturas existentes na realidade empírica, essa correspondência é muitas vezes tensa, posto que envolve relações bastante complexas, algumas das quais exploraremos a seguir.[2]
O conceito como interpretaçãodo fato
Tomemos como ponto de partida o pressuposto de que conceito e fato são inexoravelmente interdependentes. Ele se funda na convicção de que todo conceito social e político é historicamente condicionado pela realidade do mesmo modo que esta também é historicamente condicionada por ele. Evidentemente, o conceito é condicionado pela realidade na medida em que as estruturas a que pretende corresponder e que compõem o seu significado existem na realidade e são apreendidas a partir dela; o condicionamento da realidade pelo conceito, por sua vez, torna-se manifesto quando se considera que, sem a mediação da linguagem, a experiência concreta jamais seria apreendida, isto é, um fato empírico jamais se tornaria uma experiência (uma vez que aquilo que não pode ser dito não pode ser pensado e, nesse sentido, não existe para a consciência). Ocorre que, se por um lado os conceitos sociais e políticos buscam expressar algo existente na experiência concreta, por outro, seu significado é também sempre obra do pensamento, isto é, algo que não é dado pela realidade mas que, ao contrário, a extrapola. Desse modo, além de o significado de um conceito ser dado em termos linguísticos (e já aqui poder-se-ia objetar que não há como garantir uma correspondência perfeita entre fato linguístico e fato concreto, posto que possuem naturezas distintas), ele contém elementos de inteligibilidade que não são (mesmo que pretendam ser) puramente descritivos. Caso contrário, sempre que houvesse uma batalha semântica em curso, isto é, uma disputa entre dois conceitos concorrentes que pretendem corresponder a um mesmo fato, poderíamos determinar através do uso de critérios racionais/científicos, com certa segurança, qual dos conceitos em disputa é o mais fiel à realidade. Contudo, ocorre com frequência que conceitos competidores sejam igualmente coerentes para interpretar dado fenômeno histórico. Isso se deve ao fato de que todo conceito envolve a apreensão da realidade de um certo modo, uma interpretação que relaciona diferentes estruturas de uma dada realidade complexa, tentando estabelecer a ligação que existe entre elas.
(…) um conceito só emerge no momento em que os significados daqueles termos individuais que descrevem um conjunto comum de fatos desempenham uma função que não é meramente descritiva, mas que também aponta e reflete sobre as relações entre eles (KOSELLECK: 2011:20). (tradução nossa)[3]
Termo e conceito
A história dos conceitos defendida por Koselleck salienta o fato de que um mesmo termo (significante) pode ser usado em diferentes momentos históricos e por diferentes autores para se referir a situações distintas, o que poderia erroneamente levar o leitor/historiador a crer que o termo usado coincide com um certo significado, fixo, quando, na verdade, trata-se de conceitos diferentes, ainda que possuam significantes homônimos. Esse seria o caso do termo “democracia” (entre tantos outros exemplos fornecidos pelo autor), que foi criado na Antiguidade para se referir à experiência política de certas poleis, principalmente Atenas, mas posteriormente passou a ser usado para se referir às novas formas de organização dos Estados modernos a partir do século XVIII, ou ainda, de modo generalizante, como substituto ao termo “república”, só para citar alguns exemplos. (KOSELLECK: 2006: 109) Nesses casos, trata-se do mesmo termo ou significante, mas definitivamente de conceitos distintos que, por serem homônimos, poderiam ser confundidos inadvertidamente. Desse modo, a investigação de um conceito deve ser realizada, num primeiro momento, de forma indissociada do momento histórico a que ele corresponde (análise sincrônica), sob pena de, ao dissociá-los, compreendermos erroneamente seja o conceito, seja a própria realidade a que ele corresponde. Na sua introdução a Geschichtliche Grundbegriffe, Koselleck ilustra essa ideia ao comentar sobre as mudanças conceituais que ocorreram na Modernidade:
O significado de conceitos antigos foi alterado para que eles se adequassem às transformações do mundo moderno. Apesar de as próprias palavras não terem mudado, conceitos como democracia, revolução, república, ou história passaram por um processo de modificação que pode ser claramente rastreado. (KOSELLECK: 2001: 9). (tradução nossa)[4]
Assim, a confusão entre termo e conceito pode dificultar a compreensão da relação entre conceito e fato, sendo o maior desafio do historiador dos conceitos justamente identificar os momentos de alternância ou permanência deles no tempo, bem como saber se estas mudanças ou permanências são realizadas de modo a acompanhar uma transformação ou manutenção das estruturas políticas e sociais, pois, caso as mudanças ou permanências conceituais ocorram em descompasso com a realidade, abre-se um hiato entre conceito e fato, elevando-se a tensão entre eles.
A disputa e a ressignificação dos conceitos
Muitas vezes, um termo cunhado no passado é resgatado devido às semelhanças que aqueles que o empregam acreditam haver entre o conceito em seu contexto original e a nova realidade que se apresenta a eles. A título de exemplo, poderíamos pensar nos conceitos de “populismo” e “fascismo”, resgatados recentemente para pensar a ascensão da extrema direita nos últimos anos em diversos países do mundo. Em casos como esses, seria possível afirmar que aqueles conceitos, tais como originalmente concebidos, ainda sejam atuais? Acreditamos que, para Koselleck, a resposta a essa pergunta seria afirmativa se, e somente se, o uso dos termos mantivesse seus significados originais e o estado de coisas que lhes deu ensejo ainda perdurasse até os dias atuais. No caso dos termos “populismo” e “fascismo”, um historiador poderia avaliar, por exemplo, que as estruturas sociais e políticas atuais são distintas daquelas correspondentes aos significados originais dos termos, concluindo, a partir daí, que os termos foram ressignificados para se moldar a uma nova realidade, a qual, ainda que possa guardar certas semelhanças com a anterior, contém estruturas próprias que a tornam singular (todavia, nesse caso, o historiador teria de argumentar em favor dessa singularidade a despeito de um certo pano de fundo social que permaneceria o mesmo no que diz respeito ao sistema capitalista, a cultura de massas, o individualismo ou a desconfiança em relação à democracia, só para mencionar alguns pontos comuns entre os dois contextos). Posicionando-se em favor da distinção, a conclusão do historiador deveria ser, então, a de que se trata de novos conceitos e avaliaria que interpretar a realidade presente fazendo uso dos significados originais, sem atentar às mudanças históricas que incidem sobre as estruturas sociais e políticas, seria incorrer em anacronismo. Vale mencionar também que, não raro, não há um único significado para os termos resgatados em seus contextos de origem, fazendo com que sua ressignificação implique no resgate de uma certa interpretação do termo (geralmente a vencedora historicamente) em detrimento de outras possíveis.
Em suma, como o significado original de certos termos é comumente alterado ao longo do tempo (o que faz com que haja uma história dos conceitos, ou melhor, uma história da recepção dos conceitos), para que a relação entre conceito e realidade seja estabelecida em bases confiáveis, é preciso que o historiador atente para essa tensão entre ambos e examine cada conceito cotejando-o com a realidade que ele pretende corresponder para aferir se seu significado corresponde, de fato, a essa realidade, ou se, ao contrário, ele carrega consigo elementos de um estado de coisas anterior, usado para se referir a estruturas que já não existem.
É possível ainda que não se tenha um conceito adequado para se referir a um fenômeno no momento em que ele aconteça, e que isso só ocorra posteriormente, como é o caso do conceito “fascismo”, criado a posteriori. Nessas ocasiões, abre-se um hiato entre conceito e realidade.Desse modo, resta evidente que não se pode depreender, direta e imediatamente, a realidade a partir do conceito, o que ilustra mais uma ocasião de tensão entre eles. (KOSELLECK:2006: 114)
Ademais, pode acontecer de um certo estado de coisas mudar, mas os conceitos correspondentes ao estado anterior perdurarem por mais tempo; ou ainda de um estado de coisas permanecer, mas os conceitos referentes a ele mudarem – como ocorre recentemente, por exemplo, com a substituição do termo “empregado” por “colaborador”, um lance ou performance (para usar os termos de Pocock) que visaria mudar o estado de coisas atual, neste caso, as relações de trabalho. No nosso exemplo, se o conceito “colaborador” vier a se sobrepor ao de “empregado”, vencendo a batalha semântica instaurada, a transformação conceitual que acarreta será responsável pela transformação da realidade – e não o inverso. Nessa medida, a ideia de que o conceito seria uma mera expressão linguística para se referir ao fato seria ingênua e errônea – como assinalam também os defensores do contextualismo linguístico.
Batalhas semânticas como a apontada acima são comuns na história e ocorreriam principalmente em momentos de crise ou transição. Quando a realidade histórica muda, a linguagem anteriormente usada já não é capaz de designar corretamente o novo estado de coisas, sendo necessário desenvolver um novo vocabulário para se referir a ele. Nesses “momentos de virada”, é comum que a significação de um fenômeno histórico esteja em disputa. Elas ilustram, talvez mais do que qualquer outro exemplo, a tensão entre conceito e fato, pois demonstram que não basta que um conceito seja pensado dentro do seu contexto de origem para que se alcance uma correta correspondência entre ele e a realidade. Ao contrário. Dado que conceitos concorrentes estão frequentemente em disputa pela hegemonia do discurso, a compreensão das possíveis e diferentes maneiras de se referir ao mesmo fenômeno torna-se imprescindível ao trabalho do historiador e enriquecerá, ao mesmo tempo em que complexificará, o entendimento dele acerca do momento investigado. Vejamos o caso do conceito “camponês” que, segundo Koselleck, estava em disputa com outros conceitos na passagem para a Modernidade.
O termo camponês, por exemplo, era uma designação usada quase que exclusivamente pelos estratos sociais superiores. Esse não era o caso dos termos agricultor (Landwirt) ou economista (Ökonom). Sem uma conotação social específica, estes eram autodesignações escolhidas por aqueles com aspirações a uma nova posição social. Nesse sentido, o léxico investiga o poder das palavras e conceitos de unir, selar, ou destruir conexões sociais (KOSELLECK:2011:17). (tradução nossa)[5]
Assim, quando as batalhas semânticas ocorrem, é possível identificar conceitos criados a partir de visões de mundo e interesses de atores sociais diferentes, o que denota a ambivalência existente na apreensão da realidade, refletida na criação dos conceitos.
É possível ainda que um conceito criado em dado momento histórico sirva também para se referir a um estado de coisas possível e desejável de ser alcançado no futuro, transcendendo os limites da realidade presente, como foram os casos de certos conceitos ressignificados na Modernidade, como “desenvolvimento” (entendido em sentido reflexivo, de adições cumulativas), “progresso” (como um processo sem fim de mudança futura), “história como tal” (que é simultaneamente o seu sujeito e objeto), ou “revolução” (que perdeu o seu sentido original de “ciclo recorrente” e tornou-se, ao invés, um conceito geral projetando movimentos em direção a objetivos futuros e resultados indeterminados), e de outros termos ou expressões que puderam ser incorporadas em ideologias. (KOSELLECK: 2011:13)
Um exemplo significativo é o conceito de emancipação (Emanzipation). Em seu contexto inicial, ele era entendido como um ritmo nacional de mudança geracional. Assim, em seu sentido original, ele era um termo legal aplicado a um indivíduo que atinge a idade adulta. Depois, [o termo] emancipation foi estendido para significar a eliminação daqueles privilégios anteriormente assegurados aos membros de um certo estamento. Por fim, ele se tornou um conceito geral voltado ao futuro e aplicável a qualquer contexto. Nesta forma, o conceito indicou o fim não apenas do tipo de dominação de uma pessoa sobre outra, característico do sistema de estamentos ou ordens (ständische Herrschaft), mas o da dominação em geral (Ibidem: 12) (tradução nossa).[6]
Breves considerações finais
Sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, buscamos discorrer no texto acima sobre a tensão entre conceito e fato por entendermos ser ela, possivelmente, o pressuposto fundamental da abordagem metodológica da história dos conceitos de Koselleck, assim como era a relação entre parole e langue na abordagem de Pocock. Koselleck buscou através de diversos exemplos tratar e ilustrar a complexidade dessa relação, visando com base nela justificar a história dos conceitos como uma disciplina autônoma e, ao mesmo tempo, auxiliar da história social. Sem atentar à complexidade dessa relação e problematizá-la, o historiador correria o risco de não apenas cometer anacronismos, como também de seu estudo perder em profundidade, dado que a compreensão de como se formam os conceitos sociais e políticos relevantes e de quando ocorrem suas transformações, relacionando-os às estruturas políticas e sociais concretas com que dialogam, seria fundamental à compreensão dos fenômenos políticos e sociais posto que são esses conceitos que ancoram nossas interpretações e compreensão da história.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
JASMIN, M. G. História dos conceitos e teoria política e social: referências preliminares. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 20, nº 57, fev./2005, pp. 27-38.
KOSELLECK, R. História dos conceitos e história social. In: Futuro Passado. Contraponto Editora, 2006, pp. 97-118.
_______________ Introduction and Prefaces to the Geschichtliche Grundbegriffe. Contributions to the History of Concepts, Vol. 6, Issue 1, Summer 2011, pp.1-37.
[1] Mestranda em Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: anap.bulgarelli@gmail.com. Este texto foi apresentado durante a realização da disciplina de Teoria Política Moderna, ministrada pela professora Eunice Ostrensky na Universidade de São Paulo no segundo semestre de 2020.
[2] Por estarmos tratando da história dos conceitos de Koselleck, o termo “conceito” sempre se referirá, nesse contexto, aos conceitos sociais e políticos relevantes em dado momento histórico, que são o objeto de pesquisa do autor.
[3] No original: “(…) a concept emerges only at a point when the meanings of those individual terms which describe a common set of facts perform not merely a descriptive function, but also point to and reflect upon relationships among them.”
[4] No original: “The significance of old concepts was altered to fit the changing conditions of the modern world. Although the words themselves may not have changed, such concepts as democracy, revolution, republic, or history underwent a process of modification that can be clearly traced.”
[5] No original: “The term pesant, for example, was a designation used almost exclusively by socially superior strata. That was no longer the case for the terms agriculturalist (Landwirt) or economist (Ökonom). Lacking a specific social connotation, these were self-designations chosen by those with aspirations to a new social position. In this way, the lexicon investigates the power of words and concepts to bind, stamp, or destroy social connections.”
[6] No original: “A telling example is the concept of emancipation (Emanzipation). In its former setting, it had been understood in terms of a national rhythm of generational change. Thus, in its original sense, it was a legal term applied to an individual’s coming to age. Then emancipation was extended to mean the elimination of those privileges formerly granted to members of a given state. Finally, it became a general concept oriented to the future and applicable to any context. In this form, the concept indicated the end not only of the type of personal domination by one person over another characteristic of the system of estates or orders (ständische Herrschaft), but of domination in general (Herrschaft überhaupt).”
Fonte Imagética: Reinhart Koselleck ees uno de los más importantes nombres asociados con la llamada historia conceptual (Begriffsgeschichte), una disciplina que se contrapone a la historia de las ideas. Créditos: Clarín, Revista Ñ. Disponível em <https://www.clarin.com/revista-enie/ideas/sigue_0_cEQcb3TtU7.html>. Acesso em 07 nov 2022.