Camila Bernardo de Moura[1]
Ana Cristina Grein Marra[2]
Gessica da Silva[3]
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Esta série especial do Boletim Lua Nova reúne reflexões críticas elaboradas por graduandas, mestrandas e doutorandas selecionadas por meio de edital de monitoria que acompanharam o Colóquio Internacional “Colonialidade, Racialidade, Punição e Reparação nas Américas (Séculos XIX-XXI)”, realizado de 26 a 29 de novembro de 2024, com financiamento do Instituto Beja, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). Longe de exercerem funções estritamente logísticas, essas pesquisadoras transformaram o Colóquio em um laboratório de formação acadêmica e política: acompanharam os debates, dialogaram com as/os palestrantes e produziram textos de relato‑reação que combinam descrição empírica e análise conceitual das mesas‑redondas. O texto que a leitora ou o leitor tem em mãos é fruto desse trabalho coletivo.
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4 de julho de 2025
Com a mediação do Prof. Dr. Mário René Rodriguez Torres (UNILA), a Mesa 7 — “Abolicionismo e desencarceramento: memória, justiça e reparação” — contou com a participação de quatro mulheres egressas do sistema prisional latino-americano: Helen Baum (Núcleo Memórias Carandiru – IREC), Valentina Castro (Hermanas en la Sombra – México), Liliana Cabrera (Yo No Fui – Argentina) e Elizabeth Pino (Mujeres de Frente – Equador).
O eixo comum das intervenções foi o debate sobre o abolicionismo penal latino-americano articulado às experiências pessoais de encarceramento. A partir desse ponto de convergência, estabeleceu-se um diálogo sobre as vivências de pessoas privadas de liberdade no Brasil, México, Argentina e Equador. Os temas centrais emergiram da memória coletiva, compartilhada por meio de práticas artísticas e de relatos autobiográficos.
As expositoras defenderam uma concepção de justiça orientada por soluções humanizadas no Sul Global e vincularam a noção de reparação ao ativismo e ao abolicionismo penal como ideal regulador das práticas e lutas. Como militantes do desencarceramento, imaginaram alternativas a um sistema punitivo fundado quase exclusivamente no encarceramento; realidade que, na última década, apresentou crescimento expressivo, sobretudo entre mulheres. Algumas alternativas ao encarceramento em massa seriam a descriminalização das drogas, pois a Lei de Drogas leva meros usuários às prisões, e a desinstitucionalização, já que a maioria das pessoas institucionalizadas são presas provisórias e ainda não foram condenadas, bem como a substituição de penas privativas de liberdade por restrição de direitos ou prestação de serviços comunitários.
Outra convergência carcerária no Sul Global decorre de seu desenvolvimento histórico. Colonialismo, economia de exploração e o encarceramento em massa de pessoas pardas, pretas, indígenas e brancas pobres foram mobilizados para mostrar que o modelo prisional contemporâneo constitui um projeto econômico e político de poder estatal e não necessariamente o desdobramento de um debate coletivo em que deveriam ser ouvidos diversos segmentos da sociedade.
Na literatura recente sobre prisões, Angela Davis, no livro Estarão as prisões obsoletas? (2018), traça um panorama do sistema penal dos Estados Unidos — país com a maior população carcerária do mundo — que, em grande medida, inspira o modelo punitivo brasileiro e de outros países da América Latina, com destaque para El Salvador, na América Central, com seu modelo mais que repressivo de sistema prisional. A partir da realidade nacional, Borges (2019) articula críticas ao sistema de Justiça Criminal punitivo com aportes do feminismo negro, construindo, mediante dados estatísticos sobre o aumento expressivo do encarceramento de pessoas negras e pobres nos últimos vinte anos, uma história do encarceramento no Brasil. Ela analisa o encarceramento como instrumento central de punição, e evidencia a dinâmica econômica sustentada pela reprodução de uma lógica escravista. O encarceramento em massa de pessoas pobres e negras seria uma releitura do sistema escravocrata, sendo as prisões consideradas “senzalas” modernas.
A mesa contou ainda com Helen Baum (Núcleo Memórias Carandiru – IREC), egressa do sistema prisional paulista, que atua na preservação da memória do extinto Carandiru, apoia saídas temporárias de mulheres presas e milita contra o cárcere. Baum, atualmente mestranda pelo Programa de Ciências Humanas e Teoria Social da UFABC, leu um poema autoral que narra sua experiência de encarceramento e o afastamento do convívio com o filho. Relatou, também, seu trabalho como educadora museal no Núcleo Memórias Carandiru, instituição que combate o apagamento e esquecimento do massacre ocorrido na antiga Casa de Detenção de São Paulo, em outubro de 1992, quando 111 pessoas foram mortas, segundo dados oficiais. O complexo hoje abriga a Penitenciária Feminina de Santana, a Penitenciária Feminina da Capital, o Hospital Penitenciário e o Presídio da Polícia Civil, configurando um espaço onde, de acordo com o Núcleo, persistem “massacres silenciosos”.
Valentina Castro (Hermanas en la Sombra – México) é escritora, integrante da Coletiva Editorial Hermanas en la Sombra, colaboradora do Sistema Penitenciário e do Programa de Reintegração Social da Documenta, Análisis y Acción para la Justicia Social A.C., além de membro da Rede Feminista Anti-Prisão da América Latina. Apresentou a escrita identitária feminista — a denominada autoficção feminista — como instrumento de saúde e cidadania para mulheres em contextos de violência, especialmente aquelas privadas de liberdade e suas familiares[4].
Liliana Cabrera (Yo No Fui – Argentina) é escritora, editora independente, ativista transfeminista e educadora. Representante do coletivo argentino Yo No Fui — que, por meio da arte e da economia criativa e solidária, acolhe famílias e promove a socialização de mulheres encarceradas —, Liliana exibiu o vídeo “Iluminuras”, no qual a perspectiva de mulheres presas revela o cotidiano no sistema prisional argentino.
Elizabeth Pino (Mujeres de Frente – Equador) é pesquisadora e educadora popular certificada pela Universidade Andina Simón Bolívar. Ingressou no sistema prisional aos catorze anos e, atualmente, integra a Rede Feminista Anti-Prisão da América Latina. Porta-voz da organização antipenitenciária e feminista Mujeres de Frente — que desde 2004 se opõe ao sistema punitivista aplicado a mulheres —, coordena a Escola de Formação Política Feminista e Popular para familiares de pessoas privadas de liberdade na Regional Cotopaxi, megaprisão localizada nas montanhas equatorianas.
A mesa revelou-se instigante e, por vezes, comovente, pois favoreceu o intercâmbio de saberes entre mulheres de diferentes países latino-americanos. As participantes recorreram à arte como forma de resistência ao sistema prisional e compartilharam suas vivências com o público do Colóquio.
Pelos relatos apresentados, observa-se que o cárcere impacta de maneira semelhante e violenta a vida das mulheres presas na América Latina, sendo o encarceramento em massa de pessoas pobres, pretas, pardas e indígenas uma lamentável característica comum à região.
Referências Bibliográficas
Anuário Brasileiro de Segurança Pública In: Fórum Brasileiro de Segurança Publica, site: forumseguranca.org.br/publicacoes/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/ acesso: fev.2025
BORGES, Juliana. Encarceramento em Massa. Série Feminismos Plurais. Ed. Pólen, São Paulo, 2019.
Coletiva Editorial Hermanas en la Sombra, site: hermanasenlasombra.org/ acesso:
fev.2025
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. Ed. Bertrand, Rio de Janeiro, 2018.
Instituto Resgata Cidadão (IREC),
site.fundobrasil.org.br/projeto/instituto-resgata-cidadao-irec/ acesso: fev.2025 Núcleo Memórias Carandiru, site: massacrecarandiru.org.br/ acesso: fev.2025
RIZZI, Nina, Scarpelli, Veridiana. A melhor mãe do mundo. Infanto-Juvenil. Ed. Cia. das Letras, São Paulo, 2022. Livro infantil (a partir dos 6 anos) que aborda a privação de liberdade de mulheres sob o ponto de vista da criança.
Yo no fui, coletivo antipunitiviesta, transfeminista e anticarcerário, https://yonofui.org.ar/ acesso: fev.2025
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
[1] Mestranda em Ciência Política IFCH – Unicamp. Graduada em Ciência Política e Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Pesquisa violência institucional e movimentos de mães que lutam por justiça, reparação e memória. E-mail: c232656@dac.unicamp.br
[2] Ana Cristina Grein Marra é Bacharela em Direito pela UFMG, Pós-graduada em Poder Legislativo e Democracia no Brasil pela Escola do Parlamento e Mestra em Teoria Social e Ciências Humanas pelo PCHS da UFABC. É pesquisadora de estudos de gênero, sistema prisional, feminismos, maternidade e teoria do cuidado. Atualmente integra a equipe do PODHE/NEV-USP como educadora e pesquisadora. Email: ana.grein@ufabc.edu.br
[3]Gessica da Silva São Paulo (SP) 1987 é graduanda do curso de Letras com habilitação
em Latim pela FFLCH da Universidade de São Paulo (USP). Atualmente (2025 -2026) é professora estagiária na rede pública de ensino SEDUC/ SP. Em 2023, foi pesquisadora bolsista do grupo de pesquisa em Escrevivência, sob coordenação da escritora e professora Conceição Evaristo, na Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP). Entre 2021/2022 conduziu a pesquisa de Iniciação Científica, O Pretoguês na Língua portuguesa com bolsa CNPQ/ USP sob a orientação da professora e pesquisadora, especialista em de Língua de Herança (LH), Maria Célia Pereira Lima Hernandez. Em 2022, participou apresentando os resultados de o O pretoguês na Língua Portuguesa, no 4 Seminário de Estudos Sobre o Português em Uso, ocorrido na Universidade Federal Fluminense (UFF) com sede em Niterói. Durante o 8º SIMPÓSIO MUNDIAL DE ESTUDOS DA LÍNGUA PORTUGUESA (SIMELP), realizado no formato híbrido entre Angola e Brasil, e realizou a curadoria da mostra Angola na USP em cartaz na Biblioteca Florestan Fernandes FFLCH/ SP de 29 de Setembro até 24 de Outubro de 2022. Entre 2015 e 2016 no Museu Afro Brasil/ SP, trabalhou como educadora na exposição Carolina em Nós, que contava a história de vida e obra da escritora Carolina Maria de Jesus.
[4] Importa notar que durante o colóquio, em 29 de novembro de 2024, Castro ministrou o Minicurso 14, “Oficina de Escrita Identitária Feminista” (Taller de escritura identitaria feminista), em parceria com Lucía E. Nieto (Colectiva Editorial Hermanas en la Sombra/Universidad Autónoma de Baja California – México).