Ricardo Barbosa, Jr.[1]
Estevan Coca[2]
Gabriel Soyer[3]
Este texto é um Press Release do artigo:
Ricardo Barbosa Jr., Estevan Coca & Gabriel Soyer (2022). School food at home: Brazil’s national school food programme (PNAE) during the COVID-19 pandemic. Social & Cultural Geography, 2022. DOI: https://doi.org/10.1080/14649365.2022.2115538
A pandemia da COVID-19 trouxe diversos desafios para o abastecimento alimentar, especialmente pelas limitações na circulação de pessoas e de mercadorias, modificando o jeito de comercializar e também o de consumir os alimentos. O estudo ‘School food at home: Brazil’s national school food programme (PNAE) during the COVID-19 pandemic’ (Alimentação escolar em casa: o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) no Brasil durante a pandemia da COVID-19) trouxe um panorama sobre como isso se deu em relação à alimentação escolar no Brasil. Os autores entrevistaram 43 pessoas em todas as regiões do país. Dentre os entrevistados constaram representantes de órgãos públicos e da sociedade civil.[4]
Apesar de o Brasil possuir uma política pública de alimentação escolar que serve como referência para outros países na América Latina e na África, os efeitos decorrentes da pandemia da COVID-19 também se manifestaram dentre os estudantes de escolas públicas brasileiras. Nas primeiras semanas da pandemia da COVID-19, o Brasil se viu diante do desafio de não interromper de modo irrestrito a alimentação dos(as) estudantes de escolas públicas, o que foi resolvido depois de intensa preocupação e proposições manifestadas por diversas entidades da sociedade civil.
A pesquisa demonstrou que as escolas precisaram se adaptar não apenas em relação aos conteúdos de aprendizagem, permitindo-os serem trabalhados em casa, como também em relação à alimentação escolar. Assim, pela primeira vez na história do país, foram criadas estratégias para que as merendas oferecidas por escolas públicas fossem consumidas nas residências dos alunos, na maior parte dos casos sendo preparadas pela própria família.
Quadro 1 – Comparativo entre as principais diferenças do programa e sua implementação na Pandemia de COVID-19
Alimentação escolar | Alimentação escolar em casa | |
Alimentos consumidos por | Estudantes | Estudantes e suas famílias |
Condição em que os alimentos são disponibilizados | Refeição preparada | Kits de alimentos para serem preparados antes do consumo |
Quem prepara os alimentos | Funcionários na escola; geralmente mulheres (e.g., cozinheiras, merendeiras) | Família, frequentemente mulheres |
Frequência em que os alimentos são disponibilizados | Todos os dias em que há aulas | Em um número limitado de vezes durante a pandemia; o número exato é específico a cada caso |
Qualidade da alimentação provida | Melhor; cardápio de alimentação escolar planejado dentro da estrutura do PNAE, atentamente acompanhado por nutricionistas da escola | Menos benéfico; enquanto a comida disponibilizada ainda é planejada por nutricionistas da escola, existem restrições significativas (disponibilidade de dinheiro, tamanho das porções, disponibilidade de produtos, perecibilidade, etc.) |
Origem dos alimentos | Por lei, ao menos 30% da agricultura familiar local; o restante do varejo convencional | A legislação continua a sugerir, mas não requer mais 30% da agricultura familiar local, como observado durante o estudo de campo; a maior parte provém do varejo convencional |
Diversidade dos alimentos | Baseado em necessidades nutricionais, hábitos de alimentação, cultura alimentar local, estação, e diversificação agrícola | Frequentemente alimentos básicos entre a cesta básica; excepcionalmente, em alguns casos se oferece maior diversidade |
Tamanho das porções de alimentos obtidos | Porções grandes por um preço favorável em custo/benefício | Porções em embalagens menores e por um preço maior |
Quão frescos são os alimentos | Os alimentos são obtidos regularmente para garantir que sejam frescos, maior disponibilidade de frutas, legumes, e menos alimentos processados | Maior parte de alimentos não-perecíveis que podem ser armazenados por mais tempo |
Proporção entre alimentos frescos e processados | Alimentos processados, e especialmente ultraprocessados, são limitados pelo cardápio escolar | Kits de alimentos incluem sobretudo alimentos processados e alguns ultraprocessados; casos em que existe a priorização de alimentos frescos são exceções (e.g., Rio Grande do Norte) |
Frequência em que agricultores familiares locais entregam os alimentos | Contratos regulares de entrega | Os contratos foram suspensos; em algumas localidades, agricultores familiares locais forneceram kits de alimentos com pedidos em frequência irregular e no atacado |
Comida utilizada como um recurso educacional | Mais frequentemente, mas ainda de maneira limitada | Menos frequentemente; em alguns casos, tentativas por meio de engajamento online e receitas adicionadas aos kits de alimentos |
Requisitos para acessar os alimentos escolares | Presença na escola | Em alguns casos, a família deve preencher um formulário solicitando kits de alimentos e, na maior parte dos casos, retirar os kits nas escolas; as famílias devem também ter condições apropriadas para armazenar e conhecimento para preparar os alimentos em casa |
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da pesquisa (2022).
Como a fome aumentou no Brasil no contexto da pandemia, fazendo com que o país voltasse a integrar o Mapa da Fome, as mudanças no PNAE contribuíram para que os efeitos disruptivos da crise fitossanitária nas cadeias alimentares fossem menos perversos nos domicílios dos estudantes da Rede Pública. Ou seja, durante a pandemia o PNAE contribuiu não apenas com a alimentação dos próprios alunos como, pela primeira vez, também com a de suas famílias.
Contudo, foi possível constatar que apesar das medidas de apoio aos efeitos da pandemia na segurança alimentar dos estudantes e de suas famílias, o PNAE não funcionou de acordo com seus parâmetros estruturais regulares. Isso pôde ser percebido em duas situações: a) alguns municípios não conseguiram encontrar caminhos para que fosse garantida a possibilidade de os estudantes acessarem os alimentos para os consumirem em casa e; b) a garantia de uma parcela de mercado de 30% da agricultura familiar não foi observada já que algumas entidades executoras optaram por fornecer somente alimentos comprados em redes varejistas nos kits disponibilizados para o consumo dos estudantes em suas residências. A oferta universal da alimentação escolar a todos alunos de escolas públicas e a necessidade de que 30% do alimento comprado com os recursos do Governo Federal seja oriundo da agricultura familiar foram flexibilizados durante a pandemia (confira o Quadro 1 acima).
A pandemia trouxe diversos desafios para a adaptação do PNAE enquanto política pública. Quando alteramos o local de implementação de uma política pública que abrange milhões de alunos e refeições por dia, algumas questões precisam ser respondidas, a exemplo das seguintes: Como foi determinado quem recebe a alimentação escolar? Com qual frequência? Onde? Nossos resultados apontam que devido ao baixo valor per capita repassado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), como relatam os participantes da pesquisa que integram a linha de frente do PNAE, as entidades executoras tiveram que tomar decisões sobre quem recebeu os kits de alimentação. Isso significa que, em muitos momentos, a entrega dos kits foi focalizada em dois grupos de famílias: as mais pobres que possuíam registro no CadÚnico e; as que não se encontravam no registro antes da pandemia, mas se encontravam em situação similar por conta da pandemia – situação que foi constatada pelas escolas.
Em relação a frequência, identificamos que a alteração na Lei do PNAE abriu margem para que as entregas dos kits fossem realizadas de forma irregular, aquém do que seria necessário para garantia plena da segurança alimentar dos estudantes. A definição dos locais de entrega dos kits muitas vezes não levou em conta as barreiras de transporte para que as famílias pudessem, de fato, ter acesso a eles. Além do mais, as famílias em situações mais precárias também encontraram desafios em ter plenas condições de armazenar e preparar os alimentos (e.g., a falta de gás).
Desse modo, a adaptação do PNAE durante o contexto da pandemia da COVID-19, apesar de ter importantes resultados na esfera do consumo (alguns estudantes e suas famílias receberam o kit alimentação), foi limitada na universalização desse modelo emergencial e na garantia da comercialização de produtos da agricultura familiar. Como ensinamento, o estudo ressalta que em contextos de crise, as políticas públicas de alimentação devem ser pensadas tendo por base a totalidade dos beneficiários e proponentes assim como as múltiplas cargas interseccionais as quais podem estar sujeitas.
Para mais informações sobre alimentação escolar vide:
Barbosa, R., Jr, & Coca, E. (2022). Enacting just food futures through the state: Evidence from Brazil. Canadian Food Studies/La Revue Canadienne Des Études Sur L’alimentation, 9(2), 75–100. https://doi.org/10.15353/cfs-rcea.v9i2.540
Coca, E., & Barbosa, R., Jr. (2018a). Responding to neoliberal diets: School meal programmes in Brazil and Canada. In A. Gray & R. Hinch (Eds.), A handbook of food crime: Immoral and illegal practices in the food industry and what to do about them (pp. 347–363). Bristol University Press. https://doi.org/10.1332/policypress/9781447336013.003.0022
Coca, E., & Barbosa, R., Jr. (2018b). Hortas Escolares Em Vancouver, Canadá Como Parte Da ‘Segunda Geração’ Da Soberania Alimentar. Ateliê Geográfico, 12(1): 219–36. https://doi.org/10.5216/ag.v12i1.49270
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
[1] Mestrando, Departament of Geography, University of Calgary, Canadá. Email: ribarbosajr@gmail.com
[2] Professor Adjunto, Instituto de Ciências da Natureza, Universidade Federal de Alfenas, Brasil. Email: estevan.coca@unifal-mg.edu.br
[3] Doutorando, School of Public and International Affairs, Department of International Affairs, University of Georgia, USA. Email: soyer@uga.edu
[4] Mais informações sobre o artigo podem ser lidas também em fio no twitter dos autores em inglês e português.
Fonte Imagética: Prefeitura de Tubarão-SC. Município realiza sexta entrega de kits de alimentos da merenda escolar. 13 ago. 2020. Disponível em: <https://www.tubarao.sc.gov.br/noticias/ver/2020/08/municipio-realiza-sexta-entrega-de-kits-de-alimentos-da-merenda-escolar>. Acesso em: 6 set. 2022.