Carlos Siqueira1
Edir Veiga2
14 de outubro de 2024
Este texto faz parte de uma série especial do Grupo de Reflexão G20 no Brasil do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Leia os textos anteriores aqui.
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Neste texto abordamos o tema das finanças sustentáveis no G-20 e a possibilidade de que o governo brasileiro consiga ampliar ou acessar novas fontes de financiamento para a conservação da Amazônia. O Brasil já conta com os fundos Amazônia e o do Clima. Para isso, busca mobilizar recursos financeiros dos Estados e dos diferentes fundos que existem hoje para financiar medidas de enfrentamento à emergência climática. Entre esses fundos, voltados para a conservação e preservação ambiental, destacamos o Green Climate Fund3 (GCF), Global Environment Facility4 (GEF), Climate Investment Fund5 (CIF), e o Adaptation Fund6 (AF). No geral, o objetivo central desses fundos é aportar recursos nos países do Sul Global para custear projetos de proteção dos diferentes ecossistemas, biodiversidade e mudanças climáticas.
Assim, é importante compreendermos o papel das finanças no enfrentamento da emergência climática e a necessidade de se ampliar as fontes de recursos financeiros disponíveis aos países do Sul Global. De outra forma, como os fundos de financiamento podem ser entendidos e destravados em favor da região amazônica, periferia do capital, e uma das regiões que mais sofrem impactos de atividades predatórias de grandes corporações internacionais. Para isso, abordamos como o debate sobre finanças sustentáveis se organiza no G-20 Financeiro e de que forma pode ser relacionado à Amazônia brasileira.
O status amazônico diante do capitalismo predatório
A Amazônia brasileira esteve relativamente preservada dos interesses dos grandes grupos econômicos até a primeira metade do século XIX. Com o advento da Segunda Revolução Industrial, a partir de 1850/60, e com a expansão da indústria na Europa e nos Estados Unidos, a demanda por borracha aumentou, sobretudo, por parte do Império Britânico, e isso transformou a Amazônia em lócus de oferta de produto para o mercado externo (RIBEIRO, 2006).
Assim, a partir de 1870, houve um primeiro grande movimento migratório da região Nordeste em direção à Amazônia, com cerca de 300 mil pessoas se deslocando em busca de trabalho e riqueza. Além da borracha, produtos como resinas, óleos, canela, cravo e baunilha eram extraídos da floresta amazônica para fins comerciais. Esse boom populacional foi observado até cerca de 1920, quando se deu o fim do ciclo da borracha. O declínio da produção de borracha na Amazônia ocorreu com a expansão da produção via pirataria para a Indonésia. Isso levou a um certo descanso à região amazônica, que passaria os próximos cinquenta anos sem enfrentar uma ação sistêmica de exploração por parte das grandes empresas nacionais ou internacionais (SERRA; FERNANDEZ, 2004).
Nos anos 1960, os golpes militares na América do Sul, entre os quais no Brasil (1964), trouxeram preocupações geopolíticas ao governo brasileiro, que começou a pensar como enfrentar estes problemas no Norte, devido à ação de movimentos guerrilheiros na fronteira e dentro do próprio país, como a Guerrilha do Araguaia, que se instalou no sul do Pará a partir de 1966 (LOUREIRO, 2014). No governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), foi criado o Plano de Integração Nacional (PIN), com o lema “Integrar para não Entregar”, que continha medidas para ocupação do Norte do Brasil, supostamente para prevenir o possível risco de perda de território no contexto de conflitos armados entre governo e oposição nos países fronteiriços. Usa-se o álibi da defesa da soberania nacional para militarizar a Amazônia.
Entre os objetivos do PIN estavam a criação de incentivos fiscais para atrair grandes empresas para a Amazônia brasileira e atrair mão de obra do Nordeste a fim de ocupar a região com a promessa de distribuição de terras para assentar pequenos produtores na região. No entanto, os principais beneficiados com essas terras foram os grandes grupos econômicos instalados no País. O primeiro grande impacto se dá com a construção de três grandes rodovias federais: Santarém-Cuiabá, Perimetral Norte e Transamazônica. Paralelamente a essa estratégia foram concedidos incentivos para a exploração de madeira, pecuária e agronegócio, consolidando-se a partir desse momento a grande propriedade como estratégia de ocupação da Amazônia (HEBETTE, 1991; SIMONIAN ET AL, 2015).
O resultado dessa estratégia da ditadura civil-militar foi a emergência da especulação da terra por meio da grilagem, do garimpo ilegal e das monoculturas voltadas para o mercado externo, a exemplo da soja, como instrumentos da expansão da fronteira agrícola na Amazônia. Os conflitos agrários com camponeses e indígenas não tardaram a surgir e, com eles, a violência passa a fazer parte do cenário amazônico desde então. De acordo com Salles, entre 1500 e 1970, apenas meio por cento da floresta amazônica tinha sido derrubada. E, de 1970 até 2022, quase 20% dela foi desmatada (SALLES, 2023). Entre os fatores que contribuíram para tamanha devastação estão projetos como o Grande Carajás, criado no fim da ditadura civil-militar. A partir daí, estava construído o cenário para o contínuo processo de agressão à floresta amazônica, marcado pela construção de grandes hidrelétricas na região, como Tucuruí e Belo Monte, que representa uma tragédia imensa à fauna, à flora, aos rios e aos povos da floresta (LOUREIRO, 2002; CASTRO, 2014).
Outro fator de pressão sobre o bioma amazônico se deu entre os anos de 1985 e 2023, com a transformação da floresta em pastagem e plantio de soja, nesse período, foram 59 milhões Km² destinados à pastagem, consequentemente de desmatamento no mesmo nível (MAPBIOMAS, 2024). Em 2000, a pecuária foi introduzida em larga escala, atingindo hoje a cifra de 64 milhões de cabeças de gado. Esses empreendimentos estimularam a migração de trabalhadores para a região, ocorrendo a expansão urbana das cidades amazônicas, com grandes perdas florestais. Na Amazônia Legal, já são cerca de 38 milhões de habitantes (SERRA; FERNANDEZ, 2004).
A exploração desordenada e predatória já obedecia a uma lógica sistêmica do vale tudo para especuladores que buscavam o máximo desmatamento possível para loteamentos futuros, plantação de monocultura e/ou transformação da floresta em pasto. Em 1995, a floresta amazônica brasileira no Pará, Mato Grosso e Rondônia perdeu 29.059 km². Em 1997, a perda florestal chegou a 13.227 km². Até 2002, a média foi de 17 mil km² desmatados. Em 2004, houve um novo pico de desmatamento, chegando a 27.772 km². Entre 2004 e 2017, houve uma queda contínua do desmatamento em 30%, atingindo 19.014 km² (INPE, 2024). A criação do Plano de Combate ao Desmatamento na Amazônia (PPCDAm) foi fundamental nessa redução.
No entanto, os governos de Michel Temer (2016-2018), e Jair Bolsonaro (2019-2022) foram terríveis para o meio ambiente. Suas políticas predatórias levaram a um aumento assustador nos índices de desmatamento, que chegaram a 87%, com a devastação de 13.038 km²/2021 (INPE, 2024). Toda essa destruição florestal instaurou-se a partir da defesa explícita desses presidentes da neutralização e do desmonte dos órgãos de defesa ambiental, monitoramento e fiscalização da floresta amazônica.
Em 2023, o presidente Lula retomou a política ambiental e os dados mostram uma queda acentuada nos índices de desmatamento desde então, de 13.038 km² em 2021 para 9.064 km² em 2023 (INPE, 2024). E já na COP 27, realizada no Egito em 2022, quando Lula participou na condição de presidente eleito, ele anunciou que o Brasil assumiria o compromisso de desmatamento zero até 2030.
É nessa perspectiva, da somatória do regramento de defesa da Amazônia com o financiamento sustentável incentivado no G-20 a partir do Grupo de Trabalho de Finanças Sustentáveis (SFWG), com escuta dos povos locais, que se deve pensar em outro futuro para a região amazônica.
O financiamento sustentável para o enfrentamento da crise climática na amazônia brasileira
Os fundos de financiamento verde, as chamadas finanças sustentáveis, consistem em um arranjo que, de maneira geral, busca compatibilizar as finanças em favor do crescimento econômico e, ao mesmo tempo, reduzir a pressão sobre o meio ambiente. Em tempos de mudanças climáticas, agentes estatais de toda ordem, mas principalmente da periferia do capital, buscam captar recursos para mitigar e adaptar-se a essa crise. Uma das referências para pensar nessa possibilidade está na COP/15 (Copenhague, 2009), na qual países poluidores se comprometeram em repassar 100 bilhões de dólares por ano para países pobres e emergentes.
Essa promessa de financiamento teve algum resultado com a institucionalização do Acordo de Paris (2015). Contudo, somente em 2021, mais de uma década depois, ocorreram poucos repasses. Países periféricos acusaram os países ricos de serem parceiros não confiáveis; por sua vez, estes alegaram dificuldades em mobilizar subsídios e empréstimos.
Dessa maneira, essa desresponsabilização pode ter um custo ainda maior. Um estudo do economista Nicholas Stern demonstrou que os países periféricos precisariam de cerca de US$ 2 bilhões por ano até 2030 para mudar as bases de suas economias para uma matriz de baixo carbono e, assim, enfrentar a crise climática (O GLOBO, 2023).
Nessa perspectiva, foi criado em 2016, no G-20/trilha de finanças, o grupo de Estudo sobre Financiamento Verde, depois renomeado em 2018 como Grupo de Estudo de Finanças Sustentáveis (SFSG), transformado em 2021 no Grupo de Trabalho de Finanças Sustentáveis do G-20 (G-20 SFWG), com o objetivo de identificar barreiras institucionais e de mercado para finanças sustentáveis e desenvolver opções para superar tais barreiras, e contribuir para a melhor convergência do sistema financeiro internacional com os objetivos da Agenda 2030 e do Acordo de Paris (G-20, 2024).
E ainda,
O Grupo também foi mandatado para desenvolver, de forma colaborativa, um roteiro inicial de finanças sustentáveis do G-20 baseado em evidências e focado no clima, melhorando os relatórios de sustentabilidade, identificando investimentos sustentáveis e alinhando os esforços das Instituições Financeiras Internacionais com o Acordo de Paris (G-20, 2024).
O SFWG/G-20 é um arranjo importante para pensar uma saída diante das dificuldades dos países não poluidores, mais vulneráveis, vez que as assimetrias se tornam cada vez mais robustas. No entanto, se a região amazônica entra na agenda externa brasileira com destaque por sua importância, muito mais do que destravar o financiamento, o SFWG deve analisar, além das ações predatórias das grandes corporações, também os incentivos que tornam essas iniciativas um jogo de soma zero. Se, por um lado, se destrava o acesso dos vulneráveis aos fundos ambientais e climáticos, por outro os grandes predadores do mercado se beneficiam desse arranjo financeiro.
Considerações finais
A Amazônia brasileira está no centro das discussões sobre a emergência climática. Se, por um lado, é base tradicional de insumos para o capital, de outro, convive com a eterna promessa de conservação e preservação.
Há pelo menos vinte anos de produção de regramento institucional e políticas públicas para o desenvolvimento com sustentabilidade, além dos órgãos de controle, a política e o plano de combate às mudanças climáticas e, especificamente, o Programa de Combate ao Desmatamento da Amazônia- PPCDAm, como também políticas de governos subnacionais.
Ao lado deste padrão quase hobbesiano, ou seja, mesmo com o Estado, como regra, os indicadores socioeconômicos e de segurança são sofríveis, convivem concomitantemente grandes agentes econômicos transnacionais responsáveis pelo baixo status da Amazônia quanto à preservação da floresta e, consequentemente, de emissões de gases de efeito estufa.
O desafio posto é fazer convergir os fundos que existem, principalmente aqueles que foram formados para a preservação, como o Fundo Amazônia e outros que estão sob a governança das Nações Unidas. O SFWG/G-20 tem a oportunidade, sob a presidência brasileira, de, com seu histórico, legado das diversas presidências e os objetivos postos, contribuir e facilitar o acesso dos países não anexos da Convenção do Clima em direção aos fundos de preservação ambiental, principalmente para superar as barreiras e demais entraves, uma vez que, ao lado da disponibilidade de recursos financeiros, existe desresponsabilização com a preservação ambiental, além de assimetrias de poder quando se colocam os grandes agentes econômicos e os Estados periféricos que fazem parte da Convenção do Clima.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
Referências bibliográficas
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HÉBETTE, Jean. O cerco está se fechando: o impacto do grande capital na Amazônia. Belém: NAEA, 1991.
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LOUREIRO, Violeta. Amazônia: estado, homem, natureza. 3ª. Ed.- Belém, Pa: Cultural Brasil, 2014.
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INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPACIAIS. COORDENAÇÃO GERAL DE OBSERVAÇÃO DA TERRA. PROGRAMA DE MONITORAMENTO DA AMAZÔNIA E DEMAIS BIOMAS. Desmatamento – Amazônia Legal – Disponível em:<https://terrabrasilis.dpi.inpe.br/downloads/>Acesso em: 20 de set. de 2024.
RIBEIRO, Nelson. A Questão geopolítica da Amazônia: da soberania difusa à soberania restrita. Belém: EDUFPA, 2006.
SALLES, João Moreira. Arrabalde. São Paulo: Cia. Das Letras, 2023.
SERRA Maurício Aguiar; FERNANDEZ, Ramon Garcia. Perspectiva de desenvolvimento da Amazônia: motivo para otimismo e para o pessimismo. Economia e Sociedade, Campinas, v.13.n 2(23), p.107-131.jul-dez.2004.
SIMONIAN, Ligia; SILVA, Marcio; BAPTISTA, Estér. Formação Socioambiental da Amazônia. In: Simonian, L.: Baptista, R (Orgs). Formação Socioambiental da Amazônia. Belém: NAEA, 2015.
1 Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do Grupo de Reflexão G-20 no Brasil do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Email: edu13siqueira@gmail.com
2 Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ-UCAM). Professor da Universidade Federal do Pará (UFPA). Membro do Grupo de Reflexão G-20 no Brasil do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Email: edir@ufpa.br
3 GCF tem origem na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas em 2010 (UNFCCC).
4 O GEF foi estabelecido em 1991 como um programa piloto de USD 1 bilhão do Banco Mundial.
5 Os Fundos de Investimento Climático (Climate Investment Funds – CIF) foram criados em 2008, a pedido do G8 e G20, com o objetivo de financiar projetos piloto em países em desenvolvimento, o Banco Mundial administra os CIFs.
6 O Fundo de Adaptação (Adaptation Fund) foi criado sob o Protocolo de Kyoto da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas.
Referência imagética: Agência BNDES de Notícias. “Novo Fundo Clima cresce e tem R$10,4 bilhões com novas condições para projetos verdes”. 01.04.2024. Fotografia de Ricardo Stukert. Disponível em: <https://agenciadenoticias.bndes.gov.br/detalhe/noticia/Novo-Fundo-Clima-cresce-e-tem-R$-104-bilhoes-com-novas-condicoes-para-projetos-verdes/>. Acesso em 10.10. 2024.