Eduardo C. B. Bittar*
1. Os caminhos imprevistos da ciência
A ciência progride pelos caminhos mais imprevistos possíveis. Na obra recém-publicada, intitulada Semiótica, Direito & Arte: entre Teoria da Justiça e Teoria do Direito[1]– que conta com os prefácios de François Ost, Antoine Garapon e José M. A. Linhares – me reencontro com o meu próprio percurso acadêmico, iniciado no campo da Semiótica do Direito, considerando-se a relevância que a fronteira de estudos Law and Language assumiu na compreensão interdisciplinar que desenvolvo no campo da Filosofia e Teoria do Direito.
Em estudo anterior, no campo da Semiótica, intitulado Linguagem Jurídica: semiótica, discurso e direito[2], já havia sido possível desenvolver uma abordagem segundo a qual o Direito deve ser compreendido como um conjunto de práticas de discurso (discurso normativo; discurso burocrático; discurso decisório; discurso científico), e foi a partir dela que se tornou possível desenvolver uma visão abrangente e sistemática a respeito do sistema jurídico. Mas esta somente ‘brotou’ quando de fato me dediquei ao empreendimento de uma tarefa de reconstrução normativa e revisão paradigmática da forma como lidamos e tratamos o Direito, nos dias atuais, no campo da Teoria do Direito, que foi o estopim para o nascimento da obra Introdução ao Estudo do Direito: humanismo, democracia e justiça[3].
De uma certa forma, portanto, a sémiotique française – de Greimas a Landowski, de Fontanille a Zilberberg – atravessa (e vem atravessando) a progressão das minhas pesquisas de uma forma muito curiosa. Enquanto a Semiótica se move como método, torna possível a observação do mesmo fenômeno sob ângulos os mais variados. Assim, a partir de De l´imperfection,Algirdas Julien Greimas deixa uma pista importante de sua inclinação para o campo da beleza e da estética, que haveria de dar um novo destino ao campo de estudos da Semiótica. Foi esta a pista perseguida aqui. Ao mesmo tempo, quando esta pista se une à influência recebida do pragmatismo filosófico de John Dewey, no campo da compreensão da Arte, o resultado é a precipitação da possibilidade de abordar a relação entre Law & Art, partindo-se de pressupostos extraídos da relação entre Law & Language.
Foi desta forma que a sombra do passado de pesquisa pôde abrigar a novidade acadêmica contida na empreitada da nova obra, Semiótica, Direito & Arte: entre Teoria da Justiça e Teoria do Direito. Nela, tornei possível reabilitar um antigo, e quase abandonado, desejo intelectual, qual seja, o de compreender o Direito pelo movimento de seus símbolos, de forma a transcender a visão interna do Direito, para concebê-lo numa abordagem que o enxerga desde fora. Mais que isto, nela tornei possível compreender o Direito pelo mais importante de seus símbolos, o símbolo da Justiça, com toda a aura mágica que encobre a possibilidade de decifração de seus sentidos, reabilitando-o como o símbolo-centro dos estudos do Direito, num exercício que, evidentemente, se estabelece na contra-mão do Direito tecnificado de nossos tempos.
2. A pesquisa simbólica: entre objetos usuais e objetos inusuais
Esta empreitada não se tornou possível, senão após alguns anos de estudos e pesquisas. Mas, o perfil de pesquisa desenvolvido não foi dedicado apenas à pesquisa ‘livresca’; a pesquisa ‘iconográfica’ trouxe consigo o importante desafio de pensar o Direito, tomando os ‘objetos concretos’ do mundo como ocorrências semióticas não desprezíveis do caminho de pesquisa. Assim, foi necessário aprender a ‘ver’, a ‘ouvir’, a ‘ler’ e a ‘lidar’ com a experiência (e tudo o que ela diz) de estar diante de ‘objetos concretos’, de cuja potência se extrairiam importantes elementos para a interpretação das práticas do Direito.
A imagem, a fotografia de arquivo, a pintura, o afresco,o Palazzo, a música, o graffiti, o curta-metragem, o poema entraram de forma retumbante na pesquisa. A pesquisa me fez deparar com ‘objetos inusuais’ na compreensão que se tem do Direito. Assim, o bouleversement da dimensão do que é sensível impacta uma visão acerca do Direito, que, agora, ‘aparece’ re-significado e capturado pela ‘lente estética’, assumindo um lugar antes não imaginado na leitura do ‘livro’ do Direito.
Aqui está o registro de que o Direito, normalmente, está associado aos Códigos, à legislação escrita, aos livros, aos registros e aos documentos. Porém, é na transcendência destes ‘objetos usuais’ que se percebe a força, a estratégia e a transformação dos símbolos. Os símbolos estão no centro dos processos de socialização, e é ali que se tornam alvo de disputas. No contexto atual, as disputas simbólicas que ocupam a agenda do mundo contemporâneo são aquelas, propriamente, relativas às estátuas e aos símbolos da opressão do passado.
3. O olhar do jurista: entre o olhar tecnocrático e o olhar sensível
Um dos pontos centrais de apoio da abordagem explicitada no interior do livro passa a ser a desrepressão do olhar do jurista. O olhar do jurista, enquanto olhar tecnocrático, treinado e reificado, é entendido como insuficientemente preparado para servir às tarefas da justiça. E isso porque o símbolo da justiça convoca a muito mais. No entanto, a cultura jurídica imperante nos fez desaprender a ler o sentido mais amplo dos fenômenos sociais. Neste sentido, o símbolo da justiça reclama a compreensão das dinâmicas em transformação do mundo, chama às tarefas de lidar com os desafios contidos no respeito à dignidade humana, convoca pelas expectativas sociais depositadas nas decisões jurídicas. A banalização do conhecimento, a tecnificação da profissão, a alienação do lugar de mundo dos profissionais da área do Direito, a despersonalização das interações no campo da decisão jurídica, são fatores que, hoje, apontam para um cenário preocupante, no que tange ao sentido das práticas do Direito. Há um empuxo para a desumanizaçãodas profissões jurídicas.
Então, a obra se aproxima da Arte– ao se colocar na relação entre Law & Art -, para manifestar a sua ‘aparição’, enquanto contra-empuxopara as tendências de um tempo. O contra-empuxo importa em remar na contramão do fluxo tendencial de um tempo, algo que aponta por si só – e pela negação nele contida -, que o sentido das coisas se encontra invertido. Este exercício é certamente uma tarefa de resistência filosófica, guiada pelas críticas frankfurtianas à reificação do olhar na vida moderna.
Então, no interior da obra, será nesta exata medida que o resgate do olhar sensível irá reforçar a preocupação com a humanização das profissões jurídicas. Desta forma, grifa-se que o exercício de aproximação do jurista da Arte é mais do que um exercício de cultivo de si, e sim, um exercício de perda de si, para reencontrar-se (re-configurado), novamente, no seio do(a) Outro(a). É na alterização da compreensão de mundo que se torna possível dissolver a ‘armadura endurecida’ da técnica jurídica, ressignificando a própria experiência de ‘ser jurista’, para em seu lugar, fazer do exercício do poder-de-dizer-o-Direito a responsabilidade de realizar a dignidade humana na busca por mais justiça e igualdade, diversidade e solidariedade, redistribuição e liberdade.
4. A sensibilidade, a arte e os Direitos Humanos
É assim que a obra haverá de conduzir o leitor numa aventura de compreensão do que há de simbólico no Direito. Mas, será particularmente no último capítulo que o livro ganhará o seu deságue no tema dos Direitos Humanos.
Os Direitos Humanos são conhecidos pelos Tratados Internacionais, pela Constituição, pela legislação infraconstitucional. Enfim, uma profusão de textos e documentos legais. Mas, não é este o caminho que se procurou percorrer; a preocupação aqui foi a de apontar para o papel das artes na sensibilização para os temas de Direitos Humanos. Aqui, a potência da arte é explorada como um caminho sensível (e, possível) para a disseminação de uma cultura de Direitos Humanos.
A percepção que é revelada não é outra senão de que o cotidiano nos convoca à percepção das injustiças, da opressão, das violências, das intolerâncias e dos barbarismos. A anestesia da vida moderna nos coloca distantes e dispersos demais para percebermos tudo isso. Um pouco de inércia, um pouco de obtusidade, um pouco de indiferença e um pouco de frieza colaboram ainda mais para esse tipo de visão de mundo.
Daí, o papel impactante – ao nível sensível – das obras de arte, no sentido de fazerem visível, audível, apreensível e discutível, de forma criativa, aquilo que nos cerca, e que se encontra em descompasso com as exigências morais mais avançadas da humanidade e com os ideais de uma cultura de Direitos Humanos. Ali onde a arte se encontra, e cria elos, com os Direitos Humanos, apenas se potencializa o efeito transformador da reunião entre Arte e Educação em Direitos Humanos, no sentido de uma pedagogia da sensibilidade.
É assim que, na mobilização de uma Arte Política – na medida em que política é o encontro com o(a) Outro(a) -, o incômodo catártico gerado pelas Artes deve nos deixar normalizar [e, deve nos impor pensar, refletir, parar – se for preciso!] a fome, a miséria, as desigualdades, a opressão, a injustiça social, as violências e o ódio social. Se o símbolo da justiça nos convoca a algo, eis aqui uma agenda repleta de percalços, dificuldades, obstáculos e riscos.
*É Professor Associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi Presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos (ANDHEP, 2009-2010). Foi 2º. Vice-Presidente da Associação Brasileira de Filosofia do Direito (ABRAFI-IVR, 2009-2016). Foi Visiting Professor da Università di Bologna (Bologna, 2017), da Université Paris-Nanterre (Paris, 2018) e do Collège de France (Paris, 2019). É Membro Titular do Grupo de Pesquisas Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do IEA/ USP. É pesquisador N-2 do CNPq.
[1]Editora Almedina, 1ª. edição, 2020, 359 páginas.
[2] Editora Saraiva, 7ª. edição, 2017, 432 páginas.
[3] Editora Saraiva, 2ª. edição, 2020, 639 páginas.
Referência imagética:
Guernica (1937) – Pablo Picasso