Daniel A. de Azevedo1
Pablo Ibañez2
22 de julho de 2024
Este texto faz parte de uma série especial do Grupo de Reflexão G20 no Brasil do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Leia o texto anterior aqui.
A Cúpula do G20 Financeiro no Brasil ocorre em meio a um momento extremamente delicado do sistema internacional. Além das duas guerras em curso, na Ucrânia e em Gaza, as tensões envolvendo médias e grandes potências têm aumentado, gerando uma ruptura daquilo que conhecemos como globalização. Hoje, teses sobre um processo de desglobalização já estão sendo cada vez mais discutidas, como o trabalho de Rajan (2023) bem evidenciou. Ainda que não haja um consenso entre os analistas, a “parceria sem limites” firmada entre China e Rússia, assim como as crescentes ações em bloco que países têm realizado, a exemplo do uso cada vez mais comum de sanções econômicas, elevam o grau de incerteza sobre como a geopolítica contemporânea lida com o complexo jogo de interesses globais. O que se sabe é que o sistema como conhecemos está em rearranjo.
A começar pelo descrédito cada vez maior sobre a Organização das Nações Unidas (ONU): é evidente que há um esvaziamento de suas competências e, tão grave quanto, uma diminuição na sua capacidade de ação. A cada ano, a ONU enfrenta um cenário de perda de receitas, pela retirada ou redução do financiamento que os países membros lhe destinavam3. Por outro lado, aumentam os agrupamentos de países que formam blocos econômicos e/ou militares, cada qual preocupado com os seus interesses. Verifica-se, também, uma expansão dos BRICS, ao mesmo tempo em que são criados outros arranjos com objetivos muito particulares, como a contenção da expansão do poder chinês na região Indo-Pacífica. O Quadrilateral Dialogue (QUAD) é uma dessas formações, contando com a presença dos EUA, Japão, Austrália e Índia, embora esta seja parte dos BRICS. Nessa verdadeira sopa de letrinhas é que se desenha uma arquitetura mais complexa e desafiadora. O G20 obviamente não está de fora.
Criado em 1999, o G20 Financeiro, que até a crise de 2008 reunia Ministros das Finanças e presidentes dos Bancos Centrais dos países membros, passou a contar desde então com chefes de Estado e de Governo. A presidência brasileira do G20 escolheu o lema “Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável”, e definiu três eixos, que refletem bem a agenda do governo Lula: combate à fome, à pobreza e à desigualdade; desenvolvimento sustentável e reforma da governança global. Ela também acompanha a própria expansão que as agendas no G20 tiveram nas últimas décadas, incluindo segurança alimentar, mudanças climáticas, investimento em infraestruturas, comércio, corrupção, igualdade de gênero, saúde global, novas tecnologias e questões relacionadas à segurança. Entre os maiores desafios, porém, estão a forma como são pensados os assuntos prioritários, como se organizam as propostas e se podem ou não se tornar efetivas produzindo uma verdadeira transformação nas sociedades.
Logo de saída já se observa uma das maiores dificuldades em relação ao G20. São 19 países, representando os cinco continentes, além da União Africana e da União Europeia. Juntos correspondem a cerca de 85% do PIB mundial e 75% do comércio internacional. Dentro do G20 temos os membros do G74 e é sabido que esses países votam em bloco no G20 e suas agendas nem sempre estão afeitas àquelas colocadas pelos países que, no conjunto, se intitulam de‘Sul Global’. Esses também têm procurado encontrar consensos, como é o caso da reestruturação do sistema financeiro global.
Essa agenda é uma das que mais aglutina membros, mas patina ainda por não ter ações efetivas para colocar modelos de financiamento mais justos e adaptados às exigências de questões como a transição energética, a mudança climática e o combate à pobreza. A dificuldade está em transformar em prática, nos territórios, o que se discute em escala global. Para Garcia et al. (2024), os bancos multilaterais de desenvolvimento devem ter maior protagonismo e instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) precisam contar com alternativas condizentes com a condição de países mais vulneráveis às altas dos juros e à desvalorização de moedas. Para os autores, outro ponto central seria a criação de um imposto mínimo global sobre os “super-ricos”. Em relação a tais aspectos, o trabalho desenvolvido nas reuniões que antecedem a Cúpula tem avançado e espera-se que, até o momento do evento, haja uma formalização dessas propostas e que algumas delas possam se tornar efetivas, o que não está tão claro em relação às outras agendas.
Cabe notar que a presidência rotativa desde 2022 tem sido ocupada por países do “Sul Global”: Indonésia (2022), Índia (2023), Brasil (2024) e a África do Sul no próximo ano. É fundamental observar que o governo brasileiro tem procurado articular os temas do G20 de maneira a que seja possível haver uma participação efetiva da sociedade civil por meio dos chamados grupos de engajamento, que fazem parte do G20 Social. São eles: C20 (sociedade civil), T20 (think tanks), Y20 (juventude), W20 (mulheres), L20 (trabalho), U20 (cidades), B20 (business), S20 (ciências), Startup20 (startups), P20 (parlamentos), SAI20 (tribunais de contas) e os mais novos deles: o J20 (cortes supremas) e O20 (oceanos).
Esses grupos de engajamento realizarão uma Cúpula paralela entre os dias 15 e 17 de novembro de 2024, às vésperas da Cúpula de Líderes, momento em que as propostas discutidas nos grupos de engajamento e coordenadas por membros tanto do governo quanto da sociedade civil serão apresentadas, discutidas e levadas para os líderes dos países-membros. Esse modelo já contou com a produção de diversos textos para subsidiar propostas que serão analisadas nas reuniões de alto escalão. São mais de quinze documentos totalizando cerca de 270 páginas, disponibilizados para os membros que estão na coordenação do evento. Com auxílio de software de inteligência artificial (Requalify.ai) analisamos esses documentos, com um olhar especial sobre as lacunas nas propostas. Percebe-se que elas apresentam questões extremamente relevantes, mas é pouco evidente como seriam transformadas em ações para gerar as transformações efetivas nos territórios.
Eles abarcam uma grande quantidade de temas, tais como: cultura, economia digital, educação, saúde e turismo, mas com certo enfoque para as questões climáticas e suas consequências, como a redução de risco de desastres, a transição energética e a sustentabilidade ambiental. Apesar das divergências nas abordagens e enfoques específicos de cada texto, há um consenso sobre a importância da ação conjunta, da implementação de políticas públicas eficazes, do fortalecimento do multilateralismo e da promoção de parcerias entre países, organizações internacionais e a sociedade civil.
Em alguns deles como educação e transição energética, o software apontou que “o documento não fornece uma análise detalhada sobre como as questões específicas de cada país ou região podem influenciar a implementação desses programas” (Requalify.ai). Apesar da definição dessas estratégias não ser função primordial de grandes acordos, o temor é que seja mais um de tantos que se tornam palavras jogadas ao vento. Em muitos debates, desconsiderar os diferentes contextos espaciais das realidades envolvidas de cada Estado pode ser um modo eficaz de tornar as propostas retóricas. Como já comentado, apesar de se chamar G-20, o grupo atualmente conta com mais de cem países, levando em consideração os dois organismos regionais que também fazem parte (União Europeia e União Africana). Dentro desse grupo, há situações socioeconômicas distintas como Canadá, Austrália, Estados Unidos, Alemanha, França, outras como Brasil, Turquia, África do Sul, e, ainda, Burundi, República Centro-Africana e Chade. A diversidade é evidente.
Nos outros documentos, quando aparece, a diferença se constrói a partir da regionalização contemporânea entre “Norte Global” e “Sul Global”. Apesar de sua importância enquanto grupo (geo)político, especialmente no embate contra a arquitetura financeira monetária e internacional, oriunda principalmente dos países do “Norte Global”, é fundamental entender as barreiras que pensar o mundo desse modo impõem no debate eficaz sobre políticas públicas. Bouron, Carroué e Mathian (2022) apontam a necessidade de romper o limite Norte-Sul para pensar as desigualdades de riqueza e desenvolvimento. No mapa que produziram no referido artigo, há, ao menos, seis categorias entre os Estados no mundo, tornando questionável a regionalização em apenas dois.
Um modo interessante de complexificar um pouco mais as demandas e torná-las territorializadas talvez seja a tentativa de aprofundar as relações no G-20 vistas até agora como verticais, com a criação de grupos de engajamento relacionados à sociedade civil. Nessa série especial promovida pelo Boletim Lua Nova5, já houve a reflexão sobre os entraves para a participação da sociedade civil nos debates que ocorrem no G-20. Gilberto França, Alina Ribeiro e Carolina Silva revelaram que o modo de participação e sua restrição depende do governo local e a relação que possui com a sociedade.
Na primeira semana de julho de 2024, esses grupos de engajamento produziram outros documentos – assistance notes – com o objetivo de levar as demandas para os líderes do G-20. Em geral, reflexo dos grupos criados, os documentos lidam com temas setoriais, sem enfoque espacial, com exceção do documento U20, que lida com os espaços urbanos. Está aqui um ponto fundamental que demanda reflexão.
G20 e as cidades
Segundo dados do IBGE (2022), 85% da população brasileira é urbana. Apesar das controvérsias ligadas a esse dado, e pesquisadores apontarem que o rural chegaria a uma taxa de, ao menos, 33% (Bitoun; Miranda, 2015), é inegável que o número seja crescente. Porém, em termos territoriais, apenas 0,54% da área total do país é urbanizada. Além disso, as diferenças internas são brutais: mais de um terço (36,5%) do total, se concentra no Sudeste. Na escala global, segundo a ONU, até 2050, a população mundial será 68% urbana.
Divulgado este ano, o Índice de Progresso Social (IPS) avalia três dimensões principais: necessidades humanas básicas, fundamentos para o bem-estar e oportunidades. Dentro dessas categorias, temas como meio ambiente, saúde e educação se enquadram em um cálculo no qual as variáveis possuem pesos diferenciados. No G-20, há Estados em praticamente todos os níveis classificatórios. Como a literatura aponta, as “cidades do Sul” possuem desafios distintos das “cidades do Norte” – isso desconsiderando o “hiperdiverso Sul” (Mabin, 2015, p.331). Mabin afirma que
ao teorizar a cidade ainda teríamos de lidar com a diferença – em outras palavras, a diversidade do urbano e a diferença que essa diversidade acarreta para a sociedade. A noção de que o mundo é ‘todo urbano’ nega a experiência de lugares que não são como Manhattan (Mabin, 2015, p.345).
Se avançamos para a escala intranacional, as diferenças se acentuam ainda mais. No Brasil, entre as dez cidades com maior IPS, oito estão no estado de São Paulo. Entre as vinte piores, todas estão na Amazônia. Essas cidades possuem desafios muito distintos em relação a direitos sociais e ambientais.
As diferenças profundas, que podem impactar no (in)sucesso dos objetivos traçados nas reuniões do G-20, não são amplamente levadas em consideração nem mesmo no documento denominado “U20 2024 Co-chairs statement”, produzido pelo grupo de engajamento sobre as Cidades. Segundo o documento, “as cidades são cruciais devido ao seu perfil demográfico, econômico e ambiental, mas ainda não são totalmente reconhecidas como intervenientes fundamentais no cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (Agenda 2030) e do Acordo de Paris” (U20, 2024). Apesar dessa declaração, a cidade ainda é colocada como um ente abstrato, sem materialidade e diferenças.
O texto é composto por duas diretrizes e nove subitens. A primeira se refere ao “Aumento da inclusão social, combate à fome e pobreza” e, a segunda, “reforma da governança global e o desbloqueio das finanças para promover o desenvolvimento urbano sustentável”. Dois pontos merecem atenção nesse documento. O primeiro diz respeito à relação entre emprego e sustentabilidade ambiental. Para maior eficácia dos planos, seria necessário criar tipologias e/ou regionalizações dos espaços urbanos em relação aos seus principais desafios. Temas como mobilidade urbana, saneamento básico e violência urbana com altos níveis de territorialização de grupos ilegais fazem parte da realidade de muitas cidades, por exemplo, do Brasil, da África do Sul, da Argentina e do México. Por outro lado, essas questões não aparecem de igual modo nos espaços urbanos alemães, australianos e sul-coreanos. Esses problemas vitais para as cidades latino-americanas não são citados nos documentos. Isso não significa que “assegurar uma alta qualidade de empregos verdes” (U20 2024) não seja importante para todos os contextos urbanos, porém a falta evidente de direitos básicos de cidadania impõe pensar a agenda ambiental vinculada à superação dessas demandas sociais.
O segundo ponto de destaque é a afirmação sobre a necessidade de “reconhecer as cidades como o nível de governo mais próximo das comunidades, aliadas cruciais para redução das desigualdades e no trabalho de colocar em práticas os objetivos da agenda 2030 de desenvolvimento sustentável através de uma governança multinível”. Talvez esteja aqui um caminho interessante para traçar planos factíveis de realização dos objetivos traçados. Impõe-se a necessidade de uma verdadeira descentralização do poder político à escala local (com verdadeira autonomia, o que inclui a capacidade de arrecadação tributária) com articulação interinstitucional, como se percebeu na pandemia de Covid-19. O G-20 pode ter um papel fundamental no estímulo a uma reestruturação institucional que valorize novos pactos territoriais.
As realidades urbanas são múltiplas e precisam ser levadas em consideração. Um espaço urbano com menos de 10.000 habitantes ou uma grande metrópole latino-americana impõem desafios distintos para a gestão territorial. A governança multinível sugere um desejo passado que não se concretiza no presente, e parece não haver perspectiva de futuro. Regiões metropolitanas são, atualmente, ingovernáveis, com dinâmicas sociais que ultrapassam claramente os limites municipais, mas a gestão ainda é estritamente territorial. No Brasil, até o momento, as tímidas tentativas de pensar uma governança multinível nas metrópoles falharam (Silva; Azevedo, 2020). Por outro lado, municípios pequenos (metade dos 5.570, no Brasil) possuem uma estrutura administrativa que não leva em consideração as diferenças geradas pela política da proximidade. A participação social nos dois contextos urbanos é fundamental e seu funcionamento depende dos elementos relacionados ao tamanho territorial e demográfico.
A questão está posta. Quais caminhos devemos seguir para que esses objetivos cheguem nos territórios? Até o momento, agendas setoriais prevalecem. As cidades são as únicas com grupos de engajamento dedicados ao seu recorte espacial. Mas, e os espaços rurais? (Isso para manter uma certa dualidade não muito eficaz para os dias de hoje). E os recortes fronteiriços, possíveis protagonistas nas causas e efeitos de propostas amplas colocadas à mesa no G-20? Parece que a agenda da reestruturação do sistema financeiro está mais efetiva, enquanto as outras patinam exatamente pelo fato de não ficar claro como efetivamente podem transformar os territórios.
É inegável a importância de eventos dessa magnitude, sobretudo quando se preocupam em aumentar a participação da sociedade civil. O G20 no Brasil tem demonstrado que se preocupa com isso, mas é preciso avançar ainda mais para que os territórios sejam verdadeiramente considerados em um contexto tão diverso socioespacial dos países membros. É necessário, ainda, que se acompanhe o desenrolar das atividades dos grupos de engajamento e de como eles serão, ou não, considerados na Cúpula de Líderes, em novembro. Afinal, ela representa uma variedade de países que hoje encontram-se em disputas geopolíticas que vêm promovendo um rearranjo no sistema internacional como um todo. Encontrar consensos dentro desse grupo não será tarefa trivial.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
Referências bibliográficas
Bitoun, J.; Miranda, L. I. B. A tipologia regional das ruralidades brasileiras como referências estratégica para a política de desenvolvimento rural. Raízes, v.35, n.1, 2015, pp.21-35.
Garcia, A. S.; Lemos, L. C. S. Brazil’s G-20 Presidency and the Global South. Stimson, Policy Meno, jan. 2024.
Garcia, A. S. et al. Por uma nova arquitetura financeira global. Valor Económico, 2 de julho, 2024.
IBGE, 2020. Fonte: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/22827-censo-demografico-2022.html
Jean-Benoît Bouron, Laurent Carroué et Hélène Mathian, « Représenter et découper le monde: dépasser la limite Nord-Sud pour penser les inégalités de richesse et le développement », Géoconfluences, décembre 2022. https://geoconfluences.ens-lyon.fr/informations-scientifiques/dossiersthematiques/inegalites/articles/decoupage-economique-mondial
Mabin, Alan. Sedimentando a teoria da cidade do Sul no tempo e no lugar. Revista Sociedade e Estado, v.30, n.2, 2015, pp.323-346.
Rajan, R. G. The gospel of deglobalization. What’s the cost of a fracture world economy. Foreign Affairs, 2023.
Silva, A. C. P.; Azevedo, D. A. (2020). Governança metropolitana no contexto latinoamericano: estratégias e potencialidades da pesquisa em geografia política. GEO UERJ, 1, 1-17.
U20, 2024. U20 2024 Co-chairs statement. Available at: https://uclg.org/resources/u20-2024-co-chairs-statement/
1 Professor do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília. E-mail: daniel.azevedo@unb.br
2 Professor do Departamento de Geografia Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail: ibanez.pablo@gmail.com
3https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2024/01/27/potencias-cortam-repasses-e-onu-teme-piora-da-crise-humanitaria-em-gaza.htm
4 Até 2018 era G8, mas houve a expulsão da Rússia após a incursão na Crimeia.
5 https://boletimluanova.org/category/g20-no-brasil/
Referência imagética: G20. Engagement Groups. s. d. Disponível em: <https://www.g20.org/en/g20-social/engagement-groups>. Acesso em: 12 jun. 2024.