Boletim n.14 – CIENTISTAS SOCIAIS E O CORONAVÍRUS
Este texto é parte de uma série de boletins sequenciais sobre o coronavírus e Ciências Sociais que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEG), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
Acompanhe e compartilhe!
Céli Regina Jardim Pinto*
Desde que Bolsonaro assumiu a Presidência da República, a educação, a ciência e a cultura têm sofrido um grande desarranjo. A coleção de ministros ineptos, caricatos e até claramente fascistas é prova concreta do desprezo com que estas áreas têm sido vistas pelo governo.
No dia 24 de março, o CNPq publicou suas diretrizes para os próximos 4 anos, das quais simplesmente desapareceram as áreas das ciências humanas, das letras e das artes, além das chamadas ciências básicas.
Tais atitudes provocam reflexões de três ordens: a primeira vai na direção da análise do atual pacto político que rege o país; a segunda nos leva a pensar na crise que este tipo de política representa para o desenvolvimento científico em geral, para as universidades, para os cursos de graduação e pós-graduação; a terceira nos faz refletir o que perde um país, a curto, médio e longo prazo, quando as áreas das humanidades são impedidas de se desenvolverem adequadamente.
Estes três temas são por demais complexos para serem desenvolvidos no espaço deste boletim, mas vou alinhavar alguns parágrafos pontuando questões.
Sobre o pacto político que rege o país e o desprezo pelas ciências em geral e pelas humanidades em particular, cabe ter claro que não se trata de um país governado por um exército de Brancaleone, por mais que o presidente pareça o comandante de um. Este governo representa interesses muito claros, definidos e defendidos por uma parcela significativa da população brasileira, composta de amplos setores do empresariado, da classe média alta, com nível de escolaridade superior, e de uma camada popular desassistida. Este conjunto heterogêneo de forças forma um caldo de cultura propício contra as áreas das ciências, e principalmente das humanidades, a partir de duas perspectivas opostas que levam ao mesmo resultado: o empresariado e a classe média enxergam o problema a partir de uma posição superior, desprezando a ciência e a cultura brasileira. Alguns, mais aquinhoados economicamente, mandam seus filhos estudarem no estrangeiro desde crianças, outros têm Miami como teto de seus objetos de desejo e pensam que somente um governo para poucos pode garantir que continuem sonhando. O outro grupo, formado pelos apoiadores das classes trabalhadoras, foi ensinado, secularmente, que universidade, arte, cultura e ciência são coisas que não lhes pertencem. Por conseguinte, sentem-se acolhidos quando o governo diz que não gastará dinheiro com os chamados baderneiros.
A segunda ordem de reflexão diz respeito ao desenvolvimento científico, à educação e às universidades, principalmente a universidade pública, mas não só ela. Nas últimas décadas, houve um coordenado esforço de expansão da educação de nível superior no país, o que pode ser aferido tanto quantitativamente, com significativo aumento de vagas com a criação de novas universidades e programas de financiamento em universidades privadas, como qualitativamente, com incentivo e avaliação da Capes e CNPq. O discurso governamental ignora completamente que os PPGs (Programas de Pós-Graduação) são rigorosamente avaliados, que os docentes das universidades públicas, ao contrário de um senso comum repetido ad nauseam, não progridem na carreira por tempo de serviço, mas por avaliação rigorosa de seus pares, que uma parte significativa dos docentes são também bolsistas de produtividade do CNPq avaliados também por este Conselho.
Nas universidades públicas acontece mais de 90% da pesquisa no Brasil. Só mantendo e expandindo a malha universitária do país poderemos garantir a pesquisa científica necessária para qualquer projeto de desenvolvimento. O desprezo pela academia e pela ciência, no atual governo, está associado a uma perspectiva de mercado do ultra-neoliberalismo que domina a chamada equipe econômica, onde o que não dá lucro não deve ser apoiado. A atual crise sanitária que atinge o mundo terá reflexos nefastos para a manutenção das vidas no Brasil como consequência desta postura.
A terceira ordem de reflexão trata especificamente da forma como as áreas das humanidades em geral e das Ciências Sociais em particular vêm sendo tratadas pelo atual governo. Há, antes de qualquer consideração, um oportunismo combinado com pura ignorância, no sentido estrito de desconhecimento. Sem um conjunto de ideias próprias capazes de dar suporte a um projeto educacional, ou mesmo a políticas públicas, o grupo no poder só consegue se colocar pela negação. Desta forma, desorganizam a educação, atribuindo todo o projeto anterior à pedagogia de Paulo Freire, ou toda reflexão teórica das ciências sociais a uma peculiar cultura marxista gramsciana. Estão errados duplamente. Em relação a Paulo Freire, ele infelizmente não é tão presente na educação brasileira como quer fazer crer o governo, e a tal cultura marxista gramsciana é uma grande bobagem, só cabível na cabeça de quem não tem a menor ideia do que é marxismo, nem conhece a obra do filósofo italiano. Trata-se de uma atitude oportunista que alimenta o anticomunismo paranoico das classes médias brasileiras.
Isto posto, a perseguição às ciências sociais, juntamente com a filosofia, a história, as letras e as artes em geral, revela o medo – justificado, diga-se de passagem – do pensamento crítico, da vontade de saber, de explorar o novo, de quebrar paradigmas que fazem parte do ofício de todas estas áreas. As humanidades colocaram para debate as novas formas de trabalho que desregulamentaram direitos e reorganizaram os interesses do capital. Também, junto com os movimentos sociais, deram voz aos até então invisíveis, indesejados pela sociedade conservadora, tornando visíveis as condições das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos presidiários, dos desempregados, dos informais. As humanidades, através da história, mostraram o silenciamento do racismo no Brasil por séculos e a agência da população escravizada no sentido de sua libertação. As ciências sociais estudaram a ditadura cívico-militar, que dominou o país por mais de 20 anos a partir de 1964, trataram da censura, provaram a existência da tortura, de desaparecidos, a existência de um crescimento econômico que aprofundou a desigualdade social.
Tudo isto foi feito com metodologia científica, com pesquisa empírica, com análise de dados, com horas de entrevistas, de busca em arquivos, de análise de documentos. Quando cientistas sociais analisam o atual momento pelo qual passa o Brasil e identificam uma grave ameaça às instituições democráticas, reconhecem uma crise nas políticas públicas e uma incapacidade de tomada de decisão frente à pandemia que se apresenta. Não é achismo, não é picuinha, é análise com base em conhecimento acumulado.
Tempos duros, muito difíceis para quem se dedica a produzir conhecimento, nos esperam. Mas somente resistindo, persistindo em analisar, em fazer crescer o pensamento crítico e a pesquisa rigorosa, estaremos deixando a desesperança de lado e encarando a realidade, sem falsos otimismos. Não podemos decidir nada, possivelmente nada mudaremos. Mas somos essenciais, pois, denunciaremos sempre, sem achismos, sem entusiasmos por uma ou outra moda passageira, firmes, a partir de nossas pesquisas rigorosamente embasadas em teorias e métodos científicos.
*Céli Regina Jardim Pinto é doutora em Ciência Política, Professora do PPG em História e Professora Emérita da UFRGS.
Referência imagética: Foto – Jefferson Coppola/retirada da VEJA.