Em 12 de abril de 2019, no auditório da Fundação Escola de Sociologia e Política (FESP), ocorreu o seminário “As eleições de 2018 e o futuro da democracia no Brasil”, organizado pelo Centro de Estudos da Cultura Contemporânea (CEDEC) em parceria com a FESP, com o programa de pós-graduação em Relações Internacionais San Thiago Dantas (Unicamp/Unesp/PUC-SP) e com o Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI – Unesp). Participaram do debate os professores Marcos Nobre (Unicamp/CEBRAP), André Singer (USP/CENEDIC) e Sebastião Velasco e Cruz (Unicamp/CEDEC) [1] .
O presidente do CEDEC, prof. Andrei Koerner (Unicamp/CEDEC), abriu o evento informando ao público de que se tratava do primeiro seminário de um ciclo de debates que o centro promoverá para discutir o cenário político aberto com a eleição de Jair Bolsonaro (PSL). O coordenador da mesa, prof. Sebastião Velasco e Cruz, ressaltou que essa iniciativa retoma uma tradição do CEDEC em promover debates e reflexões sobre a conjuntura política. Destacou também que o evento ocorria em um contexto marcado por dois tristes eventos: o assassinato do músico Evaldo, alvejado por 80 tiros disparados por componentes de uma blitz do Exército brasileiro no Rio de Janeiro, e a posse de Abraham Weitraub como ministro da Educação.
O prof. Marcos Nobre foi o primeiro a fazer sua exposição. Destacando que sua apresentação se voltava para a prática política, Nobre se propôs a entender como funciona o governo de Jair Bolsonaro. Sua tese é a de que o caos pode ser um método de governo. Para indicar como isso é possível, o autor retomou seu argumento de que Bolsonaro se vê como um líder de uma revolução conservadora e, nessa condição, deseja realizar um governo antiestablishment[2].
Nobre retomou, então, o processo de crescimento político de Bolsonaro desde 2016 até agosto de 2018. Em sua avaliação, o professor de Filosofia da Unicamp identificou que o capitão reformado do Exército cresceu na mesma faixa de renda/eleitoral que ele denomina de “baixas patentes”, que seriam os componentes do “núcleo duro do bolsonarismo”. Quem seriam eles? Seriam membros das igrejas, do Judiciário, do mercado financeiro e políticos até então dominados que se rebelaram contra os seus (ex)dominadores. Esse núcleo duro do bolsonarismo seria mobilizado de maneira permanente pelas redes organizadas por Bolsonaro, entre as quais se destacam aquelas construídas e mantidas pelo Whatsapp.
Outro fator que teria colaborado para a ascensão de Bolsonaro teria sido o próprio comportamento do sistema político. De acordo com a análise de Nobre, os componentes desse sistema teriam como que dado duas opções aos eleitores em 2018: manter o sistema político tal como se encontrava ou destruí-lo. A opção por Bolsonaro revela que o eleitorado escolheu a segunda alternativa, uma vez que, além disso, a sua candidatura se colocava como representante de três das instituições mais bem-avaliadas pela população brasileira: família, igreja(s) e Forças Armadas.
No plano do exercício governamental, Bolsonaro precisaria, para se manter no poder, que as instituições políticas continuassem em situação de colapso. Ressaltando os perigos de comparar o presidente brasileiro com Donald Trump – uma vez que essa estratégia conteria o risco de normalizá-lo-, Nobre ilustrou sua argumentação recorrendo ao livro Medo, do jornalista norte-americano Bob Woodward[3], que explicaria o modo como funciona o governo dirigido pelo presidente republicano. Segundo Nobre, o livro de Woodward revelaria que o governo Trump é marcado por uma divisão entre os componentes do Partido Republicano, que ofereceria ao presidente um governo funcional – base de apoio congressual e quadros políticos para a administração pública – e a rede mobilizada permanentemente por Steve Bannon, responsável por manter um apoio decisivo ao presidente. Esses dois polos entrariam em permanente conflito, responsável também pela manutenção do governo. No caso brasileiro, ocorreria algo análogo. De um lado, teríamos os representantes das Forças Armadas no governo, desejosos de fazer o governo “funcionar”, e, de outro, as redes mobilizadas permanentemente. Esses dois polos se desafiariam constantemente. Nobre observou também que, diferentemente do Partido Republicano, os representantes das Forças Armadas no governo não constituem um partido, o que afetaria a sua capacidade de oferecer as funcionalidades requeridas pela administração pública.
A revolução conservadora identificada por Nobre terá seu destino decidido a partir dos resultados das eleições municipais de 2020 e nacionais de 2022. Nesse plano, o autor abordou o que entende ser a provável estratégia eleitoral do presidente. Segundo ele, como Trump, Bolsonaro não visaria governar para todos os brasileiros, mas sim para cerca de 40% da população; e, nos momentos-chave, apelaria para o medo ou qualquer outra estratégia capaz de conferir os votos faltantes para a vitória eleitoral. Diante desse quadro, Nobre argumentou que os partidos de oposição – em especial, o Partido dos Trabalhadores (PT) – e as instituições ligadas a eles seriam bloqueios para a reorganização de uma oposição efetiva, capaz de canalizar a mobilização social. Nesse caso, seriam necessárias novas bases e instituições capazes de fazê-lo.
O prof. André Singer iniciou sua exposição revelando as duas teses que pretendia defender: a) a de que as eleições de 2018 não foram marcadas pelo surgimento de um novo alinhamento eleitoral; b) que a democracia brasileira precisa ser pensada em chave dupla, na qual se alie tanto o problema propriamente formal da democracia como também os problemas sociais derivados do neoliberalismo.
Segundo Singer, apesar da surpresa geral com a vitória de Bolsonaro na eleição presidencial de 2018, o eleitorado brasileiro não se converteu para a extrema-direita. O problema seria mais específico. De acordo com o analista, o partido mais punido pelo eleitorado não foi, como se costuma pensar, o PT, mas sim o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), uma peça-chave do sistema político brasileiro. Para ilustrar sua argumentação, Singer recordou a percentagem de votos obtidos pelos dois partidos nos primeiros turnos das eleições presidenciais de 2014 e 2018: enquanto o PSDB obteve 34% em 2014 e apenas 5% em 2018, o PT obteve 42% em 2014 e 29% na eleição seguinte. Como, desde 1994, os primeiros lugares das eleições presidenciais brasileiras foram conquistados por esses partidos, e era de se esperar que o PT perdesse uma eleição depois de conquistar quatro vitórias consecutivas – como quase perdeu em 2014 -, o esperável seria que o PT perdesse para o PSDB. A surpresa foi que o eleitorado do PSDB escolheu um outsider. O fenômeno, aliás, não seria novo, como indicariam as eleições presidenciais vencidas por Jânio Quadros e Fernando Collor de Mello.
A lembrança dos casos dos dois ex-presidentes não foi fortuita. Segundo Singer, desde 2013, abriu-se uma conjuntura política radicalizada que pode ter sido inflamada pelo televisionamento do julgamento da Ação Penal 470, conhecida como “mensalão”. A questão da corrupção seria um tema especialmente caro à classe média brasileira e teria tido forte impacto nas eleições de Quadros, que elaborou sua campanha presidencial com o símbolo de uma vassoura capaz de “varrer a corrupção”, e de Collor de Mello, que dizia pretender caçar os “marajás”. Por que, então, o PSDB teria sido punido? Segundo Singer, pelo vínculo que estabeleceu com o governo de Michel Temer (PMDB), constantemente assolado por denúncias de corrupção. Em síntese: segundo Singer, uma parte do sistema político teria ruído, mas outra parte, aquela representada pelo PT, teria permanecido, embora derrotada.
No que se refere ao PT, Singer destacou que, a partir de 2011, abriu-se um novo ciclo na conjuntura internacional cuja marca distintiva é a adoção de políticas de austeridade fiscal – às quais Dilma Rousseff (PT) teria tentado resistir até 2014. Ao perceber que o segundo governo de Rousseff abriu mão das bandeiras defendidas em sua campanha de reeleição, uma parcela dos eleitores lulistas teriam passado a rechaçar uma nova indicação de Lula, o que teria custado os 13% de votos faltantes para a vitória de Fernando Haddad (PT) em 2018.
Por outro lado, a popularidade de Jair Bolsonaro tenderá a cair, pois as políticas neoliberais de seu governo não gerarão renda, nem emprego. Que fazer? Nessa altura, Singer destacou, em primeiro lugar, a situação da democracia brasileira. Embora o calendário eleitoral brasileiro tenha sido mantido, restam dúvidas sobre o que aconteceria caso o “campo popular”, na designação de Singer, vencesse os pleitos – em especial, o presidencial – de 2018. Outro sinal do debilitamento da democracia brasileira seria a impossibilidade de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o maior representante do campo popular, em disputar as eleições de 2018 e, possivelmente, as próximas.
Diante dessas condições, seria preciso formar uma frente o mais ampla possível para manter a democracia brasileira e restaurá-la naqueles pontos em que foi danificada. Ademais, essa frente teria o papel de construir uma resistência ao neoliberalismo, representado pela combinação entre o teto de gastos público, a reforma trabalhista e a reforma da previdência. Estaríamos diante de um “contrarreformismo forte” levado adiante por uma ofensiva burguesa que não estaria mais a fim de conciliar, tal como propunha o lulismo.
Por sua vez, Sebastião Velasco e Cruz retomou uma série de notícias veiculadas durante 2018 para indicar que as eleições ocorridas no final daquele ano foram marcadas por uma certeza: a de que o favorito, Lula, não poderia concorrer e nem mesmo participar externamente delas, como teria indicado a proibição de que concedesse uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo por determinação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux, posteriormente ratificada pelo presidente do tribunal Dias Toffoli. Segundo Velasco e Cruz, as indicações feitas por Jair Bolsonaro e pelo general Eduardo Villas Boas – membro atual do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República – sugeririam que Haddad não poderia vencer as eleições.
Ao comentar as exposições de seus colegas, Velasco e Cruz indicou que talvez Nobre pudesse incorporar em sua análise os papéis desempenhados pelos ministros Paulo Guedes (Economia) e Sérgio Moro (Justiça) como polos do governo e não como “senhores feudais”, tal como sugerida pela sua análise. No que se refere à exposição de Singer, destacou que a política externa brasileira indicaria também um terceiro problema: a questão nacional. O alinhamento aos Estados Unidos representado pelo governo Bolsonaro seria inédito na história política brasileira. Levando-se em conta também que integrantes da Operação Lava-Jato teriam fortes vínculos com organizações ligadas ao Departamento de Justiça dos EUA, seria o caso de imaginar que talvez estivéssemos diante de um processo de internacionalizações das estruturas estatais – o que representaria uma “transformação epocal”.
[1] Relato elaborado por Leonardo Octavio Belinelli de Brito, doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.
[2] Esse argumento foi apresentado em texto de dezembro de 2018, na revista piauí. https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-revolta-conservadora/
[3] O livro tem tradução para o português. WOODWARD, Bob. Medo: Trump na Casa Branca. São Paulo: Todavia, 2018.