Moisés dos Santos Viana[1]
11 de junho de 2024
Ao tentarmos compreender as interfaces das tecnologias da informação e da comunicação, devemos levar em conta alguns aspectos fundamentais da tecnologia como elemento estruturante do humano e que perpassa uma dimensão antropológica, desdobrando-se em outras diversas interfaces, dentre elas a economia política e a ideologia de poder.
Nesta perspectiva, podemos destacar três hipóteses possíveis para pensarmos essas interfaces:
- pluri-ontologia das tecnologias: as concepções e agências da tecnologia, sua ação e relações derivam de uma ontologia específica;
- dimensão tecnológica das sociedades ocidentalizadas e colonizadas: concebem a tecnologia a partir das relações de poder estabelecidas por sua concepção de mundo;
- atualidade das tecnologias da comunicação e da informação: em seu aspecto furtivo e ubíquo, elas ampliaram em demasia os aspectos de poder e as relações econômicas-políticas-culturais.
Esta reflexão compreende a terceira hipótese que vem sendo refletida principalmente pelo filósofo coreano, radicado na Alemanha, Byung-Chul Han, que tem se esforçado em apresentar uma crítica à produção tecnológica e sua relação com o poder. Claro que não há uma novidade no aspecto temático de suas reflexões, e podemos notar isso na abordagem do próprio autor, que se destaca pela pluralidade de ideias e leituras de pensadores já consagrados pelos estudos da filosofia da técnica, filosofia política e filosofia em geral: Hegel, Nietzsche, Marx, Heidegger, Walter Benjamin, Deleuze, Barthes, Flusser, Foucault e Agamben.
Han escreve para o grande público. Suas reflexões são cirúrgicas e às vezes superficiais, em um estilo acessível sobre as questões do cotidiano e as interfaces da tecnologia. Mas o que é fácil na leitura do filósofo emerge de uma teia e emaranhados de ideais que, por vezes, podem ser esquecidas ou mesmo indigestas para aqueles não iniciados nos textos herméticos do pensamento ocidental. Ele é um comentador de filosofias densas que, em sua época, não contemplaram a nossa contemporaneidade, mas que ressoam atuais e pertinentes para as mentes mais aguçadas. Gosto da escrita de Han, mesmo que essa escrita seja contextual ao mundo europeu, ocidentalizado e com pinceladas do oriente em forma de sabedoria milenar. Vai ter quem não o tolere.
As condições de produção e as reflexões filosóficas se perdem nos labirintos das bibliotecas, para lembrar a obra de Jorge Luis Borges “A Biblioteca de Babel” e seus textos ilustrativos. Contudo, vale considerar que a intenção de Han não é exatamente propor algo novo, já dito e datado, mas sim reorganizar nossa perspectiva diante de um mal-estar contemporâneo em torno das tecnologias ubíquas e a estratégia de como elas se ramificam em nosso cotidiano, afetando as formas de vida, propondo um paraíso, mas nos jogando em um inferno.
O que vai caracterizar as relações atuais é o domínio de um poder invisível, economicamente sustentado pela produção de capital, exploração do trabalho e vigilância total. Para Han, esse aspecto universalizante do capitalismo de mercado se sucede não mais, a partir de instituições visivelmente presentes como tecnologias de poder e domínio, em seu caráter soft, mas principalmente por meio de tecnologias que alteram a própria perspectiva das relações do trabalho. O mundo do trabalho e a produção de bens e serviços altera a visão de si sobre o capitalismo neoliberal, rentista e internacionalmente deslocado. O trabalhador tem que trabalhar e muito. No entanto, a vigília de um panóptico total dá lugar à autovigilância, surgem os panópticos difusos e eficazes que organizam a agenda, prometem enriquecimento e manipulam as relações sociais.
Neste cenário, o indivíduo médio, em sua obscuridade social, cobra de si mesmo um desempenho econômico específico, pois não se sente mais um trabalhador, agora ele se vê como empreendedor de si. Mesmo em um emprego precarizado, ele se cobra para produzir mais, pois a promessa de sucesso lhe é garantida pelo consumo de bens e pelo falso prestígio nas redes sociais e plataformas de conteúdo. O indivíduo médio se transforma em algoz de seu desempenho e sofre.
Podemos ilustrar tal cenário a partir de três modelos de trabalho: os entregadores das plataformas, os motoristas de aplicativos e os influenciadores digitais. Há ainda grupos profissionais que se reorganizam e são afetados por essa nova lógica, tais como os campos da medicina e educação. Salas de aulas presenciais são trocadas por plataformas de ensino-aprendizagem em que conteúdos duvidosos são organizados e vendidos como produtos educacionais preparando as novas gerações para o que virá.
O pano de fundo desse processo trabalhista é uma megaestrutura financeira de conglomerados, empresas de tecnologia e bancos. O capitalismo se reorganiza e altera o mundo do trabalho, propondo para seu universo novas maneiras de dominar. Não há um deslocamento das forças produtivas, mas uma maneira inteligente de reorganizar o domínio sobre elas. Se outrora o poder era sobre o controle dos corpos, hoje se faz pelo psicopoder, ou seja, uma série de lógicas e técnicas que faz com que a servidão voluntária se pareça verdadeiramente prazerosa, porosa e sutil.
O lema dos corpos livres, ideia semeada pelo liberalismo, frutificou e fertilizou as principais empresas de tecnologia, as Big Techs. Financiadas pelos governos, essas empresas atuam hoje em todas as áreas da sociedade, desde a tecnologia de guerra até os aplicativos de reconhecimento facial para sugerir cortes de cabelo. A questão é que nada se desperdiça nesse processo. Tudo gera dados, informações brutas que podem ser usadas novamente pelos governos para propor ações e políticas de vigilância, bem como são usados pelas empresas no processo de Players lucrativos. Há ainda as condições mistas em que tanto o governo quanto o mercado impulsionam a tecnologia da informação e comunicação como vetor para a expansão do neoliberalismo.
Essa parceria compreende o financiamento público de startups como a própria implementação da lógica neoliberal na produção de CT&I (Ciência, Tecnologia e Inovação), em que a perspectiva da competitividade e gamificação se torna o único modelo para as relações do saber, determinando os saberes-fazeres dos processos de produção e gestão do conhecimento. Essas lógicas se aliam aos processos em prol da iniciativa privada em detrimento do Estado de bem-estar social que tem o conhecimento como direito e não como produto do mercado de bens de consumo.
O produtivismo alia-se à perspectiva da datificação, não apenas como pressuposto metodológico, mas como modelo epistêmico, pois as informações se tornam a grande panaceia do saber atual, conduzindo a uma preferência para o tipo de pesquisa a ser financiada. Uma espécie de utilitarismo renovado em forma de promessa de abertura de mercado de consumo e serviços, o que leva a uma mentalidade obscurantista que se esconde sob a perspectiva de um novo iluminismo.
Fonte: Viana, 2024
Nossa perspectiva é que a psicopolítica se instala paulatinamente à medida em que a comunicação deixa de ter um caráter antropológico-social e passa a ser uma mediação de informação gerida por algoritmos, implementada por artefatos e plataformas como tecnologias e técnicas de socialidades, nas quais o pano de fundo é a velha lógica radical neoliberal. E, antes de tudo, é uma lógica perversa em que as relações de poder e econômicas são implementadas para manutenção de um velho poder. Em nada se mudou nas estruturas econômicas, e mesmo que vislumbremos alguma transformação social, no mais das vezes temos retrocessos humanos e catástrofes naturais em uma dialética de incertezas, de falsas esperanças, distopias e instabilidades. Como o mito de Janus, que olha para frente deslumbrado, mas se perde no passado, não o larga e nunca o esquece: “Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”, como cantava Belchior.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências
Viana, M. dos S. (2020). Após Prometeu: Quando a máquina expele o maquinista. Simbiótica. Revista Eletrônica, 7(2, jan.-jun.), 198–219. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/simbiotica/article/view/32600/21550 . Acesso em: 20 de março de 2024.
Viana, M. dos S. (2024). A psicopolítica em Byung-Chul Han: introdução para a crítica das novas tecnologias-inovações de poder. Interseções: Revista De Estudos Interdisciplinares, 25(2). Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/intersecoes/article/view/75017/49499 . Acesso em: 20 de março de 2024.
[1] Doutor em Difusão do Conhecimento pelo Programa de Pós-Graduação em Difusão do Conhecimento (PPGDC) – Universidade Federal da Bahia (UFBA). Docente na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) – DEDC – Conceição do Coité-BA – Comunicação Social – Rádio e TV. Coordenador do Núcleo de Ensino e Aprendizagens Digitais do Centro Interdepartamental de Pesquisa em Educação e Humanidades (CIPEHUM). Coordenador Setorial de Estágio Supervisionado em Comunicação Rádio e TV. Atua nas áreas de Comunicação Social, Inovação, Experiências Comunicacionais, Estágio Supervisionado, Modelagem e Difusão do Conhecimento. Membro do grupo de Pesquisa: Agricultura Comparada e Agricultura Familiar (UFBA). E-MAIL: mviana@uneb.br
Fonte imagética: Wikimedia Commons. Estátua de Janus em Wien, Áustria, em 2005. Fotografia de Lienyuan Lee. Disponível em: <https://web.archive.org/web/20161102210716/http://www.panoramio.com/photo/6653848 >. Acesso em: 3 abril 2024.