Daniela Costanzo[1]
Rafael Marino[2]
“Maître de philosophie: N’avez-vous point quelques principes, quelques commencements des sciences?Monsieur Jourdain: Oh! oui, je sais lire et écrire” (MOLIÈRE. Le Bourgeois gentilhomme, 2010, p. 40).
A obra que resultou da tese de livre-docência do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, publicada em livro em 1964 com o título Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico no Brasil, continua despertando debates, leituras e interpretações. À época da publicação isso já aconteceu, visto que o livro oferecia uma nova leitura sobre as possibilidades de uma aliança entre forças progressistas e a burguesia industrial – saída política até então trazida à baila, principalmente, pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) – e, ainda, fornecia o que poderia ser lido como uma interpretação ao golpe militar de 1964. Recentemente, a obra de FHC foi retomada por André Singer (2015; 2018) para explicar a derrocada do que chamou de ensaio desenvolvimentista de Dilma Rousseff. Tal utilização da tese de Cardoso despertou novos debates sobre o empresário industrial no Brasil.
No intervalo entre seu lançamento e sua retomada recente, o livro de FHC permaneceu como uma referência incontornável para os estudos sobre a atuação e o comportamento político do empresariado no Brasil. Diversas teses importantes foram escritas, posteriormente, abordando o tema e oferecendo uma leitura do que seria a visão de Cardoso sobre o empresário industrial brasileiro. Algumas delas foram escritas por Eli Diniz (1978), Wagner Mancuso (2007), Álvaro Bianchi (2010) e Pedro Campos (2014). No artigo que publicamos na Revista Lua Nova (número 115), mapeamos o debate entre esses autores e o livro de FHC no que diz respeito a dois aspectos principais: (i) a força ou a fraqueza política do empresário industrial como classe social e (ii) a comparação que Cardoso faria com a burguesia dos países de desenvolvimento clássico em seu trabalho.
Sobre o primeiro aspecto – a potência ou tibieza do empresário industrial como uma classe política que disputa a hegemonia na sociedade e no Estado – é notável como os leitores da obra de Cardoso enxergaram em seus estudos sobre o empresariado industrial uma visão essencialista desta fração de classe, cujo resultado analítico seria a de que o sociólogo uspiano a veria como constitutivamente fraca e politicamente inapta. Deste modo, os autores acima citados, de maneira quase uníssona, acusaram a interpretação de Cardoso como equivocada, dado que não apreenderia as movimentações políticas efetivas do empresariado brasileiro, que seriam, em suas visões, bastante ativas e influentes.
Essa crítica, ao nosso ver, anda de mãos dadas com o segundo aspecto que abriu polêmicas na obra de FHC, isto é, o suposto decalque feito por este do modelo das burguesias de países do centro capitalista para a análise do empresário industrial pátrio. De acordo com seus críticos, Cardoso não conseguiria ver a forte movimentação política do empresariado industrial brasileiro visto que o compararia, de forma negativa, com o que fora feito pelas burguesias de países desenvolvidos. Nessa equação, o empresariado nacional não só sempre estaria aquém dos modelos de ultramar, como também não teria clareza de seus próprios interesses.
Em nosso artigo, buscamos evidenciar que esses dois aspectos não fazem jus ao que é efetivamente discutido em suas obras a respeito do empresariado industrial. Fizemos isso do seguinte modo: num primeiro momento, exploramos uma seleção dos principais textos de Cardoso a respeito do comportamento político do empresário industrial brasileiro; em segundo lugar, analisamos elementos de seu método os quais evidenciam uma análise concreta e não ideal de seus objetos de pesquisa.
Em suas análises sobre o empresariado industrial brasileiro, Cardoso busca compreender, em primeiro lugar, quais seriam os determinantes estruturais da mentalidade dessa classe então recentemente constituída no país. Por ser uma classe recente, heterogênea, que não sofria pressão de grupos organizados de trabalhadores e que obtém seus lucros em uma situação de concorrência imperfeita, na qual os preços são formados a partir da referência dos produtos importados – não sendo necessária, portanto, a inovação para obtenção do lucro -, essa fração de classe teria interesses contraditórios. Isso, todavia, não indica uma fraqueza congênita de sua parte, como indicado pela bibliografia crítica ao sociólogo.
Essa situação contraditória condicionaria um comportamento de classe pendular (SINGER, 2018) em que o empresariado industrial, buscando levar a cabo seus interesses para o desenvolvimento, se veria na contingência, para construção de sua hegemonia efetiva, de se aliar a grupos populares e urbanos contra grupos tradicionalmente dominantes no Brasil. Isso, porém, ameaçaria a estabilidade decorrente da concorrência imperfeita e, portanto, de seus lucros no presente. Desta forma, politicamente, os empresários industriais abririam mão de construir uma hegemonia política e social no futuro para não perderem os rendimentos do agora. Tal movimento do raciocínio de Cardoso não é uma novidade dentro do marxismo. Em situação constitutivamente diversa, o próprio Marx já havia exposto um momento histórico no qual as frações da burguesia haviam abdicado de suas condições políticas de direção:
Assim sendo, ao tachar de heresia “socialista” aquilo que antes enaltecera como “liberal”, a burguesia confessa que o seu próprio interesse demanda que ela seja afastada do perigo de governar a si própria; que, para estabelecer a tranquilidade no país, sobretudo o seu Parlamento de burgueses devia ser silenciado; que, para preservar o seu poder social intacto, o seu poder político devia ser desmantelado; que os burgueses privados só poderiam continuar a explorar as demais classes e desfrutar sem percalços a propriedade, a família, a religião e a ordem se a sua classe fosse condenada à mesma nulidade política que todas as demais classes; que, para salvar a sua bolsa, a coroa deveria ser arrancada da sua cabeça e a espada destinada a protegê-la deveria ser pendurada sobre a sua própria cabeça como espada de Dâmocles (MARX, 2011a, p. 81-82).
Apesar da distância histórica e material entre a análise de FHC e o texto seminal de Marx, não deixa de chamar a atenção o ar de família entre as farsas golpistas de Bonaparte e dos militares: apesar de atuarem em prol dos regressivos “bons costumes”, deixavam sem amarras as “orgias” do capital. Isso tudo com anuência e participação direta das frações de classe da burguesia, que de fracas nunca tiveram nada.
O uso que Cardoso faz das obras escritas por europeus, especialmente por Marx e pelos marxistas, não é um uso esquemático ou uma simples cópia dessas teorias. Como buscamos argumentar no artigo, é possível ver no Empresário Industrial e nas demais obras do autor um esforço em fazer uma leitura imanente da realidade brasileira, que demonstraria um uso criativo do marxismo, reconhecido no próprio Seminário do Capital (SCHWARZ, 2014) – do qual Cardoso fizera parte. Tal uso reforça que o sociólogo não estava empenhado em simplesmente aplicar fórmulas europeias prontas para explicar o Brasil, mas sim em desenvolver um arcabouço novo e criativo, que entendesse a realidade brasileira como diversa, mas não alheia ao resto do mundo e às reviravoltas do capital – cuja dialética entre abstração geral e concreção em realidades particulares é atestada desde as obras de Marx.
Não daria para pensar a obra de FHC e seu marxismo atualmente sem lembrar dos estereótipos criados nas Ciências Sociais brasileiras em torno dessa linhagem de pensamento: estruturalista, determinista, metodologicamente negligente etc. Como pudemos discutir neste texto, e no artigo publicado na Lua Nova, o marxismo urdido pelo Seminário do Capital, e especialmente o de FHC, mostrou-se preocupado com a realidade material e as disputas políticas reais, levadas a cabo pelos agentes políticos existentes e que podem ser atestadas empiricamente pela pesquisa sociológica. Não obstante, a empiria, para a dialética – à diferença das teorias tradicionais -, não é espelho do real, mas momento fenomênico cuja aparência será decomposta e rearticulada, constituindo uma ou algumas das determinações que em sua síntese constituem o concreto (MARX, 2011b, p. 54), que deve ser resultado e não ponto de partida nas Ciências Sociais.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências Bibliográficas
BIANCHI, Alvaro. Um ministério dos industriais: a federação das indústrias do estado de São Paulo na crise das décadas de 1980 e 1990. Campinas: Unicamp, 2010.
CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar. Rio de Janeiro: Eduff, 2014.
CARDOSO, Fernando Henrique. Empresário Industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964.
DINIZ, Eli. Empresário, estado e capitalismo no Brasil: 1930-1945. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
MANCUSO, Wagner Pralon. O lobby da indústria no Congresso Nacional: empresariado e política no Brasil contemporâneo. São Paulo: Humanitas/Edusp, 2007.
MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011a.
MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011b.
MOLIÈRE. Le Bourgeois gentilhomme. Paris: Pocket, 2010.
SCHWARZ, Roberto. Um seminário de Marx. In: SCHWARZ, Roberto. Sequências Brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
SINGER, André. Cutucando Onças com Varas Curtas: o ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014).Novos Estudos, n. 102, pp .39-67, 2015. DOI: 10.25091/S0101-3300201500020004.
SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
[1] Doutoranda em Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). São Paulo, SP, Brasil. E-mail: danicosper@gmail.com. Orcid: 0000-0001-5369-6070.
[2] Doutorando em Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP, Brasil. E-mail: rafael.marino50@gmail.com. Orcid: 0000-0002-2659-6434.
Fonte Imagética: Fundação FHC. Fernando Henrique em seminário (década de 1970). Disponível em: <https://fundacaofhc.org.br/arquivo-fernando-henrique-cardoso>. Acesso em: 8 ago. 2022.