Otávio Z. Catelano[1]
Quanto a isso, podemos concordar: as novas tecnologias de comunicação estão transformando a democracia representativa. No entanto, precisamos discutir de forma mais aprofundada sobre quais são os mecanismos dessa transformação. Não basta dizer que “a internet facilitou o acesso a notícias falsas” e, por consequência, essas notícias estariam influenciando as pessoas a tomarem decisões políticas que não tomariam. Na verdade, as pesquisas mais recentes têm apontado a necessidade de considerarmos que as pessoas somente acreditam em conteúdos falsos quando já têm uma predisposição política anterior. Logo, não são influenciadas a alterar uma decisão, apenas a reforçam. Como?
Antes, precisamos registrar alguns pontos. As transformações das tecnologias de comunicação costumam ser acompanhadas de mudanças políticas, provavelmente pelo simples fato de possibilitarem a ampliação dos públicos-alvo das mensagens políticas. Foi assim com os adventos da mídia impressa, do rádio e da televisão (Manin, 1995). Por outro lado, a internet e, em especial, as redes sociais, têm duas peculiaridades em relação às mudanças anteriores.
A primeira e mais importante é o fato de serem marcadas pela velocidade (Schwab, 2016). Se antes duas ou mais pessoas demoravam semanas, meses ou anos para se comunicarem à distância, hoje, as novas Tecnologias de Informação de Comunicação (TICs) permitem realizações de chamadas de vídeo síncronas. A segunda peculiaridade deriva justamente da interação, pois as redes sociais tornaram possível a comunicação em tempo real entre o emissor e o receptor de qualquer mensagem política, diferente do que permitiam os jornais, o rádio e a TV. Esses entendimentos são básicos, mas importantes para demarcar que as transformações causadas pelas novas TICs são diferentes das anteriores. Isso porque não se referem apenas à atualização das ferramentas comunicacionais (de cartas para chamadas de vídeo), mas também porque dizem respeito a novas formas de organização da sociedade (Susskind, 2020).
Para ilustrar, imagine uma liderança política que esteve em uma conferência de uma central sindical brasileira durante a década de 1980. Lá, ao fazer uma intervenção e expor um ponto de vista, essa liderança teve a certeza de que estava se comunicando especificamente com sindicalistas ou com pessoas que simpatizavam com a categoria. Sua fala poderia ser reportada no rádio, na mídia impressa ou na televisiva, mas esses veículos de comunicação eram poucos e tinham linhas políticas definidas – ou seja, havia clareza da existência de um filtro na retransmissão da mensagem. Diferentemente, uma liderança que faça hoje uma fala em uma conferência sindical pode estar sendo filmada, seu discurso pode estar sendo transmitido e, no mesmo momento da exposição, o conteúdo político da mensagem pode já ter chegado de forma direta a pessoas de categorias sociais não pertencentes ao contexto original do evento.
Nesse contexto contemporâneo, qualquer pessoa pode “falar”. Por “falar” podemos entender um sentido mais amplo, que é o de interagir em público com mensagens políticas, seja concordando, seja discordando. Anteriormente, para fazê-lo de forma efetiva seria necessário se envolver em um grupo de interesse, a fim de potencializar uma pauta. Entretanto, hoje as redes sociais criaram a possibilidade – ainda que em algumas vezes ilusória, pois nem sempre é efetiva – de as pessoas se envolverem com a política de forma extremamente individual, não sendo necessário interagir com outros indivíduos para amplificar ideias em comum.
Interações em redes sociais permitem que a relação de representação se expresse, por parte do representado, por meio de curtidas e outras formas individualizadas. Isso exige dos partidos políticos transformações para se adaptarem ao contexto cada vez mais fluido da política eleitoral (Scarrow, 2015), prejudicando o papel fundamental que exerceram ao longo do século XX de integrar as massas à política. Antes, essa era sua premissa exclusiva; atualmente, para cumprirem essa função os partidos “concorrem” com tantas outras estruturas virtuais que submetem os indivíduos à engenharia do consentimento (Bernays, 2014; Tüfekçi, 2014), isto é, a dinâmica das tecnologias comunicacionais capaz de persuadir um alto número de pessoas a construírem consensos.
A construção de consensos pode, sim, ter sido facilitada pela era da política da pós-verdade. Este termo é utilizado para denominar a fase atual das relações políticas, na qual as pessoas tendem mais a aceitar os argumentos compatíveis com suas próprias emoções e crenças do que a aceitar os argumentos baseados em fatos. Tal estrutura é propícia à formação de câmaras de eco (Jamieson; Capella, 2008; Sunstein, 2017), espaços nos quais as mensagens políticas são amplificadas e reverberadas para grupos circunscritos de pessoas, com a capacidade de insular esses grupos de maneira que eles não tenham acesso a mensagens com viés contrário ao da primeira.
As câmaras de eco são diferentes do efeito de bolha dos filtros (Pariser, 2012), ocasionados especificamente pelos algoritmos das redes sociais. Os algoritmos fazem com que as pessoas tenham acesso a um universo de informações segmentado e personalizado, impedindo que pessoas diferentes tenham acesso a conjuntos de informações semelhantes. Sob o efeito de bolha dos filtros, as pessoas necessariamente são passivas diante dos algoritmos, que exercem um papel ativo. Quanto às câmaras de eco, as pessoas até podem ser passivas diante do conjunto de informações recebido, mas também podem buscar ativamente por informações que reforçam suas opiniões (Arguedas et al, 2022). E este é o ponto principal da argumentação.
Diante disso, no interior das câmaras de eco, as informações equivocadas reforçam opiniões e auxiliam na efetivação de decisões políticas, como o voto. Isso se fortifica pelo fato de indivíduos assumirem que as pessoas compartilham conteúdos que acreditam ser verdadeiros e potencialmente úteis para a tomada de decisão. Assim, tornam-se menos propensos a perceber informações equivocadas quando estas são culturalmente fluentes (Oyserman; Dawson, 2021), isto é, quando se baseiam em elementos culturais e identitários que fazem parte de sua socialização política. Portanto, os indivíduos tendem a acreditar nas mensagens políticas compartilhadas por pessoas que fazem parte dos seus grupos primários, como a família.
Com isso, as TICs constituem um ambiente no qual os domínios gerais da vida – culto às celebridades, parentesco, religião, entretenimento, esportes, linguagem, identidade e sociabilidade – se entrelaçam com a esfera político-eleitoral (Cesarino, 2020). Ainda, há de se considerar que notícias falsas tendem a prosperar entre pessoas que possuem relações positivas ou negativas com partidos políticos, potencialmente ampliando o engajamento político de grupos formados por indivíduos com opiniões semelhantes (Batista, 2022). Isso pode explicar, inclusive, como aplicativos de mensagens instantâneas, como o WhatsApp, têm construído consentimento mesmo sem a operação de algoritmos.
Esse é o grande desafio para compreender como as novas TICs têm transformado a democracia representativa: para além dos algoritmos, os indivíduos utilizam as tecnologias comunicacionais de forma a construir câmaras de eco? Algumas pesquisas de opinião têm apontado que sim. Uma pesquisa realizada em dezembro de 2019 pelo Instituto Datafolha[2] para avaliação do primeiro ano de governo Bolsonaro identificou que, entre as pessoas entrevistadas, 50,6% “deixou de comentar ou compartilhar alguma coisa sobre política em grupos de WhatsApp para evitar discussões com amigos ou familiares” e 26,9% “saiu de algum grupo de WhatsApp para evitar discussões políticas com amigos ou familiares”. Além disso, outras atitudes listadas que são compatíveis com a construção de câmaras de eco tiveram adesão de 16,3% a 19,3% das pessoas respondentes.
Esse tipo de reforço da coesão intragrupos nos traz uma grande questão: por conta das TICs, a polarização veio para ficar? A princípio, pode-se suspeitar que sim. O fato das TICs entrelaçarem os domínios gerais da vida com a esfera político-eleitoral faz com que a adesão a candidaturas possa ser muito mais do que uma declaração de voto, passando a ser uma relação entre candidatos e eleitores calcadas em elementos muito estáveis, como os ideais de nação, família e religião. Associar um candidato a esses ideais pode construir uma relação positiva muito estável e radical, bem como associar a imagem de um candidato ou partido em oposição a esses ideais pode construir relações negativas igualmente estáveis e radicais.
Dessa forma, há menos espaço para a discordância saudável, pois a radicalização da coesão intragrupo e a radicalização da hostilidade com exogrupos colocam “muito mais em jogo” do que uma simples diferença de opiniões. A partir disso, está posta uma grave consequência: a normalização do radicalismo. Afinal, faz sentido um indivíduo ser radicalmente a favor de candidatos associados aos elementos que são os pilares da sua visão de mundo, assim como o oposto é verdadeiro.
Sendo assim, é necessário refletirmos teoricamente não apenas sobre o efeito que algoritmos operam sobre resultados eleitorais em geral, mas também sobre de que forma os indivíduos estão construindo o próprio uso das TICs contemporâneas. A velocidade, a comunicação instantânea e as novas formas de interação podem estar transformando a democracia representativa a partir de mecanismos sobre os quais não estamos nos debruçando hoje.
A corrida eleitoral de 2022 é uma oportunidade para testemunharmos isso de forma mais crítica, afinal, desde 2018, sabemos que eleições e redes sociais têm algum tipo de relação. A partir da reflexão sobre qual relação é essa, outras tantas perguntas surgem. Quem e quantos são os indivíduos que recorrem a fontes diversificadas de informações que não normalizam visões disruptivas sobre a sociedade? Eles de fato são mais abertos a mudarem suas opiniões ou, diante das opções colocadas no cenário atual, são apenas mais indecisos? Em quem esses indivíduos deverão votar e quais serão os argumentos que vão basear a escolha?
Teremos em mãos os elementos necessários para observar os comportamentos individuais e coletivos que estão mudando. Aparentemente, essas mudanças estão “causando as” ou “sendo causadas pelas” transformações da democracia representativa. E, para a retomada da consolidação democrática no nosso país e no mundo, saber diagnosticar qual das duas opções é a correta faz toda a diferença.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências Bibliográficas
ARGUEDAS, Amy Ross et al, Echo chambers, filter bubbles, and polarisation: a literature review, University of Oxford: Reuters Institute for the Study of Journalism, 2022.
BATISTA, Frederico et al, Fake News, Fact Checking, and Partisanship: The Resilience of Rumors in the 2018 Brazilian Elections, The Journal of Politics, 2022.
BERNAYS, Edward L., The Engineering of Consent, The ANNALS of the American Academy of Political and Social Science, v. 250, n. 1, p. 113–120, 1947; TÜFEKÇI, Zeynep, Engineering the public: Big data, surveillance and computational politics, First Monday, v. 19, n. 7, 2014.
CESARINO, Letícia, Como vencer uma eleição sem sair de casa: A ascensão do populismo digital no Brasil, Internet & Sociedade, v. 1, n. 1, p. 1–120, 2020.
JAMIESON, Kathleen Hall; CAPPELLA, Joseph N., Echo Chamber, 1. ed. Oxford: Oxford University Press, 2008.
MANIN, Bernard, As metamorfoses do governo representativo, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 10, n. 29, p. 5–34, 1995.
OYSERMAN, Daphna; DAWSON, Andrew, Your fake news, our facts: Identity-based motivation shapes what we believe, share, and accept, in: GREIFENEDER, Rainer et al (Orgs.), The Psychology of Fake News: Accepting, Sharing, and Correcting Misinformation, London: Routledge, 2021.
PARISER, Eli, The Filter Bubble: What the Internet is Hiding from You. Penguin Books, 2012.
SCARROW, Susan, Beyond Party Members: Changing Approaches to Partisan Mobilization, Oxford: Oxford University Press, 2015.
SCHWAB, Klaus, A Quarta Revolução Industrial, São Paulo: Edipro, 2016.
SUNSTEIN, Cass R., #Republic: Divided Democracy in the Age of Social Media, Illustrated edição. Princeton: Princeton University Press, 2017.
SUSSKIND, Jamie, Future Politics: Living Together in a World Transformed by Tech, Oxford: Oxford University Press, 2020.
[1] Doutorando e Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Integrante do Grupo de Estudos em Política Brasileira (PolBras), vinculado ao Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop-Unicamp).
[2] Disponível no Banco de Dados do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop-Unicamp). Número de registro: 04698.
Fonte Imagética: Redes sociais influenciam voto de 45% da população, indica pesquisa do DataSenado, Agência Senado (Créditos: Marcos Oliveira/Agência Senado). Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/12/12/redes-sociais-influenciam-voto-de-45-da-populacao-indica-pesquisa-do-datasenado. Acesso em 06 ago 2022.