Alexandre de Freitas Barbosa [1]
Sim, Lula vai dar muito trabalho para os historiadores. Mais do que Vargas. Vai render dissertações, teses e seminários nas universidades daqui, inclusive nas várias que criou pelo Brasil afora, mas também nos centros de prestígio da academia nos quatro cantos do mundo, onde tantas vezes foi laureado com títulos honoris causa. Não serão encontros e pesquisas a exaltar sua figura política. Isso pode acontecer também, é até provável que ocorra, assim como sua execração como o culpado pelo retorno do “populismo” e do “patrimonialismo”. A simbologia de Lula – para além das suas ações e políticas durante o período em que ocupou o Palácio do Planalto – deixará marcas profundas na nossa história, reavivando as esperanças e os traumas de uma sociabilidade que gira em torno da desigualdade.
Leituras sobre o “futuro passado” – nosso presente escorregadio – serão confrontadas, esmiuçando os vínculos de sua biografia com os dilemas vividos pelo país no último quarto do século XX e o primeiro quarto do século XXI. Haverá disputa de narrativas, do significado de Lula, de sua trajetória como operário e líder da oposição, depois como presidente e preso político. Se Lira Neto concluiu a sua biografia, de três volumes, sessenta anos depois do suicídio de Vargas, beneficiando-se da correspondência entre o presidente “exilado” em São Borja (RS) e a sua filha Alzira, é provável que Lula siga objeto de controvérsia até por volta de 2080, pelo menos.
Tudo será revirado de cima para baixo, em busca de novas leituras sobre as contradições da sociedade brasileira e da (in)capacidade do líder político e popular para enfrentá-las ou, ao menos, para colocá-las num novo patamar. Abordagens econômicas, sociais e culturais – informadas, como sempre, pelas posições parciais, mas não menos científicas, dos historiadores do seu tempo – buscarão entrever, por trás dos eventos protagonizados por Lula, os movimentos de médio e longo prazo que, para nós, os contemporâneos dessa história, ainda se encontram abaixo da superfície.
Uma geração atrás da outra, assim como os vários fragmentos que compõem cada geração, irão revisitar Lula em busca de novos presentes possíveis. A questão geracional é decisiva: quando o personagem entrou no radar de cada um que conta a história? Em 1978, para aqueles que acompanharam o embrião do Partido dos Trabalhadores (PT)? Ou como o candidato a presidente em 1989? Ou já como presidente eleito, em 2002, para as gerações seguintes? E para aqueles que emergiram para a vida política vendo Lula ser preso com toda a pirotecnia midiática em 2018?
Isso porque os últimos quarenta anos de história do Brasil podem (e devem) ser compreendidos a partir do ingresso do líder operário na vida política nacional. A criação do PT e da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a irrupção dos movimentos sociais de base canalizaram, feito uma enxurrada, as energias represadas durante a ditadura militar. Lula foi o protagonista dessa história. Ao perder as eleições para Fernando Collor (PRB), enraizou-se ainda mais na tessitura da sociedade brasileira. A eleição de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) parecia indicar uma mudança de sentido na história. Em 1998, depois de sua terceira derrota presidencial, um Lula abatido estava prestes a se retirar de cena. Mas a eleição de 2002 tornou-se uma verdadeira celebração das potencialidades nacionais. Petistas e não petistas, ninguém acreditava no que via. Era como se a história pudesse andar mais uma vez para frente. Mas havia também o risco do mergulho no abismo. Ambas as coisas aconteceram em sequência.
O seu jeito de governar, a sua incansável tentativa de vestir todos os chapéus de uma sociedade complexa e excludente, a opção pelo caminho de menor atrito, buscando sempre encontrar as frestas inexistentes, a elevação da auto-estima popular de braços dados com a crença (ingênua?) na domesticação da burguesia e o reposicionamento do país no tabuleiro internacional – todos esses fatores somados compõem o que André Singer chamou de “lulismo”, fincando assim a primeira de uma série de interpretações sobre o novo fenômeno (não apenas político). Apesar do caráter contemporizador do seu governo, foram redefinidas muitas das características da economia, da sociedade e da cultura no Brasil, por meio de uma aliança entre mudança e continuidade, aberta a inúmeras combinações.
Fato político incontestável, desde 1978, quando das greves do ABC, – de maneira profética o então editor da Isto É, Mino Carta, trouxe da Alemanha o jovem Ricardo Kotscho para “grudar no homem que significava a mudança” -, Lula passa a ganhar paulatinamente centralidade na vida nacional. Como se qualquer projeto que não incluísse o PT estivesse sujeito à incompletude. Eleito presidente, Lula se tornou o polo aglutinador da sociedade brasileira. Aliou-se ao status quo para acionar mudanças moleculares que, dependendo do seu potencial de irradiação, poderiam transformar o perfil das elites, assim como gerar novos mecanismos de ascensão social.
Lula acertou, mas também errou e muito em várias de suas opções. Ainda não temos distanciamento histórico suficiente para avaliar na sua integralidade os anos de seu governo e os que a ele se seguiram com Dilma Rousseff (PT). Sugiro como hipótese que a sua presença trazia uma euforia tão narcotizante que segmentos da esquerda, dentro e fora do governo, se despreocuparam de um projeto de nação contra-hegemônico, escorando-se exclusivamente na sua capacidade de composição política. Enquanto isso, muitos dos que o apoiaram de maneira velada e tática esperavam o momento de dar o bote.
Não se trata aqui de heroicizar Lula ou de demonizar Dilma, como virou moda recentemente, mas sim de apontar a centralidade de Lula na política nacional até hoje. Dilma se elegeu no seu rastro quando as condições internas e externas já eram outras. O mirrado interregno Michel Temer (PMDB) e a bestialidade do atual governo, apesar das diferenças de estilo, têm algo em comum: o avanço do anti-lulismo, primeiro envergonhado, e depois despudorado, já na sequência de sua injusta prisão.
Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, em virtude da sua ausência forçada dos palanques, entrevistas e caravanas, nunca a centralidade do ex-presidente foi tão presente. Pois a prisão de Lula é a viga que sustenta a combalida democracia brasileira. Apenas ela explica Jair Bolsonaro (PSL), e não apenas em termos eleitorais. O ódio de classe generalizado e ostentado como virtude apenas se explica pelo ato simbólico de calar a voz inconfundível daquele que fala em nome dos de baixo, por mais que tenha governado também para os de cima. Parece Vargas, mas não é. Aliás, o contraste das semelhanças e diferenças entre esses dois fenômenos políticos será uma das tônicas da historiografia sobre os cinquenta anos em que a vida nacional girou em torno de Lula.
Já o atual presidente que gosta de pisar duro com seu coturno desconcertado tende a ser relegado a uma nota de rodapé na história nacional. A sua bestialidade, além de sua indisposição para a composição – o capitão é o anti-Lula por excelência – vai tornando a prisão do ex-presidente cada vez mais insustentável. Um movimento arquitetado pela trinca Lava Jato-Grande Imprensa-Finanças procurou retirar Lula da história, ou a história de Lula, como se nunca tivesse assumido o governo entre 2003 e 2010. A sua transformação em “presidiário” – verdadeiro ato sacrificial – é uma tentativa de apagar não apenas as realizações (práticas e simbólicas) do seu governo, mas também as oportunidades perdidas, sobre as quais cabe silenciar.
Uma imagem vale mais que mil argumentos. Na unidade da Escola SENAI Roberto Simonsen, localizada no Brás, Lula concluiu seu curso de torneiro mecânico. Aparentemente o torno usado pelo operário ainda lá se encontra, tendo a máquina sido reformada quando da sua eleição em 2002. Uma foto presidencial, símbolo da sua trajetória, veio a fazer par com o torno no mesmo espaço, juntando assim os fios de uma história. Logo após o impeachment de Dilma, essa história foi apagada com a retirada da foto. Contar como uma história foi soterrada é contá-la duplamente, escavando as suas várias camadas de sentido.
Lula, por meio do seu discurso e de suas ações, criou o seu antípoda. Apenas esse podia disputar a cena política, tal o enraizamento de Lula no inconsciente nacional. O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) foi se mostrando cada vez mais incapaz de disputar a centralidade da vida brasileira. Jogava no terreno do adversário, acumulando derrotas. Em sua “autobiografia”, de 2006, FHC chega a se perguntar se seu governo não teria sido apenas um interregno na história do país. Com a eleição de Bolsonaro, ele parece se sentir à vontade. Assim imagina trazer Lula junto consigo para a sala de visitas do interregno.
Muitas vezes é no terreno da cultura e da sociedade, e não da política e da economia, que os movimentos da história adquirem sentido. Quem esteve no dia 7 de abril de 2018 em São Bernardo, quem lê as correspondências que Lula recebe na prisão, quem acompanha as vigílias em Curitiba, percebe que a “ideia” Lula encontra-se enraizada em vários segmentos da sociedade brasileira. Passa à condição de significante de algo que irá muito provavelmente cumprir um papel decisivo no destino da nação nas décadas seguintes.
O fenômeno Lula é bem maior que o PT, bem maior que a esquerda, sendo ambos em grande medida Lula-dependentes, o que não é apenas um fato, mas também um problema e um grande desafio para a construção de uma alternativa civilizatória voltada para o combate das desigualdades. Como se Lula tivesse se tornado uma espécie de “veneno remédio”, parodiando José Miguel Wisnik, por canalizar social e culturalmente as possibilidades nacionais, e por isso enjaulado; enquanto, do lado de fora, o país se defronta com ação aparentemente insuperável de dois bunkers: a economia e a política, mescladas entre si, girando em falso, de tudo o mais apartadas. A grande imprensa, os militantes do Judiciário e os militares são os garantidores dessa rachadura fundamental.
Sim, será um grande desafio contar essa história realmente fantástica e trágica. Uma história em câmera lenta, na longa duração, em que a vida vivida nos interstícios de uma sociedade fraturada, por um pau de arara nordestino convertido em operário do chão de fábrica do ABC paulista, assume tal centralidade que projeta o país na sua transição entre o século XX e XXI. Para o bem e para o mal, pois a centralidade também cria contradições e novos extremos. O Brasil de Lula sucede o país dos generais blindados em seus óculos escuros e precede o país da bestialidade.
Vargas deve estar se vangloriando de seu pupilo, inicialmente rebelde e agora com ele reconciliado. Os solavancos e as contraturas que o país viveu, separados por cerca de meio século, se associam para compor o drama de uma nação interrompida. O líder popular redivivo, assim como o estadista fulminado pelo esquecimento deliberado por parte das elites, essas são as novas facetas da sua história. O que prova que o Brasil ainda gira no seu compasso. Mas o país também já é outro, fruto do ódio que a Era Lula engendrou e dos novos rebentos que ela pariu. Lula sabe melhor que ninguém que a preservação de sua saúde física, mental e psicológica revela-se decisiva no momento em que vivemos. Ele já entrou para história e não pode sair da vida, por mais que simbolicamente o tenham como morto. O destino de Lula como homem segue influindo no curso da história que nós vivemos, lutamos e começamos a contar.
Portanto, historiadores, mãos à obra.
Em tempo: bom dia, presidente Lula.
[1] Professor de História Econômica e Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP).