Este texto abre uma série especial do Boletim Lua Nova sobre o centenário da obra A ideia de razão de Estado na história moderna (1924), de Friedrich Meinecke.
Sérgio Mendonça Benedito[1]
19 de novembro de 2024
O conceito de razão de estado (RE) emergiu no discurso político italiano no decorrer do século XVI, primeiro na linguagem verbal e posteriormente em obras escritas. Foi apenas em 1589 que o jesuíta piemontês Giovanni Botero dedicou um inédito tratado à locução (sob o título de Della ragion di stato), argumentando a respeito do que ela implica em um governo tido como ótimo do ponto de vista prático e moral. A partir de então foram várias décadas de polêmica em torno do conceito, em que se disputava o seu sentido (objetando as definições alheias), questionava-se seu conteúdo (que práticas conformariam a “boa” ou a “má” RE), difamava-se Maquiavel por ter supostamente inventado uma razão de estado “tirânica” e “irreligiosa”, entre outros aspectos. Este debate se manteve ativo até aproximadamente o fim da quarta década do século XVII, quando esta literatura submergiu em detrimento das novas teorias do Estado e do contrato social, como de Thomas Hobbes. Por certo, a RE não deixou de ser mencionada ou discutida em uma ou outra obra; no entanto, não existia mais aquele ímpeto polêmico, ou tratados cujos títulos incluiam “razão de estado” de modo a salientar a sua centralidade[2].
Friedrich Meinecke (1862-1954) pode ser considerado como um dos grandes responsáveis pela retomada do conceito a partir do início do século XX, se presumimos a RE tanto como objeto de estudo da história das ideias quanto categoria de interpretação da política. Isso porque sua obra, publicada em 1924 sob o título original de Die Idee der Staatsräson in der neueren Geschichte, foi um sucesso editorial imediato e recebeu ampla atenção. À época estabelecido na Universidade de Freiburg, o historiador alemão já despontava como um acadêmico promissor, ex-aluno de grandes figuras como Droysen, Dilthey, Lamprecht e Treitschke, e com outra obra de peso no currículo, Cosmopolitismo e Estado nacional [Weltbürgertum und Nationalstaat] de 1908 (Assis, 2013; Meinecke, 1970).
Em pouco tempo, intelectuais de destaque como Benedetto Croce (1925), Carl Schmitt (2017 [1926]), Federico Chabod (1973 [1927]) e Carl Friedrich (1931) resenharam a obra de Meinecke e, embora criticassem vários aspectos de sua abordagem histórica e teórico-conceitual, reconheceram a importância do trabalho. Nas décadas seguintes, influenciados em certa medida por esse debate, seguiram-se importantes estudos como Constitutional reason of state, de Carl Friedrich (1957), Raison d’Etat et pensée politique à l’époque de Richelieu, de Etienne Thuau (2000 [1966]), Richelieu and reason of state, de William Church (1972) e Il problema della ‘ragion di stato’ nell’età della controriforma, de Rodolfo de Mattei (1979).
No curto espaço de uma contribuição como esta, seria difícil realizar um balanço abrangente contemplando as ideias apresentadas por Meinecke e a maneira como foram debatidas até os dias de hoje. Sendo assim meu propósito aqui será mais limitado, visando responder sucintamente à seguinte questão: quais são alguns dos principais pontos teóricos que ainda tornam A ideia de razão de Estado na história moderna uma obra inescapável em se tratando do conceito que a nomeia? Para isso, primeiramente, discutirei resumidamente como o historiador alemão entendia a razão de Estado. Em seguida abordarei três temas, presentes na obra, em torno dos quais o debate ainda persiste: Maquiavel como precursor da razão de estado; a ambiguidade dos tratadistas da RE em relação ao florentino; e a relevância do conceito para a compreensão da política e do Estado no século XX.
O Conceito de RE em Meinecke
Curiosamente, apesar do título do livro, Meinecke não apresenta uma definição explícita de razão de Estado – o que lhe rendeu diversas críticas, a mais famosa delas por parte de Schmitt na resenha já citada. A recusa do historiador alemão em fazer isso se deve ao fato de que, para ele, o conceito é impreciso desde a origem, apresentando-se de diferentes maneiras em contextos históricos distintos. Apesar disso, em seu entendimento, a RE se configura como um “[…] princípio fundamental da conduta nacional, a primeira lei de movimento do Estado. Ele informa o estadista sobre o que deve fazer para preservar” a sua saúde e força (Meinecke, 1957, p. 1).
Na medida em que esta instituição primordial só pode manter a potência pelo seu desenvolvimento contínuo, a razão de Estado serve como guia para este objetivo. Além disso, o conceito possui elementos gerais e individuais. Primeiro porque os Estados possuem interesses, motivações e mesmo um instinto para a preservação e crescimento; e segundo porque cada Estado possui, com base em sua história e características, seus próprios interesses e contextos de ação (Ibid., p. 17). Daí o vínculo de anterioridade da RE com o historicismo (tradição à qual Meinecke se associava), dado que este último se concentra principalmente sobre as especificidades históricas, as individualidades e a cultura (Cunha, 2017; Krol, 2021).
Mesmo nesses termos, muito gerais, o entendimento meineckiano de RE conduz a uma questão central que já despontava em sua obra anterior, Cosmopolitismo e Estado nacional: o dilema entre exercício do poder e moralidade. Escrita antes do início da Primeira Guerra Mundial, Cosmopolitismo apresenta uma história da ideia de Estado-nação e a emergência do nacionalismo alemão da Guerra dos Sete Anos (1756-1763) até o início do século XX (Gilbert, 1970). Ali, ainda se alinhando a Ranke e Hegel, Meinecke realiza uma verdadeira apologia do Estado e do estadista, na figura de Bismarck, como realizador daquela individualidade ou ideia divina – estando todas as suas ações legitimadas em prol do estabelecimento da nação (Stark, 1957).
Após o catastrófico conflito europeu e seu inédito saldo humano até então, tornou-se mais difícil supor uma conciliação entre poder e cultura, ou mesmo justificar qualquer ação estatal em nome da defesa nacional. Daí o aspecto trágico do antagonismo entre kratos (desejo de poder) e ethos (responsabilidade moral) exposto em A ideia de razão de Estado (Ferreira, 2017). Isso porque a consolidação do poder do Estado e sua defesa frequentemente requerem práticas detrimentais à moralidade e legalidade – aspecto pelo qual o autor passa a criticar Ranke e Hegel por não terem enfatizado o bastante. No entanto, nenhuma comunidade política pode manter sua estabilidade e legitimidade pela existência perene de um poder desmesurado ou desregulado. Esse problema é o objeto central da obra, sem que o autor ofereça ao final uma resposta definitiva sobre como lidar com a tendência inata do Estado ao imoral ou ilegal.
Maquiavel como precursor da RE
Ao privilegiar Maquiavel, identificando-o como o primeiro intelectual a destacar o dilema entre ação política e moralidade, Meinecke contribuiu para reforçar a interpretação de que o florentino teria sido o inventor ou precursor da RE. É famoso hoje o trecho da dedicatória de A razão de estado de Botero (1948, p. 51-2) em que ele constata a notoriedade do tema da RE nos debates políticos de sua época e o reconhecimento de Tácito e Maquiavel como principais referências. O severo julgamento do piemontês a respeito do florentino, de que se trataria de um proponente de modos tirânicos de governo, alheios aos preceitos cristãos, seria uma relativa constante entre autores da contrarreforma (Bireley, 1990).
Como é amplamente conhecido, Maquiavel não se utiliza do conceito razão de estado em suas obras. No entanto, sua discussão sobre o uso de meios excepcionais para a manutenção do poder em situações de necessidade, com base na oposição entre virtú e fortuna, estimulou o debate sobre as ações políticas que não se conformam aos parâmetros correntes da moralidade ou da legalidade.
Portanto, embora uma tese longeva, Meinecke contribuiu para a sua persistência na teoria política contemporânea, já que o antagonismo entre kratos e ethos representado na obra se funda nessa interpretação do florentino, desdobrando-se temporalmente até a sua época. No decorrer dos anos vários autores se dedicaram a discutir e complexificar a interpretação de que Maquiavel seria o precursor maior da RE (entre eles Senellart, 1989; Tenenti, 1992; Vasoli, 1994; Lamy, 2002), inclusive verificando o legado do discurso jurídico medieval para a sua concepção (Post, 1964).
A tese dos “maquiavelianos mascarados”
Outro assunto abordado pelo historiador alemão que segue recebendo atenção, relacionado ao anterior, diz respeito à relação ambígua dos tratadistas da razão de estado com a obra do florentino. Como antes mencionado, por exemplo, Botero (1948) inicia sua obra atacando Maquiavel com contundência, propondo-se a oferecer uma arte de governar não apenas efetiva do ponto de vista prático mas também aderente aos preceitos da Igreja Católica. Todavia o que se vê no decorrer do tratado, a despeito do antagonismo inicial, é que o piemontês concede muito ao florentino: o medo é um fundamento melhor ao poder que o amor; o ser humano realmente é mau em sua natureza e permanece no nível das aparências na maior parte do tempo; e, como sublinha Meinecke (1957, p. 68-9), sem reconhecer que Botero tratava sobre relações internacionais, ao fim e ao cabo muito do que dita o curso dos governos diz respeito aos interesses egoístas dos príncipes.
A tese do “cinismo” dos contrarreformistas não era inédita, é verdade, pois poucos anos antes havia sido postulada por Toffanin (1972 [1921]), autor este citado pelo alemão. No entanto, A ideia de razão de Estado contribuiu decisivamente para a permanência da interpretação de que, no fundo, os antimaquiavelianos seriam apenas “maquiavelianos mascarados”. Interpretações mais recentes complicam essa leitura (Kahn, 1994; Descendre, 2022 [2009]; Vidal, 2024), respectivamente, ao enfatizar os aspectos envolvidos na construção retórica dos textos, como esses autores tinham outros adversários em vista para além do próprio florentino, e como a proposição de uma distinta forma monárquica de governo (contra Bodin) exigia não apenas a crítica, mas a apropriação de algumas das proposições maquiavelianas.
A atual relevância do conceito de RE
Enfim, um último tópico que me parece relevante e que persiste em voga cem anos após a publicação de Meinecke versa sobre a relevância do conceito de razão de Estado na atualidade. Carl Schmitt (2017 [1926]) foi um dos primeiros a manifestar ceticismo sobre a capacidade da categoria dar conta da realidade política dos séculos XIX e XX. De certa forma reforçando um argumento apresentado anteriormente em A ditadura (Schmitt, 2014 [1921]), o jurista alemão argumenta que a RE diz respeito principalmente ao aspecto técnico da ação política, que possui por objetivo a manutenção ou extensão do poder e que se encontra acima da dualidade legal/ilegal. Assim, por sua própria natureza, o conceito seria insuficiente para conduzir a um entendimento pleno do exercício da soberania em contextos de anormalidade e, por conseguinte, em que um julgamento político precisa ser realizado antes de que qualquer ação seja conduzida.
Se Schmitt dispensou a razão de Estado em prol de uma teoria radical do decisionismo, Carl Friedrich (1957) também discordou de Meinecke, mas em direção inversa: seria necessário abandonar a RE pensada em torno da política do poder e concebê-la em relação ao Estado de direito. Em sua perspectiva, ainda que se trate de um conceito datado, ele auxilia a enfrentar melhor o problema do exercício excepcional do poder do que termos como “defesa constitucional” e “interesse nacional”, que tendem a ocultar o Estado na sua realização. Enfim, mais recentemente observa-se um interesse renovado pela RE como categoria analítica quanto a temas contemporâneos como políticas de emergência/segurança nacional (Poole, 2015; 2016) e a relação entre poder estatal e neoliberalismo (Arienzo; Borrelli, 2011).
Conclusão
Muito mais poderia ser discutido sobre os legados e também os avanços produzidos a partir das considerações de Meinecke sobre a razão de Estado e sua história no pensamento político moderno. Como não poderia deixar de ser, a seleção dos temas sumariamente tratados nesta breve contribuição possui um viés: de um pesquisador de doutorado dedicado ao tema da RE na passagem entre os séculos XVI e XVII, mas que também não perde de vista suas expressões contemporâneas.
Um esforço similar foi empreendido por Michael Stolleis (1994) há algumas décadas, dando conta não apenas de alguns dos limites da obra, mas também dos últimos desenvolvimentos da literatura que tornaram A razão de estado, nas suas palavras, um livro datado. O principal ponto no qual concordamos, a despeito da diferença temporal e do fato de que este grande intelectual faleceu em 2021, é sobre a necessidade de complexificar as interpretações da RE, aproveitando-nos do conhecimento produzido sobre outros tratadistas do período mencionado acima – os grandes, mas também aqueles considerados menores. Fundamentalmente, a meu ver, é preciso superar a linha interpretativa do “maquiavelismo mascarado”, levando a sério seus escritos em relação às disputas em que se encontravam envolvidos, de forma a melhor entender o caráter da RE que propunham, como técnica de governo.
Enfim, seja para estimular a nossa curiosidade, seja para instigar em nós o anseio por uma outra teoria política da razão de Estado, a obra de Meinecke permanece inescapável.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
Referências bibliográficas
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[1] Doutorando em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Bolsista CNPq (2020-2024), membro do grupo de pesquisa Soberania Popular em Perspectiva Histórica e da equipe editorial do Boletim Lua Nova. E-mail: sergiombk@gmail.com
[2] Como se pode observar neste parágrafo, e assim será no restante do texto, há uma distinção entre “estado” e “Estado”. Isso pela necessidade de enfatizar que a instituição que conhecemos mais recentemente na história, e que denominamos com inicial maiúscula, certamente não existia no século XVI. Ela se desenvolveu, na prática e no discurso político, com o decorrer dos séculos a partir de então (Chabod, 1990; Skinner, 2002). A palavra “estado” nos autores do século mencionado com frequência tinha um sentido mais limitado, referindo-se à unidade política ou territorial sobre a qual se exercia o domínio, ao governo ou senhorio de um príncipe, ou mesmo ao regime político vigente em um determinado território. Portanto, ainda que pudesse se referir a uma forma institucional incipiente, não era sempre assim.
Referência imagética: Fotografia de arquivo pessoal do autor.