Fellipe Eloy Teixeira Albuquerque[1]
À Vanessa Lilian de Oliveira Nunes[2]
Imagine você, após uma noite de sono, despertar em um sonho… O mundo está cheio de homens e cães. Não existem mulheres ou crianças… só cães machos, jovens ou velhos e filhotes. Todos devemos concordar que seria algo amedrontador, com certeza, não se trataria de um sonho, mas sim um pesadelo. Onde já se viu, homens e cães convivendo em harmonia, sem mulheres?
Esse improvável desfecho para a humanidade, seria apenas mais um exemplo da relação humano e não-humano, conceito, difundido pelo recém falecido, filósofo francês Bruno Latour. Latour usou essa dicotomia para engendrar um discurso sobre a relação entre cultura e natureza e o hibridismo que cria as naturezas-culturas. Para esse autor, “não existem nem culturas – diferentes ou universais – nem uma natureza universal” (LATOUR, 2013, p. 102), só existem “naturezas–culturas”, não existem separações claras entre ambas. A noção de cultura só existe por conta do afastamento da natureza. Mas, Latour não foi o único a pensar as relações entre seres humanos e não-humanos.
Uma autora estrangeira que precisa ser conhecida por todos os brasileiros, quiçá por todos os cidadãos do mundo, é Donna Haraway. Haraway é autora do célebre “Manifesto ciborgue” (1980), que assim como Latour, discute sobre a relação entre humano: corpo, e não-humano: prótese; pontes de safena, corpos moldados pelos aparelhos da academia, dedos deformados pelo uso de celular, são todos exemplos de um organismo híbrido, traduzido como ciborgue. O “Manifesto ciborgue” é um ensaio feminista seminal, elaborado por Haraway no intuito de ser “um mito político, pleno de ironia, que seja fiel ao feminismo, ao socialismo e ao materialismo. Um mito que poderá ser, talvez, mais fiel ─ na medida em que a blasfêmia possa sê-lo ─ do que uma adoração ou uma identificação reverente.” (HARAWAY, s/d, p. 35).
Haraway, também é autora de um livro que pode nos ajudar a entender como seria esse tal mundo povoado por homens e cães. Um mundo sem mulheres. Em “Quando as espécies se encontram” (2022), a proximidade com o discurso de Bruno Latour fica tão evidente, que a própria tradução para o português fez questão de denominar a Parte I de “Jamais fomos Humanos”, em referência direta ao livro “Jamais fomos modernos” (2003), em que Latour apresenta ao mundo as ideias supracitadas acerca da “cultura e natureza e o hibridismo que cria as naturezas-culturas”. Inevitavelmente, “Quando as espécies se encontram”, cita o cachorro várias vezes, como exemplo, de sucesso entre a dominação do humano sobre o não-humano.
A relação entre os homens e os cães é descrita positivamente por Haraway, ressaltando que: “a interdependência das espécies é a regra do jogo da mundificação na Terra, um jogo que exige resposta e respeito” (HARAWAY, 2022, p. p 31). Essa resposta, pode vir por meio da submissão, enquanto o respeito é ressaltado por ela, em decorrência de suas “meditações sobre o comportamento dos cães em uma praiana qual podem ficar sem coleira até o testemunho pragmático do conforto compartilhado” (HARAWAY, 2022, p. 247). A retribuição do humano para com o cão é exemplificada a partir da seguinte frase:
Algumas das pessoas ligadas a retrievers[3] se zangam por seus cães estarem realizando tarefas múltiplas (não posso culpá-los), então aqueles de nós com metas tentamos distrair nossos cães por um tempo com algum jogo que eles inevitavelmente acham muito menos satisfatório” (HARAWAY, 2022, p. 248-249)
Isso porque são espécies com instintos diferentes da “vida na cidade”, são biologicamente programadas para viverem livres.
Haraway também é autora do ensaio “O manifesto das espécies companheiras” (2021) que, também analisa positivamente a relação entre homens e cães. O subtítulo: “Cachorros, pessoas e alteridade significativa” sintetiza a partir de a “História de Amor” e a “História de Adestramento”, uma suposta servidão positiva. Como, se a existência da simbiose entre caninos e humanoides, fosse um sussurro, em favor da humanidade.
Metaforicamente falando
Ao se traduzir para uma linguagem popular, o que Donna Haraway introduz com esses dois livros, são comportamentos inter-relacionais entre humanos e não-humanos que não destoam muito do comportamento entre humanos e humanos. Considerem o seguinte raciocínio.
Na relação entre homem e cão, muitas vezes há desequilíbrio. Enquanto o pastor segura o cajado, o cão corre e circunda as ovelhas, mordisca os calcanhares e afronta os invasores. Faz todo o serviço difícil. Ao voltarem para o lar, quem descansa primeiro é o homem. O cão fica alerta, aparentemente desconfortável com os rumores de invasão, cuida da segurança da casa, reencontra e salvaguarda seus filhotes. Come uma porção de ração e ainda fica a noite inteira alerta, às vezes uiva para demonstrar que necessita de carinho, atenção, mais petiscos/biscoitos. Se contenta em perseguir gatos ousados e ratos desatentos. O salário do homem é pago com dinheiro, do cão com moradia, afazeres extras e alimento.
Nos extremos polares do globo, são os cães que carregam nas costas o sustento de todos. Novamente, são os cães que fazem o trabalho duro. Grupos enfileirados de iguais, seguem um líder, que, amordaçado, é guiado pelo chicote do homem. O homem sobre o trenó, sequer toca o chão escorregadio e gelado. Segue seu rumo, confortável e seguro.
Cães são dispostos como atletas, exigidos psicologicamente a manter um padrão estético e ético de estrutura física. Há apostas em corridas, disputas injustas, em que cães são obrigados a participarem. Cada um, agora “exemplares da espécie”, torna-se mercadoria, desfilam à vista do homem, que os vê como produtos e tem seu preço validado pela serventia.
Cães são abandonados todos os dias, nas ruas, estradas ou mesmo em suas próprias casas. Enquanto homens seguem concentrados em seus afazeres, confortáveis e seguros em torno de uma multidão de cães subservientes. Os cães podem ser maltratados, espancados, comer restos e às vezes, após implorarem muito por atenção, podem ser até lembrados e acariciados.
Um mundo hipotético, formado apenas por cães e homens seria marcado pelo cansaço, exploração e abandono. Esse mundo, aparentemente impensável, não teria nada de parecido com o mundo real. Afinal, no mundo real, o homem precisa do cão. No mundo real, o cão acostumado, não tem saída: as coisas sempre foram determinadas pelas naturezas-cultura, não por eles (o cão). Então, o que lhe resta é se submeter e aceitar que faz parte da manutenção do status quo da coisa toda.
A relação entre homens e cães foi romantizada inúmeras vezes pela Razão ocidental. Eternizada pela literatura (Fábula de Esopo: O Lobo e o Cão, Lassie Come Home, de Eric Knight), pelo Cinema (Lassie, Rin-Tin-Tin) e entretenimento infantil (Snoopy, Scooby-Doo). Há inclusive, alguns raros casos, considerados absurdos, em que madames, senhoras ricas e solitárias, optam em deixar suas heranças para seus cães. Levam para cima e para baixo seus animais de companhia, a ponto de despertar, nos maliciosos, olhares desconfiados de zoofilia.
Haraway, ressalta como a vida do homem foi otimizada e o mundo se transformou, aparentemente, em um lugar melhor para ambas as espécies. Existem aqueles cães que guiam as pessoas com deficiência visual, outros que fazem companhia para crianças neurodivergentes ou madames solitárias, existem relatos de cães que já foram mortos para proteger seus humanos. Contudo, a ideia de domesticação pressupõe que espécies foram forçosamente impostas à engenharia genética, seleção não natural: as espécies menos dóceis foram exterminadas.
A domesticação resultante da relação entre humano e não-humano, contudo, não foi uma relação desigual que beneficiou, assim como no caso do cão, o homem mais de que qualquer outra espécie. Conseguem imaginar outros exemplos de relacionamentos desiguais entre o homem e outras espécies?
*Este texto não reflete necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências:
HARAWAY, D. Quando as espécies se encontram. São Paulo: Ubu Editora, 2022.
HARAWAY, D. J. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. Londrina: Monstro dos mares, s/d. (impresso por demanda).
HARAWAY, D. J. O manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 37, 2013.
[1] Doutorando em Artes pela Universidade Estadual Paulista; Professor pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. fellipe.eloy@unesp.br ou fellipe@sme.prefeitura.sp.gov.br
[2] Colega de trabalho que me inspira, professora exemplar no Atendimento Educacional Especializado. Laureada com o Prêmio Paulo Freire de Qualidade de Educação, na categoria EJA, pela Câmara Municipal de São Paulo, em 2022.
[3] Retriever, ou Cobrador de caça, é uma classificação comum dada a tipos ou raças de cães de caça que têm como função apenas recolher a ave abatida pelo atirador e entregá-la ao mesmo, sem maiores danos. Fora do ambiente de caça, são aqueles que buscam e trazem os discos.
Fonte Imagética: Foto de David Taffet na Unsplash. Disponível em https://unsplash.com/pt-br/fotografias/EtFBxSdd-iw. Acesso em 24 jan 2023.